O saneamento básico é o conjunto de serviços que engloba o abastecimento de água, o esgotamento sanitário, o manejo dos resíduos sólidos e a drenagem e manejo das águas pluviais. Apesar de ser um direito garantido pela Constituição, e a universalização do acesso estar descrita na Lei nº 11.445/2007, ainda hoje grande parte dos brasileiros vive sem esses serviços. Segundo o Instituto Trata Brasil, são quase 100 milhões de brasileiros, o equivalente a 45% da população, que não têm acesso ao tratamento de esgoto.
Pensando no dilema engedrado pela desigualdade no acesso ao saneamento básico, que atinge principalmente pessoas mais pobres, quatro pós-graduandas do programa de engenharia civil e ambiental com foco em saneamento básico da Unesp desenvolveram o projeto What a Waste (Water)! para participar do Geneva Challenge 2022, cujo tema é “Os Desafios da Redução da Pobreza”. O projeto foi baseado em linhas de pesquisa já desenvolvidas pelas pós-graduandas. A cerimônia de premiação do desafio internacional ocorreu nesta terça-feira, 22 de novembro, na Suíça. O projeto da Unesp ficou em segundo lugar –dois projetos empataram em primeiro e outros dois ficaram em terceiro.
A proposta concebida pelas pesquisadoras unespianas tem como objetivo desenvolver estações descentralizadas de tratamento de esgoto em favelas brasileiras e foi selecionada como uma das cinco finalistas do desafio, representando a América Latina. Constituem partes centrais do projeto a educação ambiental e a participação da comunidade local na implantação das estações de saneamento descentralizadas. A lógica é simples: quanto maior for o engajamento, mais os moradores compreenderão a importância do saneamento básico na vida delas e maiores as chances de alcançarem a autonomia na gestão do sistema. “É com esse viés de suprir a demanda por esgotamento sanitário que vem o projeto delas, que apresenta um sistema descentralizado onde a própria comunidade pode fazer a gestão desse tratamento”, explica a orientadora de uma das pesquisadoras, a professora Fabiana Alves Fiore Pinto, do câmpus de São José dos Campos.
O Geneva Challenge é um desafio global para pós-graduandos financiado pelo diplomata suíço Jenö Staehelin e apoiado pelo falecido Kofi Annan, secretário-geral da ONU de 1997 a 2006 e Nobel da Paz em 2001. O desafio busca estimular a análise de problemáticas internacionais e a proposta de resoluções interdisciplinares para estas questões. Atualmente na nona edição, a competição propõe anualmente uma temática diferente, podendo participar alunos de todo o mundo, em equipes de 3 a 5 estudantes. Apenas cinco projetos vão para a final, e cada um representa uma região do planeta. Segundo a organização, em 2022 foram 279 equipes inscritas, integradas por 1.065 alunos de pós-graduação de 64 nacionalidades, e provenientes de cem universidades diferentes.
Sistema descentralizado de tratamento de esgoto
A iniciativa de participar do desafio veio de Marcella Moretti Ferreira, que estuda em seu mestrado estações descentralizadas de tratamento de esgoto. Ela ficou sabendo do desafio através de um email enviado pela Assessoria de Relações Externas (Arex) da Unesp e convidou uma colega de disciplina do mestrado, Thalita Lacerda dos Santos, para fazer parte do projeto. Em sua pesquisa, Thalita estudou as condições ideais de microalgas e bactérias para tratamento de esgoto.
Para fechar o time, as pesquisadoras recrutaram Luiza Goehler, que estudou partículas de microplásticos nas águas de uma área urbana com elevada impermeabilização do solo e alta densidade demográfica, e Gabriela Santos Cardozo, que avaliara as condições para crescimento de microalgas sob a perspectiva da eficiência para o tratamento de esgoto. Foi com a unificação dos saberes de todas que o projeto tomou forma.
