Desde 1940, o termo “amarelo” designa uma das cores empregadas para identificar as etnias do Brasil, segundo as categorias propostas para autodeclaração no censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com os dados mais recentes, 42,7% dos brasileiros são brancos, 52,2% negros (pardos e pretos) e 1,1% indígenas ou amarelos – uma minoria étnica, historicamente invisibilizada nas discussões nacionais, mas que vem conquistando visibilidade a partir dos anos 2000 com impulso de movimentos de ativistas, artistas e acadêmicos asiático-brasileiros.
Amarelo é como se declaram muitos descendentes de povos do leste asiático, região geográfica que compreende China, Coreia do Sul, Coreia do Norte, Japão, Mongólia, a ilha de Taiwan e os territórios de Hong Kong e Macau. Há muito tempo imigrantes dessas nações (principalmente Japão, China e Coreias) cruzaram o mundo, mas até hoje muitos deles e descendentes são vistos como “estrangeiros” no Brasil.
Ao longo da década de 2010, organizaram-se na internet brasileira diversos coletivos de jovens para discutir questões como identidade, discriminação e xenofobia. Entre as iniciativas estão o grupo Estudos Asiático-Brasileiros (no Facebook) e os coletivos Yo Ban Boo (no YouTube), Plataforma Lótus, Perigo Amarelo e Asiáticos pela Diversidade, entre outros.
O coletivo Asiáticos pela Diversidade foi fundado por Rodrygo Yoshiyuki Tanaka, 34, formado em letras pela Unesp, campus de Assis, e atualmente professor assistente de língua japonesa na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). A iniciativa, que começou como uma página na internet para acolher e dar mais visibilidade a indivíduos LGBT+ de ascendência asiática, em 2015, passou a organizar encontros e atividades culturais em ambientes como a Casa 1, um centro de acolhimento e cultura LGBT em São Paulo. Em 2017, a mobilização desdobrou-se no Grupo de Estudos Asiáticos pela Diversidade, que se reunia quinzenalmente para ler e discutir textos relacionados a raça, sexualidade, identidade de gênero e suas intersecções. “Eram textos de acadêmicos e ativistas”, explica Tanaka, com o objetivo de fomentar debates dentro e fora das universidades.
Essa mobilização fez que, com o tempo, passassem a ser vistos como referência, além de acadêmicos como a historiadora Marcia Yumi Takeuchi, autora do livro O perigo amarelo (Edusp, 2008), também alguns “artivistas” como Ing Lee, Leo Hwan e Tami Tahira. Os encontros que combinavam arte, ativismo e universidade, também se destacaram na coletânea Explosão feminista (Companhia das Letras, 2018), organizada pela socióloga Heloisa Buarque de Hollanda, que conta com um capítulo sobre feminismo asiático assinado pela antropóloga Laís Miwa Higa, a artista visual Caroline Ricca Lee (fundadora da Plataforma Lótus) e a estudante Gabriela Akemi Shimabuko, organizadora do projeto Perigo Amarelo.
Japonês no Brasil, brasileiro no Japão
“o período de 2015-2016 marcou um momento de uma juventude mais politizada, com mais consciência sobre o lugar das comunidades leste-asiáticas na sociedade brasileira. Não ocupamos espaços privilegiados de pessoas brancas, mas temos mais privilégios que pessoas negras e indígenas. Mas nossas narrativas não eram contadas por nós. Era preciso descolonizar o discurso”, diz Tanaka. “A população amarela é cerca de 1% do país; há grupos dispersos, apesar de concentrações em São Paulo, Pará e Paraná. A internet foi essencial para essa articulação.” O grupo passou por “um hiato” no ano passado, mas há expectativa de retomar atividades agora em 2022.
Foi em 2015 que a antropóloga Isis Caroline Nagami, 37, que é doutoranda em ciências sociais na Unesp, campus de Araraquara, soube de uma iniciativa de pesquisadores da universidade para discutir questões relacionadas a violência contra leste-asiáticos, xenofobia, sexualidade e gênero, entre outros temas. Um tempo depois, passou a ler autores como Arjun Appadurai, Stuart Hall e Homi K. Bhabha, e se aprofundou nos estudos sobre globalização, identidade e pós-colonialismo.
“Bhabha propõe que olhemos para os interstícios, focalizando os processos em que as diferenças culturais são articuladas. Ele observa que esses entre-lugares proporcionam espaços de elaboração de estratégias de subjetivação, tanto singulares quanto coletivas, que abrem caminho para novos signos de identidade e contestação política”, diz Nagami, autora do estudo Os entre-lugares na relação Brasil-Japão.
