“Joyce, você é craque mesmo! Você para mim é uma das maiores cantoras de todos os tempos!”. Esses elogios rasgados à cantora carioca, que acaba de celebrar seu aniversário de 75 anos, vieram da pena de uma das maiores referências da música brasileira: o maestro Tom Jobim. E ele ainda esticou os aplausos. “Danada! Você faz o que quer dessa sua voz maravilhosa, você tem bossa, afinação, improviso, ritmo, musicalidade, feminilidade, coragem, domínio absoluto da bola, você sabe das palavras e dos sons, você conhece o timbre e o sentido e comanda tudo com a maior propriedade, com a maior loucura, com a maior economia, com a maior prodigalidade. […]Deste atleta enjaulado, deste trovador desenganado, deste pierrot apaixonado. Tom”.
Joyce Silveira Moreno (nascida Joyce Silveira Palhano de Jesus) nasceu no Rio de Janeiro, em 31 de Janeiro de 1948. Os pais se separaram antes de seu nascimento e Joyce foi registrada pela mãe, Zemir Silveira Palhano de Jesus, como filha de seu primeiro marido, com a concordância deste. Funcionária pública, dona Zemir criou a filha sozinha, assim como seus dois filhos do primeiro casamento.
Criada na Zona Sul do Rio, Joyce estudou, desde o curso primário até o Clássico, na mesma escola, o Colégio São Paulo, que fica em Ipanema. Começou a tocar violão aos 14 anos de idade, observando seu irmão, o guitarrista Newton, 13 anos mais velho. “Eu não sou propriamente de uma família de músicos, mas de uma família que amava música”, diz. A mãe gostava de jazz, big bands, Frank Sinatra, Elizeth Cardoso entre outros. Sua casa era freqüentada por amigos do seu irmão que posteriormente construiriam reputação como grandes músicos, nomes como Roberto Menescal, Eumir Deodato, Luiz Carlos Vinhas e Leny Andrade. Aos poucos, ela foi se familiarizando com o meio musical. “Entretanto, particularmente, as coisas mudaram quando ouvi João Gilberto pela primeira vez. Aquilo mexeu comigo de uma forma que eu chorei, rezei e fiquei encantada. Foi a música “Felicidade”, uma gravação rara que ele fez para trilha sonora do filme Orfeu. Daí a Bossa Nova entrou na minha vida de uma forma avassaladora e comecei a pegar o violão, tocar e compor”, diz Joyce.
Em 1964, aos 16 anos, participou pela primeira vez de uma gravação em estúdio, no disco do grupo vocal “Sambacana”, com músicas de Pacífico Mascarenhas, convidada por Menescal. A partir daí, sempre a convite desse amigo, gravou alguns jingles produzidos por ele. Até então, esse viés artístico era ainda visto como hobby e a possibilidade de encarar a música como profissão estava distante. Em 1967, classificou sua canção “Me disseram” no II Festival Internacional da Canção (RJ), que iniciava com a frase “Já me disseram/ que meu homem não me ama”. A canção provocou grande polêmica na época, por ter a letra escrita na primeira pessoa do feminino, o que ainda não tinha sido feito por nenhuma das pouquíssimas compositoras brasileiras até então. A compositora estreante de 19 anos foi acusada de “vulgar e imoral” por alguns críticos da época. “A profissionalização musical foi um processo natural. Eu cursava jornalismo na PUC, trabalhava como estagiária no Jornal do Brasil. Aí fui convidada para participar do Festival e também apareceu uma série de eventos que culminaram na minha primeira contratação por uma grande gravadora. Daí o negócio foi pra frente.”
Em 1968, lançou pela Philips seu primeiro LP, “Joyce”, produzido por Armando Pittigliani, com arranjos de Gaya e Dori Caymmi e texto de apresentação assinado por Vinicius de Moraes na contracapa. No repertório, cinco músicas suas e mais seis inéditas de autores amigos seus: Paulinho da Viola, Marcos Valle, Francis Hime, Caetano Veloso, Jards Macalé, Toninho Horta e Ronaldo Bastos. Já no ano seguinte gravou seu segundo disco, o LP “Encontro marcado”, que marcou a primeira incursão de Nelson Motta como produtor. Os arranjos foram de Luiz Eça. Na seqüência, fez sua primeira viagem internacional como profissional da música, apresentando-se ao lado de Edu Lobo no Teatro Villaret, em Lisboa.
