Currículo Lattes passa a incluir registro de licença-maternidade

Mulheres cientistas podem, e devem, conciliar suas carreiras com a maternidade, sem que isso as prejudique, afirmam pesquisadoras

Cientistas no Brasil que estão atrás de uma vaga em instituições de ensino e pesquisa, ou de recursos para financiar seus projetos, precisam de um Currículo Lattes. Sem o documento, o pesquisador praticamente não existe para os pares e  para as agências de fomento. Criada em julho de 1999, a base de dados tornou-se um padrão nacional, e traz praticamente tudo sobre a vida acadêmica dos pesquisadores.

Principal agência federal de fomento à pesquisa, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) realizou uma evolução no formulário a fim de permitir o registro dos períodos de licença-maternidade. O campo poderá ser preenchido pelas mulheres pesquisadoras a partir desta quarta-feira, 15 de abril.

Convidamos cinco professoras da Unesp em São José do Rio Preto para comentar seus pontos de vista sobre a questão. Elas são responsáveis por diversas pesquisas e, também, pela formação de professores que irão atuar nos campos de Ciências Biológicas, Exatas, Engenharia de Alimentos, Educação, Zoologia e Botânica.

As pesquisadoras entrevistadas formam um consenso de que reformas na Plataforma Lattes representam o reconhecimento institucional de que mulheres cientistas podem, e devem, conciliar suas carreiras com a maternidade, sem que isso as prejudique.

Demanda antiga

Coordenadora do Nupe – Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão da Unesp, a professora Monica Abrantes Galindo, do Departamento de Educação do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce), lembra que a produção cientifica acaba por ser medida pela quantidade de artigos publicados e pela frequência, mas que a maternidade acaba sendo o principal fator de impacto na queda de produtividade das mulheres pesquisadoras.

“Culturalmente, o peso do nascimento dos filhos é muito maior sobre as mulheres. A chegada das crianças tem um impacto específico no período da gravidez. Além disso, a saída ou a diminuição de ritmo impostas por esse período também necessitam de um tempo de retomada, que vai impactar na avaliação da produção científica das mulheres”, afirma Monica Galindo. 

Chamada de “Licenças”, a nova seção dentro da plataforma, que é administrada pelo CNPq, é uma demanda antiga de mulheres que fazem ciência no país, sobretudo do Movimento Parent in Science, e tem sido  intensificada nos últimos tempos. Das discussões promovidas pelo grupo vieram outras mobilizações com a tag: #maternidadenolattes.

No Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq (DGP), 50% do total de pesquisadores cadastrados são mulheres. Nos últimos 15 anos, o percentual de mulheres aumentou sete pontos percentuais.

Falta de equidade

Embora elas sejam maioria na concessão de bolsas de graduação e pós-graduação, ao longo da carreira acadêmica a presença feminina vai diminuindo. Um exemplo é o número de bolsistas de produtividade do CNPq (um marco de excelência na carreira científica no Brasil). Em 2017, apenas 36% das bolsas dessa modalidade tinham como beneficiárias mulheres. Além disso, a entrada da mulher no sistema de bolsas de produtividade é superior à dos homens.

A maioria das bolsas é concedida a homens com idade entre 45 e 54 anos. Enquanto para as mulheres, a faixa etária com maior número de bolsistas está entre 50 e 59 anos, e apenas 19% das bolsas concedidas a pesquisadoras são para mulheres entre 30 e 34 anos de idade, e 25% para mulheres com idades entre 35 e 39 anos.

São poucos os estudos com dados quantitativos que avaliam a vida científica das mulheres no Brasil, e não existem dados de comparação entre carreiras femininas e masculinas. Um relatório sobre Gênero no Cenário de Pesquisa Global, publicado em 2017 pela Elsevier, mostrou que o número de mulheres cientistas no Brasil chega a 49%.

Carreiras sacrificadas

Para a docente Maria Stela Maioli Castilho Noll, do Departamento de Zoologia e Botânica, é importante registrar no currículo que as interrupções no ritmo de produção acadêmica tiveram um motivo altamente relevante, e que isso deve ser considerado, também, nas avaliações das pesquisadoras. “Embora a parentalidade possa ser compartilhada entre os pais, muitas vezes ela recai em parte, ou totalmente, sobre a mãe. Acredito que a partir deste reconhecimento, vários desdobramentos devem acontecer”, observa Maria Stela, que acrescenta:

Cientistas que decidem ser mães e que acabam sacrificando suas carreiras não podem ser prejudicadas, como vem acontecendo até o momento.