O conceito de entre-lugar pode se referir à experiência de descendentes de imigrantes leste-asiáticos, entre outros. Traduz-se, por exemplo, nas impressões de ser visto como “japonês no Brasil” e “brasileiro no Japão” – isto é, entre um lugar e outro, ser sempre “estrangeiro”. “Neste processo de transitar entre culturas, às vezes fui japonesa, brasileira, nipo-brasileira, latina. E atravessada por uma história de colonização, escravidão e migrações”, conta a pesquisadora, que já viveu como dekassegui (trabalhador temporário) no Japão.
“Neste processo de transitar entre culturas, às vezes fui japonesa, brasileira, nipo-brasileira, latina. E atravessada por uma história de colonização, escravidão e migrações.” — Caroline Nagami, doutoranda em ciências sociais na Unesp
Ao longo da história, consolidaram-se diferentes formas de tratamento destinados a leste-asiáticos e seus descendentes no Brasil. Por um lado, foi apresentada como uma “minoria modelo”: uma idealização dos amarelos como inteligentes, disciplinados e dóceis – logo, assimilados como politicamente inofensivos. Por outro, a visão do “perigo amarelo”, que retratava os asiáticos, especialmente os leste-asiáticos, como uma ameaça ao Ocidente. A expressão racista remete a fins do século 19, mas encontra eco até hoje, por exemplo, no episódio de sinofobia desengatilhada a partir da pandemia de covid-19, visto que o primeiro caso do novo coronavírus foi identificado na China.
Nagami narra uma experiência recente onde esse preconceito foi evocado.
Antes da pandemia, durante uma corrida de Uber, fui questionada pelo motorista sobre minha origem. “Sou do interior de São Paulo, quase divisa com Mato Grosso do Sul”, respondi. Não era essa a resposta esperada, então ele perguntou novamente, especificando que queria saber se era “japonesa, chinesa, coreana ou o quê, pois é difícil diferenciar um do outro”. “Sou brasileira”, respondi, na esperança de deixá-lo desconfortável e encerrar a conversa. Apesar de desconcertado, ele insistiu e perguntou o país de origem dos meus pais e avós. Ao saber que meus avós vieram do Japão, começou a dizer que tinha muito respeito pela cultura japonesa, conhecia vários japoneses da cidade (perguntou se eu conhecia a família X ou Y, presumindo que todos os asiáticos se conhecem) e que achava que os japoneses eram bons, mas se preocupava com chineses e coreanos invadindo o Brasil. A conversa foi só até aí (ainda bem, eu já estava muito irritada), pois havia chegado ao meu destino. Conto esse acontecimento do cotidiano porque acho complicado pensar em leste-asiáticos como um grupo único, sem considerar suas assimetrias. Na pandemia, os discursos de ódio sobre o “vírus chinês” e situações de agressão direta experienciadas por asiáticos trouxeram à tona alguns conflitos antigos vividos por leste-asiáticos e seus descendentes, mas acabaram sendo diluídos em debates sobre relações políticas e econômicas entre países.
Interesse por temas ligados à Ásia cresce na academia
“Num território como o Brasil, o debate sobre os leste-asiáticos de repente foi catapultado da invisibilidade para a hipervisibilidade – e uma hipervisibilidade carregada de violência” no contexto da pandemia, critica Gabriela Akemi Shimabuko, 27, graduanda em ciências sociais na Unesp, campus de Araraquara.
Ao iniciar o projeto Perigo Amarelo, Shimabuko buscou compartilhar experiências em uma página no Facebook. Os primeiros a participar foram nikkeys e okinawanos, ou seja, descendentes de japoneses e de habitantes da ilha de Okinawa. Logo depois, entraram pessoas de ascendência coreana, chinesa e taiwanesa, entre outros.
O que começou com conversas online para partilhar narrativas individuais cresceu e se tornou um espaço para ação coletiva, que discute livros teóricos e ao mesmo tempo se engaja em intervenções mais concretas. Assim, a estudante ingressou na União da Juventude Rebelião (UJR) e, em junho, junto à organização e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), participou da Ocupação dos Imigrantes Jean-Jacques Dessalines, que na pandemia está acolhendo imigrantes haitianos no bairro da Liberdade, em São Paulo.
Shimabuko conta que apropriar-se da expressão pejorativa “perigo amarelo” é um caminho para tentar dar um novo significado a ela – talvez uma tentativa de transformar um termo racista em um ativismo antirracista. “A gente está tão acostumado a categorias raciais: branco, negro, indígena… E tem esse estranhamento. Amarelo? O que é o amarelo? Discutir o que isso significa, o que isso implica, é muito interessante para se debater o lugar das racializações”, diz. Racializar, por exemplo, foi o que fizeram certos líderes políticos na pandemia ao responsabilizar asiáticos e, a partir do fenótipo, homogeneizar diferentes culturas como “um inimigo comum”, diz ela. Como projeto de conclusão de curso, a estudante pretende discutir o assunto num estudo inicialmente intitulado Do ópio à sopa de morcego.