“A ideia do projeto surgiu desse trabalho que desenvolvi sobre a desigualdade no acesso ao saneamento básico, no qual foi identificado que a população mais pobre é a mais impactada, principalmente quem mora em assentamentos informais. E optei por trabalhar com estações descentralizadas porque enxergo como uma opção muito viável para atender essas pessoas com saneamento”, conta Marcella Ferreira.
A proposta do projeto é trabalhar com uma nova visão de esgotamento. Nas estações descentralizadas, utiliza-se um tanque séptico para a primeira etapa do tratamento e uma tecnologia chamada wetlands (alagados construídos), na qual são usadas plantas escolhidas de acordo com as características do efluente para que ocorra nas raízes dessas plantas a finalização do tratamento iniciado no tanque séptico. Após essas duas etapas obtêm-se um efluente tratado no qual houve bom resultado na remoção de matéria orgânica, e com possibilidades para reuso.
O sistema traz também, segundo as pesquisadoras, um ganho “paisagístico” em suas áreas de aplicação. “Além de possuir todo um processo de tratamento, que é reconhecido tecnologicamente como um processo eficiente, a gente tem uma questão urbanística muito importante para as favelas e para as pessoas que moram ali”, complementa Thalita dos Santos.
A ideia é, em paralelo à implantação do sistema, compartilhar com a população uma visão menos estigmatizada do que seja o saneamento básico e, junto com ela, a compreensão do ciclo de tratamento como um todo e da importância do processo para o dia a dia das pessoas. Um princípio do trabalho é entender o Brasil como um país com realidades tão distintas que é possível pensar em alternativas que estão além dos métodos mais tradicionais. Em outras palavras, o mesmo modelo pode não ser aplicável para todos os lugares.
Participação da comunidade
Outra parte importante do projeto desenvolvido pelas pesquisadoras é a inclusão da comunidade nesse processo, prioritariamente mulheres e pessoas não brancas, por compreenderem a importância da igualdade de gênero e das questões raciais. Daí a formação de pessoas para a operação e a manutenção do sistema ser algo central no projeto. Com isso, para além da autonomia conferia à própria população, capaz de fazer a gestão do sistema de tratamento de esgoto, a implementação da proposta pode também gerar novas oportunidades de emprego.
O processo de educação ambiental proposto tem como finalidade explicar a importância do saneamento e o quanto a sua falta afeta nas questões de saúde e socioeconômicas, já que existem diversas doenças de veiculação hídrica que muitas vezes impedem essas pessoas de trabalharem e estudarem, acentuando um ciclo de pobreza pelo processo de adoecimento dos moradores.
O combate à pobreza é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU. A proposta da Unesp foi relacionada pelas pesquisadoras, direta ou indiretamente, com 13 dos 17 ODS, entre os quais “Água Potável e Saneamento”, “Igualdade de Gênero”, “Redução de Desigualdades” e “Cidades e Comunidades Sustentáveis”.
“A gente acredita que, através do saneamento, podemos mudar vidas. Então foi realmente para mudar a vida dessas pessoas, para que elas tenham melhor qualidade de vida, melhor saúde, melhor tudo, que propusemos levar o saneamento básico para elas”, comenta Gabriela Cardozo.
Os projetos selecionados para a final do desafio foram revisados por um júri independente, composto por especialistas com experiência acadêmica e governamental e agentes do setor privado. A apresentação dos finalistas ocorre de forma presencial em Genebra. Agora, a equipe de pós-graduandas da Unesp pretende conseguir financiamento para colocar o projeto em prática. “Para nós, brasileiras, já existe uma vontade de retribuir para a sociedade que contribuiu para a nossa formação. Se a sociedade está investindo na minha formação, é meu dever, é minha obrigação retribuir socialmente de alguma forma com esse conhecimento adquirido”, diz Luiza Goehler.
O texto foi atualizado em 22 de novembro para anunciar o segundo lugar do projeto na premiação.
Imagem de abertura: Agência Brasil – Arquivo