Aos 18 anos, Abdulrazak Gurnah deixou seu país natal, a Tanzânia, em direção ao Reino Unido para fugir da perseguição estatal sobre uma minoria árabe da qual o escritor fazia parte. Nesta quinta-feira, aos 73 anos, Gurnah recebeu da Academia Sueca o prêmio Nobel de Literatura por uma obra cuja temática trata principalmente da experiência do deslocamento. Ele é apenas o quarto escritor negro a receber a medalha em 120 anos.
De acordo com o material divulgado pela Academia Sueca, o prêmio foi concedido a Gurnah pela forma empática e rigorosa com que descreve os efeitos do colonialismo e o destino dos refugiados no abismo entre culturas e continentes, colocando o escritor como um dos expoentes do pós-colonialismo.
Esse conceito surge principalmente na Inglaterra e França a partir de autores que, assim como o próprio Gurnah, foram refugiados e migrantes que buscaram uma vida melhor na antiga metrópole. Os estudos pós-coloniais costumam valorizar a construção de novas epistemologias e paradigmas de análise sócio-cultural, agindo na valorização de conhecimentos produzidos em países periféricos. Na literatura, outros escritores que também costumam abordar temas pós-coloniais em suas obras são Chinua Achebe e Chimamanda Adichie, ambos da Nigéria, e Achille Mbembe, do Camarões.
O professor Dagoberto José Fonseca, coordenador do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN), explica que esses autores hoje se colocam numa posição de reconstruir o seu passado colonial e reescrever a sua história, estabelecendo um diálogo tanto com os grupos que permeneceram em seus países como os que também migraram.
De fato, a trajetória de vida do vencedor do Nobel segue roteiro muito semelhante. Após deixar seu país, e chegar ao Reino Unido, Gurnah deu continuidade aos estudos até obter um doutorado pela Universidade de Kent, onde se tornou professor de Inglês e Literaturas Pós-Coloniais até sua aposentadoria. Ao longo de sua carreira como escritor, publicou dez livros em idioma inglês. O mais recente, Afterlives (2020), se passa no início do século XX e tem como pano de fundo a colonização alemã na África Oriental.
O prêmio Nobel de literatura é concedido anualmente desde 1901 e costuma considerar o conjunto da obra de um autor, e não necessariamente algum titulo específico. Este é um dos cinco prêmio Nobel concedidos pela Academia Sueca. Neste ano, já foram concedidos os Nobel de Química e de Física.
Diretor-presidente da Fundação Editora Unesp (FEU), o professor Jézio Gutierre destaca que Gurnah é virtualmente desconhecido no Brasil e sua premiação surpreendeu especialistas que não o apontavam como favorito. “Neste sentido, a premiação também colabora para fornecer um canal adicional pra minorar nosso desconhecimento crônico da África, um ponto levantado pelo comitê Nobel durante o evento que anunciou o prêmio”, afirma.
Para o professor do câmpus de Marília, a questão do desenraizamento presente na obra do escritor da Tanzânia guarda estreira relação com eventos contemporâneos globiais relacionados à crises migratórias, e o prêmio Nobel tem se caratcerizado recentemente por ser receptivio às agendas politicas. “Essa sensibilidade social ja havia acontecido em relação as mulheres e agora com as abordagens não-eurocêntricas, o que permite que a universalidade caracteristica do Nobel seja preservada”, afirma.
Na opinião do professor Dagoberto, a premiação cria uma expectativa para que editoras brasileiras se interessem pela obra de Abdulrazak Gurnah, que ainda não tem um livro publicado no país. “É importante para que o Brasil conheça e debata um pouco mais sobre essas realidades que estão presentes nessa literatura pós-colonial”, sugere o professor do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia do câmpus de Araraquara. “Muitas dessas obras, embora sejam ficcionais, são também testemunhais e documentais. Estes autores estão reconstruindo um passado para se pensar qual é o presente em que estamos, e qual o futuro onde queremos chegar”, finaliza.
Imagem acima: Universidade de Kent.