A fusão entre duas estruturas de pesquisa e conservação de cervídeos localizadas no estado de São Paulo deu origem ao maior centro do planeta dedicado exclusivamente a esses animais. A iniciativa envolveu a integração de recursos humanos, materiais e dos animais pertencentes ao Centro de Conservação do cervo-do-pantanal (CCCP), ligado à Tijoá Energia, ao Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos (Nupecce), que desde 1994 funciona no câmpus da Unesp em Jaboticabal.
Com o acordo, o centro da Unesp, que já abrigava 58 cervídeos de oito espécies diferentes, recebeu outros 39 cervos-do-pantanal. Esse processo levou aproximadamente seis meses e envolveu a adaptação dos animais ao novo ambiente e um período de quarentena para a eliminação de patógenos. Diferente das espécies de cervídeos que já habitavam o Nupecce, como o veado-bororó ou o veado-catingueiro, e que costumam pesar entre 12 e 40 quilos, os recém-chegados cervos-do-pantanal podem superar os 100 quilos. Com a chegada dos novos animais, o centro passou a abrigar indivíduos pertencentes a todas as espécies de cervídeos existentes no Brasil.
Investimento de R$ 4 milhões
Para abrigar os novos animais foi necessário ainda a adaptação e a ampliação da infraestrutura do centro de Jaboticabal. Isso incluiu a ampliação da área total dedicada aos animais de 1,5 para 5,5 hectares, ou o equivalente a 550.000 m2 . A estrutura para os animais inclui baias localizadas dentro de galpões e abrigadas das intempéries, mas também piquetes com áreas abertas em que os animais têm maior liberdade para circular, ainda que permanecendo sob o controle de veterinários, pesquisadores e equipe técnica. Para delimitação das baias e cativeiros, foram construídos seis quilômetros de muros, e uma área de prado está sendo cultivada com o intuito de fornecer alimento para os animais em cativeiro.
Os recursos para a reforma foram providos pela empresa Tijoá Energia e totalizaram R$ 4 milhões. O contrato entre Nupecce e CCCP Tijoá ainda prevê repasses anuais de R$ 1 milhão para a manutenção da estrutura e a contratação de uma equipe de apoio técnico.
Ainda que originalmente ambas as instituições tenham o viés de conservação de cervídeos, as suas finalidades são distintas: enquanto o centro da Unesp tem como atividade principal a pesquisa científica em diversas áreas a respeito desses animais, o CCCP destina-se exclusivamente à conservação da espécie cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus), com a perspectiva futura de reintegração dessa espécie no ambiente. Ainda assim, a expectativa é que a integração dos dois centros em uma mesma área traga benefícios para ambas as partes.”Essa fusão acontece do ponto de vista formal, uma vez que os dois centros continuam existindo, mas vieram para o mesmo lugar e os animais estão alojados no mesmo ambiente e cuidados pela mesma equipe”, diz o professor José Maurício Barbanti, coordenador do Nupecce.
Na avaliação do pesquisador, a fusão com os criadouros conservacionistas geridos pela Tijoá Energia e o importante aumento na população de cervídeos do centro que ela ocasionou, permitem aos pesquisadores da Unesp empreender estudos mais amplos, embasados em uma maior amostra. “Antes, dependendo da época do ano, tínhamos entre quatro a seis cervos-do-pantanal, por exemplo. Agora, temos pelo menos 40 cervos-do-pantanal o tempo todo, o que nos permite fazer pesquisas de alto nível, envolvendo um número maior de indivíduos”, explica Barbanti.
Em virtude da expertise acumulada no manejo de cervídeos, o Nupecce é a sede de um programa nacional de conservação específico para a espécie cervo-do-pantanal. Entretanto, quando os animais se reproduziam era preciso enviá-los a outros criadouros ou a instituições parceiras, por conta das restrições de estrutura para abrigar esses animais. Agora, segundo Barbanti, o centro tem capacidade de abrigar com folga pelo menos 60 cervos-do-pantanal. Essa nova população já está sendo objeto de pesquisas vinculadas a dois projetos de mestrado e um de doutorado, e outros dois doutorados devem se iniciar proximamente.
Entre as áreas de pesquisa em que o centro atua estão a pesquisa básica, o estudo da ecologia dessas espécies, abordagens de manejo de animais em cativeiro e o desenvolvimento de tecnologias reprodutivas. “Técnicas para coleta de sêmen ou de inseminação artificial, por exemplo, que nós aplicamos muito bem em outros animais, ainda não foram completamente dominadas para os cervídeos”, lembra o professor. “Como dispúnhamos de uma amostra pequena de animais, nossos experimentos eram bastante limitados. Aprimorar essas técnicas é algo importante, especialmente porque muitas espécies de cervídeos estão em risco de extinção.”
