Uma mobilização social representativa como há muito não se via e uma pluralidade de visões com mensagens enfáticas em defesa do Estado Democrático de Direito e do espírito constitucional pactuados na Carta Magna de 1988, resposta à ditadura que a antecedeu, marcaram a leitura dos manifestos de reafirmação da democracia brasileira que ocorreu na Faculdade de Direito da USP neste 11 de agosto de 2022.
Realizado no dia que marca a instituição dos primeiros cursos jurídicos no Brasil, e a menos de um mês do 7 de setembro que celebrará o bicentenário da Independência, o ato pela democracia reuniu cerca de 1.200 pessoas dentro das Arcadas, a lotação máxima prevista pelos organizadores, além de outros milhares de manifestantes que tomaram o Largo São Francisco e puderam acompanhar o evento por um telão instalado em frente à entrada principal do prédio histórico, símbolo da luta contra investidas autoritárias ocorridas no período republicano do país.
No local, foram lidos o manifesto “Em defesa da democracia e da Justiça” e a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, tendo esta batido a marca de 1 milhão de pessoas signatárias no final da noite, após atos simultâneos ocorridos pelo país ao longo do 11 de agosto.
“Tínhamos uma percepção de que os setores da sociedade brasileira, por mais diversos que fossem – setor financeiro, industrial, mesmo setores do agronegócio, somados às centrais sindicais e aos movimentos sociais – certamente levariam a uma sinalização muito clara de que o Brasil não tolera qualquer ameaça à democracia. O ato em si é simplesmente uma representação dessa responsabilidade que a sociedade brasileira tomou nas suas mãos. A democracia não nos será furtada”, diz Oscar Vilhena, advogado, professor universitário e coordenador do comitê dos manifestos lidos no Largo São Francisco.
O evento foi marcado pela presença de lideranças do empresariado nacional e do terceiro setor, de representantes dos estudantes, de centrais sindicais e de movimentos sociais e contou com a presença dos reitores das três universidades públicas estaduais paulistas – USP, Unesp e Unicamp – e de signatários da Carta aos Brasileiros redigida pelo professor Goffredo da Silva Telles em 1977 contra o regime de exceção que vigorava na época, documento que acabou tornando-se um dos marcos do processo de reabertura política.
“Queremos eleições livres e tranquilas. Queremos um processo eleitoral sem fake news, pós-verdades ou intimidações. A universidade brasileira é o oposto do autoritarismo. A universidade é a casa da pesquisa e do conhecimento. A universidade cultiva o pensamento crítico e diverso, assim como cultiva ciência, filosofia e as artes. A USP, a Unesp e a Unicamp têm o compromisso de vida com a liberdade acadêmica”, afirmou o reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Junior, na abertura do ato.
“O Brasil não abre mão do Estado Democrático de Direito“
A primeira parte do evento foi realizada no salão nobre da faculdade, local em que foi lido o manifesto “Em defesa da democracia e da Justiça”, que congregou 107 entidades representativas do empresariado nacional, entre as quais a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), dos trabalhadores, do terceiro setor e do mundo acadêmico, entre as quais a Unesp.
“Após a redemocratização, vivemos um período bastante profícuo, de avanços sociais, científicos, de inclusão social. O país se modernizou, reduziu desigualdades, melhorou os índices de desenvolvimento humano, de saúde. Infelizmente, a gente vê há alguns anos, mais recentes, sucessivos ataques à democracia e hoje é uma demonstração, repetindo o ato tão nobre de 1977, de que o Brasil não abre mão do Estado Democrático de Direito”, afirmou o reitor da Unesp Pasqual Barretti.
A leitura da carta que reuniu mais de cem pessoas jurídicas foi feita por um dos signatários da Carta aos Brasileiros de 1977, José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e presidente da Comissão Arns, criada para defender os direitos humanos. Dias definiu o momento como um “grandioso” encontro entre representantes do capital e do trabalho em defesa da democracia. Antes dele, 11 lideranças das mais diversas inclinações políticas e origens sociais foram ao púlpito do salão nobre para manifestações em prol do regime democrático.
“O combate a todas as mazelas e desigualdades também dependem de uma democracia que funcione”, afirma o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central.
Na representação de entidades ligadas ao setor produtivo e ao terceiro setor, discursaram o economista Horácio Lafer Piva e a socióloga Neca Setúbal, respectivamente. Uma das mais aplaudidas foi a advogada Beatriz Lourenço do Nascimento, da Coalizão Negra por Direitos, que leu um manifesto chamado “Nós não andamos sós”, iniciado e encerrado com a frase “enquanto houver racismo, não haverá democracia”, também estampada em camisetas de alguns dos presentes ligados ao movimento negro.