No início dos anos setenta, ela integrou, juntamente com Nelson Angelo, Novelli, Toninho Horta e Naná Vasconcelos, o grupo vocal e instrumental A Tribo, chegando a gravar algumas faixas no disco “Posições”, lançado pela Odeon. Em 1973 gravou, com Nelson Angelo, o LP “Nelson Angelo e Joyce”, único registro profissional da cantora no período compreendido entre 1971 e 1975, quando se dedicou exclusivamente às filhas Clara e Ana, nascidas em 1971 e 1972, respectivamente.
Em 1975, recém-separada, retomou a carreira, substituindo o violonista Toquinho ao lado de Vinicius de Moraes em uma turnê pela América Latina. Com o sucesso das apresentações, foi convidada para participar dos shows do poeta pela Europa. A temporada gerou, na Itália, a gravação do LP “Passarinho urbano”, produzido por Sérgio Bardotti para a etiqueta Fonit-Cetra, em 1976. Nesse trabalho, Joyce interpretou músicas de compositores brasileiros que naquele momento estavam tendo sua obra censurada pela ditadura militar, como Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Edu Lobo, Maurício Tapajós e o próprio Vinicius de Moraes. O álbum teve lançamento discreto no mercado brasileiro em 1976.
Em 1977, apresentou-se em temporada de seis meses em Nova York, gravando mais um LP internacional, “Natureza”, em parceria com Maurício Maestro. O disco, com produção e arranjos do maestro alemão Claus Ogerman e participação de músicos de jazz, como Michael Brecker, Buster Williams e Joe Farrell. A temporada nova iorquina teria ainda consequências importantes na vida pessoal: o encontro com o baterista baiano Tutty Moreno, radicado em NY na época, com quem se casaria e teria mais uma filha (Mariana, nascida no Rio em 1979).
Já em 1980, lançou o disco “Feminina”, sucesso de vendagem e responsável pela primeira grande exposição de Joyce na mídia. “Feminina foi um divisor de águas na minha vida. O álbum me trouxe uma visibilidade que não tive nos anteriores. Nele constam canções importantes do meu repertório como a faixa título, Clareana, Essa Mulher e Aldeia de Ogum. E tive o controle sobre a produção, um produto totalmente feito por mim: letras autorais, meus arranjos, meus violões em todas as faixas, vocal principal, vocais de apoio… enfim é um disco que tem minhas digitais em tudo”.
Ainda na década de 1980, lançou inúmeros discos, entre eles “Água e luz” (1981, que continha o hit “Monsieur Binot”) e “Tardes Cariocas” (1983, uma produção independente que receberia no ano seguinte o prêmio Chiquinha Gonzaga, para os melhores lançamentos fora do circuito das gravadoras), “Negro demais no coração” (1988, um tributo a Vinicius de Moraes com participações especiais de Caetano Veloso, Maria Bethânia e Moraes Moreira, indicado ao Premio Sharp de Musica nas categorias Melhor Cantora e Melhor Disco de MPB), e “Joyce ao vivo” (1989).
Contratada pela tradicional gravadora americana de jazz Verve, lançou em 1990 o disco “Music Inside” e, no ano seguinte, “Language and Love” (com participação especial do legendário Jon Hendricks), cuja versão em português, feita especialmente para o mercado brasileiro, se chamou “Línguas e Amores”. Ambos os discos foram gravados nos EUA.
Em 1993, tornou-se o primeiro artista brasileiro a se apresentar no circuito acid-jazz com um show no The Fridge, em Londres, para um público de 2.000 pessoas. Este show abriu novas perspectivas na carreira de Joyce, com a redescoberta de seu trabalho pelos DJs ingleses. Esse encontro teve repercussões que se estenderam mundialmente, levando o natural suingue acústico de sua música para as mais antenadas pistas de dança do mundo. Entre as músicas “redescobertas” por esse novo e jovem público estavam “Feminina”, “Baracumbara” e principalmente, “Aldeia de Ogum”, que se tornaria um grande hit na cena de música eletrônica. “Meu processo de conquistar um público internacional vem de longa data, entretanto, foi nos anos noventa que se consolidou, principalmente com essa questão dos DJs ingleses redescobrirem meu trabalho. Aldeia de Ogum alçou voos gigantes. Realmente abriram muitas portas”, destaca Joyce.
