No último domingo (8), o Brasil acompanhou a invasão e destruição do Palácio do Planalto, do STF e do prédio do Congresso Nacional por grupos de terroristas, em uma ação sem precedentes na história do país. Os ataques ocorreram exatamente uma semana após a posse do novo presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, e só cessaram após a ação as forças de segurança. Ao longo do dia, começaram a circular pela internet informações e imagens que sugeriam apoio e facilitação, por parte de agentes de segurança, às ações dos terroristas, e o fluxo destas denúncias só cresceu durante a semana. Mas um dos episódios mais inquietantes ocorreu quando os ataques já haviam sido controlados. Após a depredação, boa parte dos atacantes se retirou para o acampamento que estava erguido na frente do Quartel General do Exército. Forças da PM do Distrito Federal se encaminharam então para o acampamento no intuito de prender os seus ocupantes. No entanto, o comando do exército impediu a ação deslocando tropas e até blindados para impedir a ação dos policiais. A imagem veiculada nas telas de todo o país, mostrando as Forças Armadas protegendo alguns dos terroristas que haviam acabado de perpetrar um dos piores atentados já vistos em nossa história, suscitou sérios questionamentos quanto à lealdade e às intenções das Forças Armadas, cujo papel, constitucionalmente definido, é o de servir como protetor do Estado brasileiro.
Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus Marília, o cientista social Paulo Ribeiro da Cunha é pesquisador e autor do livro Militares e Militâncias. Em entrevista ao Jornal da Unesp, ele discute a relação entre militares, política e sociedade brasileira, defende a necessidade de se repensar o perfil das Forças Armadas e policiais e afirma a necessidade de reconhecer estas instituições como atores políticos participantes e necessários para um novo projeto de nação. Leia abaixo a entrevista.
Qual a sua perspectiva sobre a relação entre as Forças Armadas, a política e a sociedade brasileira, especialmente após os eventos de domingo?
Paulo Ribeiro da Cunha: Não mudou minha visão de que os militares são envolvidos por civis na política ao longo da história. Tanto é que sempre defendi a tese de que os militares têm todo o direito de participar da política porque, ou eles se envolvem ou são envolvidos. Então, talvez tenhamos que buscar mecanismos para que isso possa ser reconhecido e visto como algo legítimo no estado democrático de direito. Para tanto, é necessário partir do pressuposto de que essa mudança não significa uma ameaça à democracia. Muito pelo contrário, pode ser um elemento de solidez institucional. Assim é, por exemplo, em vários países da Europa, onde os militares – quando eu digo militares, também digo policiais – têm o direito de fazer greve e de encaminhar suas reivindicações, obviamente fora do exercício da função. Então um primeiro ponto é a necessidade de democratizar as instituições militares. Muitas vezes comete-se o equívoco de achar que elas atuam de forma autônoma em relação à sociedade civil. Como pudemos ver, não é assim; muitas vezes setores políticos da sociedade civil vão bater às portas dos quartéis.
Agora, o enorme perigo observado nos últimos quatro anos foram as tentativas de partidarizar as instituições militares. Esse problema começou com alguns grupos de generais e de militares. Sempre é importante não tratar das forças militares e policiais como algo homogêneo, porque são formadas por vários grupos e tendências distintas. Porém, evidentemente, um desses grupos se associou ao governo Bolsonaro e, a partir desse momento, começou a falar pela instituição numa visão de partidarização. Esse é o perigo, cujas consequências se revelaram, por exemplo, nos atos executados pela Polícia Rodoviária Federal no dia das eleições, no dia da diplomação do presidente Lula, ou mais recentemente nos atos em Brasília.
Vimos a clara conivência de setores da polícia com um setor minoritário do bolsonarismo raíz, na tentativa de criar um fato político que poderia levar a uma exponencialização em escala nacional e, talvez, até à queda do governo
Nessas situações, nós vimos a clara conivência de setores da polícia com um setor minoritário do bolsonarismo raíz, na tentativa de criar um fato político que poderia levar a uma exponencialização em escala nacional e, talvez, até à queda do governo. Mas percebe-se claramente que, a despeito da presença de civis acampados na frente das unidades militares, havia uma certa condescendência das autoridades com relação a esses grupos. Talvez não existisse a mesma condescendência se o MST acampasse na frente da unidade militar, ou mesmo professores e outros trabalhadores.