População deslocada por barragem
Já o CCCP Tijoá foi criado nos anos 90, em um esforço de conservação de uma das últimas populações de cervo-do-Pantanal do estado de São Paulo que habitava uma região de várzea do Rio Tietê posteriormente alagada para a construção da barragem da Usina Hidrelétrica Três Irmãos. Na ocasião, foi determinada a captura e conservação dos animais em cativeiro, para a posterior reintrodução da espécie à vida selvagem. Com a privatização da Usina, em 2014, e a aquisição do ativo pela Tijoá Energia, a empresa assumiu este passivo ambiental e iniciou as tratativas para a fusão com o NUPECCE.
A reintrodução de animais em cativeiro de volta à vida livre com sucesso é um processo complexo e que, no caso do cervo-do-pantanal, ainda vai demandar um longo processo de pesquisa e investimento, explica Eveline Zanetti, médica veterinária responsável pelo CCCP Tijoá. “A fusão com o Nupecce nos dará acesso a um manejo mais aprimorado desses animais, permitindo, por exemplo, explorar uma estrutura mais apropriada para coleta e preservação de material genético”, diz ela. Eveline Zanetti é egressa do programa de pós-graduação da Unesp, onde foi orientada por Barbanti, e é especialista em reprodução assistida e conservação de animais selvagens.
Uma das complexidades da conservação em cativeiro de espécies selvagens com vistas à sua reintrodução à natureza é a gestão do material genético dos animais que estão confinados. Há uma preocupação, por parte dos especialistas, de que não ocorra uma seleção genética de animais “acostumados” a viver em cativeiro, pois isso implicaria uma maior dificuldade para que se adaptassem novamente à vida livre. “Para muitas espécies sob risco de extinção no mundo, como o mico-leão-dourado ou a ararinha-azul, para as quais praticamente não existem indivíduos em vida livre, observa-se que a população começa a se restringir e ficar muito pequena”, explica a médica veterinária. Isso é preocupante porque populações com um pequeno número de indivíduos correm o risco de perda da diversidade genética e, portanto, da capacidade de se adaptar. Além disso, a endogamia causada por sucessivos acasalamentos consanguíneos pode levar a um declínio ou até extinção da população. “Nesse caso, uma alternativa para a sobrevivência da espécie é a conservação em cativeiro, com a expectativa de conservar seu material genético. A ideia é conservar os indivíduos e as populações de forma a manter a variabilidade genética da população, permitindo que, em algum momento, seja feita sua reintrodução na natureza”.
O convênio assinado com o CCCP Tijoá prevê uma revisão do contrato dentro de cinco anos, quando os pesquisadores esperam já ter pelo menos 60 cervos-do-Pantanal abrigados na estrutura, e seja possível começar o processo de devolvê-los à vida livre. “Nossa proposta é levar essa população de 40 e poucos indivíduos até 60, e a partir de então começar um processo de reintrodução nos poucos remanescentes que ainda restam.na bacia do Tiete”, afirma o coordenador do Nupecce. “Dessa forma, associamos a parte que o CCCP Tijoá tem de evolução da população com o nosso interesse em pesquisas com foco na reintrodução.”
Para Zanetti, a aproximação com a estrutura do câmpus de Jaboticabal também pode colaborar com outros aspectos que envolvem o retorno desses animais à vida livre. “Ao longo desses cinco ou seis anos, muitos outros estudos poderão ser feitos, desde pesquisar e selecionar a área em que ocorrerá a soltura desses cervos-do-Pantanal até trabalhar iniciativas de educação ambiental no entorno dessa área”, diz ela. “Não adianta recuperar uma espécie se não houver a conscientização da comunidade do entorno para impedir que os animais eventualmente sejam caçados quando os animais forem retornados à vida livre. Isso já aconteceu em outros países”, alerta.
Desde o início de suas atividades, em 1994, o Nupecce reuniu um reservatório de diversidade genética com amostras de células vivas congeladas de mais de mil cervídeos em geral. O primeiro passo para a construção desse banco genético, ainda nos anos 1990, envolveu viagens por 200 mil quilômetros de estradas, com o objetivo de colher amostras de todos os cervídeos em cativeiro no país. Ultimamente, a equipe do Nupecce ampliou a área de atuação e tem percorrido países de toda a América Latina para a descrição de novas espécies e coleta de material genético, em um trabalho que envolve registro fotográfico, anotação de medidas de tamanho e peso e coleta de amostras de pelo, fragmento de pele e sêmen. “Nós estamos trabalhando em colaboração com outros grupos de pesquisa e instituições parceiras para tentar gerar mecanismos que aproveitem da melhor forma possível a estrutura genética que temos nesse banco”, diz Barbanti.
Foto acima: Blasteros dichotomus. Crédito: acervo pessoal.