A sociedade científica, de uma maneira geral, reconhece  que muitos pesquisadores acabam deixando pausas descontextualizadas no currículo ao longo da vida universitária, e isso tem causado prejuízos no processo de concessão de bolsas por meio do CNPq. A questão gerou, também, um forte debate durante o Simpósio Brasileiro sobre Maternidade e Ciência, em 2018. O evento foi realizado em 2018 pelo Instituto Serrapilheira.

“O registro formal do período de licença-maternidade deixa claro que a eventual redução, ou ausência de produção científica, foi justificada pelo intenso envolvimento da mulher com a maternidade nos primeiros meses de vida de um bebê. Isso evita que esse período seja interpretado como uma irregularidade ou lacuna no currículo, normalmente associada com a falta de comprometimento ou baixa produtividade”, explica a professora titular da Unesp, Vânia Regina Nicoletti, do Departamento de Engenharia e Tecnologia de Alimentos.

Dois anos de luta

Movimento Parent in Science (Mães e Pais na Ciência), criado com o objetivo de discutir os desafios e consequências de quem concilia a maternidade e ciência no Brasil, além de ajudar mães cientistas a manter a carreira na universidade, divulgou, por meio do Instagram, uma nota celebrando a modificação na Plataforma Lattes. No tuíte celebrando a conquista, o movimento ressalta que foram dois anos e meio de espera até que a data pudesse ser celebrada.

Tuíte sobre o início do registro de licença-maternidade no Currículo Lattes. Imagem: Twitter/reprodução.


Lucy Any Francisco Roberto, especialista em Sistemas Dinâmicos, e professora no Departamento de Matemática do Ibilce, também tece algumas críticas. “Esta modificação só terá impacto efetivo na nossa vida profissional, se considerada no momento da avaliação do currículo em editais de financiamento de pesquisas e bolsas, na avaliação dos programas de pós-graduação, entre outras situações. Entendo que esta informação deve ser valorizada tanto quanto é valorizada a produção científica e captação de recursos”, destaca.

Ela é mãe de um menino de 6 anos e conta que optou pela maternidade depois de ter conseguido uma vaga como docente, por meio de concurso público, no Ibilce. Conta que os dois primeiros anos de maternidade foram os mais desgastantes, afinal, a mudança brusca na rotina devido aos cuidados com o filho, as noites mal dormidas, dentre outras situações, acabaram refletindo na vida profissional. “Hoje, por conta da pandemia, estamos em home office e home school. Outro desafio é ter que conciliar o trabalho com toda a rotina familiar em um mesmo ambiente, que mais uma vez impacta na produção científica”, pondera Lucy.

A maternidade coincidiu com a carreira da pesquisadora e docente Maria do Socorro Nogueira Rangel, do Departamento de Matemática. A docente relata que havia acabado de receber uma bolsa de produtividade do CNPq por um período de dois anos, e recorda que, não conseguiu renovar ao final do período, e só conseguiu recuperá-la oito anos depois. “Tive que trabalhar de maneira sobre-humana para manter uma boa atividade científica, mesmo dividindo a tarefa do cuidado com as crianças com o meu companheiro. Eu pensava que tinha que desenvolver todos os papéis simultaneamente: ser mãe, esposa, pesquisadora e, claro, com excelência, tinha que ser uma supermulher”.

Maria do Socorro acrescenta que é necessário construir um modo de vida que reconheça a importância do papel do “cuidado” na sociedade. Papel essencialmente atribuído às mulheres. E finaliza acrescentando:

Para termos uma sociedade mais justa é preciso que todas as pessoas, mulheres e homens, se envolvam no processo do cuidado, de si e dos outros. Já avançamos um pouco, mas o caminho ainda é longo. Espero que em breve ‘essa nova linha no Lattes’ seja considerada e usada de forma justa pela comunidade científica, incluindo a Unesp.

Guilherme Ramos é jornalista da Assessoria de Comunicação e Imprensa do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp (Ibilce), câmpus de São José do Rio Preto.

Na imagem no alto, laboratório de estudos e análises científicas do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce) Unesp em São José do Rio Preto. Foto: Arquivo/ACI-Ibilce.