Em seguida, participou do primeiro tributo a Tom Jobim, realizado em Nova York, no Carnegie Hall. Em 1996, também em NY, fez parte do elenco que se apresentou na premiação do Songwriter’s Hall of Fame – elenco que incluía, entre outros, Liza Minelli, Tony Bennet e James Brown. Em 1997, publicou o livro “Fotografei Você na Minha Rolleyflex”, uma coletânea de crônicas e histórias da música popular brasileira a partir do ponto de vista da compositora.
Em 2001, depois de muitos anos de união informal com Tutty Moreno, os dois casaram-se no civil e ela alterou seu nome para Joyce Silveira Moreno. Em 2005 veio seu primeiro DVD, “Joyce & Banda Maluca – Ao Vivo”, uma co-produção da TV Cultura de SP e da gravadora Biscoito Fino.
Em 2006, dentro de sua turne anual europeia, apresenta-se com seu grupo no festival Jazz à Vienne, na França, este com público de quase 8 mil pessoas no anfiteatro antigo da cidade, em show que virou especial na TV francesa. No ano seguinte, ao completarem 30 anos de seu encontro e de sua união, Joyce e Tutty Moreno decidem fazer pela primeira vez um disco juntos. Nasce o CD “Samba-Jazz & Outras Bossas”, um tributo dos dois à música que embalou a adolescência de sua geração nos anos 1960.
Seu CD “Slow Music”, de 2009, é indicado ao Grammy Latino 2010 como melhor CD de música brasileira. Foi a quarta indicação de Joyce a este prêmio. Aliás este foi um ano bastante prolífico para Joyce, com o lançamento de nada menos que quatro diferentes CDs em diferentes gravadoras e territórios. O primeiro foi “Visions of Dawn”, CD composto de uma sessão de gravações feita em Paris no ano de 1976 com Joyce, Mauricio Maestro e Naná Vasconcelos, nunca antes lançado comercialmente, e que veio à luz pela gravadora inglesa Far Out Recordings. Em seguida, viria “Celebrating Jobim”, o concerto de 2007 com a WDR Big Band, lançado no Japão pela Omagatoki.
Joyce Moreno tem em sua bagagem uma extensa discografia (45 álbuns) e cerca de 400 gravações de músicas, diversas delas interpretadas por outros grandes nomes da música popular brasileira, como Elis Regina, Maria Bethânia, Monica Salmaso, Gal Costa, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Edu Lobo, Emilio Santiago, Boca Livre, Nana Caymmi, Zizi Possi, Elizeth Cardoso, Simone, Leny Andrade etc. No âmbito internacional, foi gravada por nomes de peso como Annie Lennox, Wallace Roney, Black Eyed Peas, David Sanchez, Jon Lucien, Claus Ogerman e outros mais. Recebeu 4 indicações ao Grammy Latino e tem 2 DVDs individuais, além de compilações e participações.
Aos 75 anos, a artista segue extremamente ativa com shows agendados dentro e fora do Brasil. Em entrevista exclusiva ao MPB Unesp, Joyce compartilha sus reflexões: ” não vejo o tempo como um todo ainda, eu vejo vários momentos que formam esse todo. Eu me vejo sendo a mesma pessoa, mas ao mesmo tempo várias pessoas diferentes. Quando você vê as fotos isso fica nítido. Tem foto daquela menina novinha, iniciando a carreira e cheia de sonhos. Depois, aquela que já está na carreira e numa batalha danada. Ou seja, todas as fases que vamos passando. Apesar de minha música ter uma coerência durante todos esses anos, dá pra ver muitos momentos de crescimento, experimentando coisas até achar sua própria linguagem. Assim como nas nossas vidas. Olhando em retrospecto, posso dizer que não me envergonho de nada, me orgulho de tudo que foi feito até o momento. E fiz o que pude fazer dentro das condições do país em que a gente vive. Isso a gente não pode nunca deixar nunca de lembrar. Nos prometeram uma Brasil grandioso, mas muitas vezes ele nos decepcionou. Mas a gente segue firme, tentando manter a coerência artística numa nação que a gente ama loucamente, mas por vezes não nos corresponde muito.”
Confira a entrevista completa no PodMPB Unesp.