Miguel Torres, presidente da Força Sindical, falou em nome de oito centrais sindicais e, em seu discurso, quebrou o protocolo ao pedir que as centenas de pessoas presentes no salão nobre dessem as mãos e simulassem uma votação pela democracia, tal qual é feito no rito de uma assembleia de trabalhadores. “Somos mais de 60 milhões de trabalhadores no Brasil e estamos diretamente envolvidos na defesa da democracia. Não podemos imaginar o país voltar ao retrocesso, não podemos imaginar o país sofrendo ataques diários ao sistema eleitoral, à sociedade civil organizada, aos nossos direitos”, disse Miguel Torres.
Telma Aparecida Andrade Victor, secretária de formação da Central Única dos Trabalhadores em São Paulo; Francisco Canindé Pegado, da União Geral dos Trabalhadores; Bruna Brelaz, presidente da União Nacional dos Estudantes; e Raimundo Bonfim, coordenador nacional da central de movimentos populares, também discursaram.
“Para nós, nunca foi tão necessária e importante a unidade da sociedade civil e dos movimentos populares na defesa do sistema eleitoral e da democracia, da liberdade de imprensa e de todas as formas de expressão (..) Democracia é nosso alicerce para lutarmos por trabalho, renda, comida, moradia, saúde e educação”, afirmou Raimundo Bonfim.
A presidente da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Patrícia Vanzolini lembrou a importância de comunicar os valores democráticos aos mais jovens, que já nasceram ou cresceram depois da redemocratização do país, sem sentir as restrições da ditadura civil-militar de 21 anos (1964-1985). Na leitura dos documentos, em especial na carta lida no pátio interno, foi possível ver estudantes emocionados.
“Entendo que o canto sedutor dos autoritarismos que ecoa nas aflições sociais e econômicas da sociedade encontre espaço naqueles que não viveram sem democracia, que não sentiram como é difícil viver sem liberdade de opinião, de imprensa, sem garantias individuais, sem a independência dos poderes. Só se sente falta de algo ou de alguém quem já perdeu algo ou alguém”, afirmou a presidente da OAB-SP.
Horizonte democrático
Após os discursos no salão nobre e a leitura do manifesto, foi lida a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” no pátio interno das Arcadas, decorado com faixas verde-amarelas em favor da democracia e com o lema também visto nos botons utilizados por muitos dos participantes: “Estado de Direito Sempre!” –uma grande faixa com os mesmos dizeres foi presa à fachada do prédio histórico, de frente para a rua. A leitura da carta foi realizada de maneira compartilhada pelas professoras Eunice de Jesus Prudente e Maria Paula Dallari Bucci, da Faculdade de Direito da USP; pelo ex-ministro do Superior Tribunal Militar Flávio Flores da Cunha Bierrenbach e pela professora Ana Elisa Bechara, vice-diretora da Faculdade de Direito da universidade.
Na abertura e no encerramento do ato, que durou cerca de três horas, houve a execução do Hino Nacional Brasileiro.
“O ato em si é extremamente representativo e recupera o papel que a USP, a São Francisco e as universidades tiveram na luta pela democracia no final da década de 70. É uma prova da força da nossa democracia e do papel que ela teve no desenvolvimento do país ao longo desses mais de 30 anos. Não podemos perder esse horizonte”, diz o reitor da Unicamp Antonio José de Almeida Meirelles.
Segundo Oscar Vilhena, até chegar à redação final, a carta teve “duas ou três versões”, sempre norteadas pelo senso cívico e sem qualquer tentativa de inserir algo que pudesse fazê-la perder as balizas constitucionais que ajudaram na convergência de princípios que unem as pessoas em torno do campo democrático do país.
“É um ato especial, uma mobilização plural e ampla da sociedade. É uma reiteração do valor da democracia e do Estado de Direito, uma expressão de geração de poder que leva à resistência a qualquer tentativa, desejo ou aspiração de denegar as regras do jogo democrático, inclusive eleições livres conduzidas pelas urnas e pelo tribunal eleitoral”, diz o professor Celso Lafer, ex-chanceler brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras que receberá neste semestre o título de Doutor Honoris Causa da Unesp.
Diretor da Faculdade de Direito da USP, o professor Celso Campilongo discursou tanto no salão nobre quanto no pátio interno das Arcadas, fazendo uma defesa enfática do regime democrático. “Num Estado Democrático de Direito, o Direito controla e dosa o uso da força. A única força que pode dizer algo a respeito do processo eleitoral brasileiro é a força do eleitor, é a força do brasileiro e de ninguém mais.”
Imagem de abertura: Roberto Parizotti/Fotos Públicas