Então nós estamos no meio do furacão. O ministro da Defesa, José Múcio, pisou na bola, primeiro ao dizer que eram atos democráticos. Não eram atos democráticos: eram atos que afrontam a Constituição, pedindo um golpe de estado. E, depois, fazendo uma falsa avaliação a respeito dos indícios desse grupo minoritário. Temos que lembrar que esse foi um grupo muito minoritário. Fala-se de 4.000 pessoas, mas a rigor é um grupo pequeno que atuou em Brasília com a expectativa de ampliar o movimento, uma vez que Brasília é uma cidade fundamentalmente bolsonarista, com um governador (Ibaneis Rocha, afastado por determinação do STF) claramente bolsonarista e com o secretário de Segurança (Anderson Torres) que foi ministro de Bolsonaro. Este último assumiu e desmobilizou todo o aparato de comando da polícia e saiu de férias. Ou seja, ele criou aquilo que os sociólogos chamariam de anomia, uma falta de normas, de poder.
Eu tenho a tese de que talvez a ideia do grupo que financiou esses movimentos fosse literalmente ocupar o Congresso Nacional e criar um fato político. Algo muito parecido com aquilo que aconteceu na Ucrânia, com a ocupação da Praça Maidan, que acabou levando à queda do governo. Outro fato semelhante aconteceu na Praça Tahrir, no Cairo, e o governo também acabou caindo. Talvez a ideia passasse por isso. Mas acredito que perderam completamente o controle da situação e, ao perder o controle da situação, perderam a legitimidade enquanto atores políticos para atuarem e intervirem. Não que eu concorde com essa leitura, já que eram fundamentalmente antidemocráticos e defendiam a ditadura. Porque aquilo que poderia ser uma ação política, contestada e questionada, de ocupar o Congresso Nacional e os entornos, passou para o vandalismo, para a roubalheira e para a depredação, algo que nós nunca vimos. Não tem paralelo nos anais da história, nem em períodos de revolução.
Quais são os empecilhos para avançar em direção à democratização das Forças Armadas?
Paulo Ribeiro da Cunha: O que é a democratização das Forças Armadas? É tirar das instituições o elemento punitivo que pode ser, e muitas vezes é, utilizado para castigar pessoas que pensem diferente, como no caso dos militares de esquerda. Há vários exemplos disso na história. Os militares foram a categoria proporcionalmente mais atingida pelo Golpe Civil Militar de 1964, por exemplo. Então, a primeira democratização é tirar das Forças Armadas esse componente persecutório no plano das ideias, da formação e ter clareza de que as Forças Armadas e policiais têm como papel a defesa do Estado e a defesa da sociedade e não são instrumentos de governo.
As PMs, por exemplo, já tiveram mais de 400 greves de 1988 para cá. É preciso reconhecer isso. Então temos também que buscar o direito de que eles possam se manifestar sem que isso resulte no comprometimento de sua atuação profissional ou da missão que lhes é atribuída. E incluir inclusive o direito de se associarem, de fazer greve.
Para isso, precisamos quebrar um segundo paradigma: o de que esses direitos não são necessariamente algo ruim para a democracia. Inclusive podem ser algo muito positivo. Precisamos buscar formas para que eles possam atuar dentro de um estado democrático de direito sem que, ao mesmo tempo, isso comprometa ou ameace esse estado democrático de direito. Por exemplo, conheço um grupo de policiais cidadãos que organizam um movimento de policiais antifascistas. Eles têm a visão de que os policiais devem adotar outra concepção de segurança, devem possuir uma visão de direitos humanos. Essas pessoas são muitas vezes punidas por defender essas ideias.
É isso o que eu chamo de democratizar as instituições. Esse processo deve ser visto como um elemento positivo para o país, o reconhecimento deles como atores a serem reconhecidos politicamente. Porque, do ponto de vista da história, quando os militares e policiais não participam da sociedade eles são chamados a participar. Nós vimos isso recentemente com a militarização do governo Bolsonaro.
Ao longo do governo anterior, vimos militares de alto escalão demonstrando apoio ao então presidente Jair Bolsonaro repetidas vezes. Como isso pode impactar na relação das Forças Armadas e das polícias com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva?
Paulo Ribeiro da Cunha: Bom, em primeiro lugar, acho que é preciso isolar esses militares. Não é um elemento persecutório, mas, veja, alguns dos militares, alguns dos bolsonaristas mais evidentes, cresceram ao longo desse governo e alguns deles se situaram inclusive em seu círculo mais íntimo. É preciso ter um cuidado maior com o fato de que há uma relação que é política, mas não se pode abrir mão do pressuposto de que o comandante em chefe deve obediência à Constituição e a Constituição reflete o povo.