O interesse por questões relacionadas a asiáticos também tem se fortalecido no ambiente acadêmico. Em novembro, ocorreu a primeira Semana Acadêmica Asiática, realizada pelo Centro Acadêmico de Relações Internacionais (CARI) da Unesp, campus de Marília, que reuniu conferencistas importantes e jovens pesquisadores, e contou com quase 500 inscrições após sete dias de divulgação.
À frente do centro acadêmico, a estudante Julia Mori Aparecido, 20, organizou a atividade, inspirada por docentes especializados no estudo sobre China e pela parceria da universidade com o Instituto Confúcio. “Além disso, o crescente interesse da comunidade acadêmica pelo estudo da Ásia, indubitavelmente motivado por sua ascensão no cenário global, me fez questionar como ainda não havia sido organizado algo nesse escopo até então”, conta.
A ideia, diz, foi abarcar a pluralidade do leste da Ásia. “Nas oficinas buscamos abranger áreas além das relações internacionais, dando a oportunidade de nos debruçarmos sobre os estudos de literatura, filosofia e Lian Gong [prática corporal chinesa]. As apresentações visavam proporcionar um espaço a novos pesquisadores, sejam graduandos, recém-graduados e pós-graduandos.”
A cultura da Coreia se espalha pelo mundo
Na cultura pop, o interesse por assuntos asiáticos, especialmente leste-asiáticos, também cresceu no Brasil. Entre 2021 e 2022, reportou o jornal Folha de S.Paulo, editoras brasileiras apostaram em diversos livros de autores de ascendência asiática, com narrativas sobre discriminação e histórias sobre bastidores do k-pop, nome dado ao estilo musical sul-coreano que se tornou febre mundial.
Desde a graduação, a pesquisadora Daniela Mazur, 30, atualmente doutoranda em comunicação na Universidade Federal Fluminense (UFF), se interessa por produções audiovisuais coreanas. À época, pouco se discutia esse tema dentro das universidades brasileiras. Ela foi uma das fundadoras do Asian Club, um grupo de pesquisa sobre cultura pop contemporânea leste-asiática, que depois se desdobrou no MidiÁsia, que se tornou uma referência na área.
Ao longo da década de 2010, a música coreana conquistou popularidade com expoentes como Psy (e a canção Gangnam Style, hit de 2012 com milhões de visualizações no YouTube) e a banda BTS, que desde 2018 se destaca em premiações internacionais como o American Music Awards e chegou a se apresentar na Assembleia-Geral das Nações Unidas de 2021. Dirigido por Bong Joon-Ho, o filme Parasita também foi destaque internacional, premiado como melhor filme no Oscar de 2020. Recentemente, a série sul-coreana Round 6, de Hwang Dong-Hyuk, se tornou a mais vista da empresa se streaming Netflix, destacou o portal UOL.
“O que antes era visto no Brasil como o nicho do nicho, pouco discutido e pouco abordado em artigos acadêmicos, passou por um aumento absurdo de interesse. A gente vê as pós-graduações abraçando o debate sobre o leste asiático e expandindo agora para uma ideia mais plural de Ásia”, pondera Mazur, que pesquisa a hallyu, a onda cultural sul-coreana.
A certo ponto, a visibilidade da cultura pop, embora seja um produto na indústria cultural, contribui para confrontar o desconhecimento diante de culturas que não são norte-americanas ou centro-europeias. Segundo Mazur, há uma tendência de homogeneizar um continente tão complexo e exoticizá-lo, como se tudo para além da Europa e dos Estados Unidos fosse “exótico, estranho, misterioso e, por fim, perigoso”, critica.
Há autores que atualmente privilegiam o termo “asiático” e não “oriental” justamente pelo peso da ideia de “Oriente”, que remete ao conceito crítico de “orientalismo” do intelectual palestino Edward Said. Ele é o autor de Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, livro que aborda o processo de construção desse imaginário dos “orientais” como “outros” que podem ser perigosos, exóticos e até bárbaros. “A Ásia é um player global e é preciso entender as cartas relacionadas a questões culturais, diplomáticas, econômicas etc. Pois não se trata, afinal, de apenas uma Ásia, mas de várias Ásias”, assinala Mazur.
“O mundo é muito mais do que Europa e Estados Unidos. A longo prazo, enxergo potencialidades de diálogos que podem criar mais pontos positivos para um entendimento de mundo que seja mais complexo, mais justo, que inclua esses países que estão fora do centro do sistema capitalista. Não dá mais para pensar o Brasil a partir da ideia de Ocidente; a gente precisa pautar as discussões em uma lógica internacional com os países que fazem parte da periferia global como nós, com a América Latina, a África, a Ásia.”
Foto de abertura: Isis Caroline Nagami, maquiada por Flávia Regina Alves Nagami. Crédito: Bruno Melero