Então é necessário primeiro colocar os militares no seu lugar, mas também reconhecer que eles têm sua contribuição. Eu costumo dizer que se no governo Bolsonaro havia 6.000 militares ocupando cargos públicos, na época do governo Dilma esse total ficou entre 2.000 e 2.500. Veja, eles têm uma contribuição a dar em várias áreas, mas é preciso construir um diálogo profissional. Ao mesmo tempo, acho que o governo Lula não quer enfrentar a questão do exercício da hierarquia e da disciplina para situá-los como atores políticos, e reconhecer que são participantes do projeto de uma nação brasileira, sem que sejam apenas apêndices de um governo e de um estado.
Um segundo ponto envolve trazer o debate da questão dos militares para a sociedade e discutirmos quais Forças Armadas queremos. Se você olhar os dados, os governos Lula e Dilma foram os que mais investiram nas Forças Armadas, mas não tocaram no cerne da questão que é a submissão deles ao poder civil. Isso tem que ficar muito claro. Então temos que aproximar esse diálogo da sociedade e dos setores políticos, principalmente a esquerda. Ela sempre lidou mal com a questão dos militares; ela também precisa estabelecer e aprofundar um diálogo com esses setores.
Há um debate grande sobre desmilitarização da Polícia Militar, que inclui também rever a formação dos PMs. A democratização também passa por esse ponto?
Paulo Ribeiro da Cunha: Com certeza. É fundamental que se faça essa reformulação. Temos que repensar como deve ser a formação dos nossos oficiais do ponto de vista de quais as Forças Armadas que queremos. Queremos Forças Armadas mais profissionais? Precisamos do serviço militar obrigatório? É necessário possuirmos quase 50 bases aéreas? Qual é a concepção de defesa que queremos ter?
Quanto à formação nas escolas militares, acho que ela tem problemas sérios, seja nas Forças Armadas ou na polícia. Um caso emblemático é a Coluna Prestes. Ela é estudada em várias academias militares do mundo, e aqui não é. Um de seus expoentes na época, o Marechal Cordeiro de Farias, que aliás veio para o campo conservador, ele mesmo disse no seu último depoimento para um grupo de pesquisadores do CPDOC que era a primeira vez que ele falava sobre a Coluna Prestes no Brasil para brasileiros. Das outras vezes ele tinha falado para norte-americanos. Veja bem, algo que é estudado no mundo não é estudado aqui, porque Prestes, depois, aderiu ao comunismo.
Isso poderia também valer como um exemplo paradigmático para a Polícia Militar. Em São Paulo, houve o general Miguel Costa. Foi um policial de esquerda, socialista, democrata, uma figura extraordinária. Uma parte importante da sua história foi na greve de 1917, na qual ele se recusou a reprimir os operários porque ele conhecia a sua condição de vida. É um personagem que deveria ser resgatado e cuja trajetória política seria um paradigma como exemplo para as novas gerações de militares. Então são elementos importantes da nossa história, que são riquíssimos, que podem contribuir na formação de outro tipo de militar, outro tipo de profissional. Claro que isso é desejável dentro de outro projeto de Brasil.
Quais você acha que podem ser os desdobramentos para a relação do governo com os militares após os eventos de domingo?
A médio e curto prazo, acho que o governo saiu fortalecido. Isso foi um tiro pela culatra, não só pela repulsa às ações, mas porque trouxe ao governo um fortalecimento político que pode se converter em capital para implementar algumas medidas que, até então, eram muito tímidas.
Agora, o que fazer? Ainda não há muita clareza. Acredito que o governo pode começar a dar sinais da necessidade de levar em conta a questão dos militares na agenda nacional. Eu tenho uma leitura, posso estar sendo um pouco otimista, de que esse foi o ápice do bolsonarismo, no caso sem Bolsonaro, e o começo do fim. Isso não quer dizer que essa expressão política, mais nefasta do bolsonarismo, vai acabar. Ela vai se reajustar e se reconfigurar em outros atores e em outros momentos. Temos hoje uma direita muito clara, muito presente, será preciso aprender a lidar com ela dentro do espaço do estado democrático de direito. Espero que a conciliação não passe a mão na cabeça, que se mostre que a lei vale para todos.
Vamos ter que acompanhar quais serão os desdobramentos e qual reajuste de foco será preciso. Acho que, nesse ponto, o papel dos militares deve ser levado em conta. Sem subserviência, sem reconhecê-los como cidadãos melhores, mas sabendo que eles têm uma contribuição a dar. Com certeza, o Brasil do dia seguinte aos eventos de domingo não é mais o Brasil das eleições.
Foto acima: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil