Potencial tóxico da carambola em pessoas com doença renal foi descrito pela primeira vez por docentes da Unesp

Ingestão da fruta, muito apreciada em países tropicais, pode ocasionar soluços, confusão mental, convulsões e até morte em pacientes com problemas nos rins. Descoberta, reportada em 1993, foi um marco da nefrologia brasileira e teve reflexos na saúde pública.

Em 1990, ano em que a Alemanha conduzia o seu o processo de reunificação no ocaso da Guerra Fria, o paciente H. dava entrada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu (HCFMB), no interior de São Paulo, com um soluço persistente, intratável, acompanhado de vômito e desidratação. Homem negro e morador de Botucatu, H. era um adulto jovem que sofria de insuficiência renal crônica (IRC). Havia passado por hemodiálise na véspera e, para a surpresa dos médicos da Unesp, que fazia a gestão do HCFMB, perdera dois quilos em 48 horas em razão da desidratação, sendo que doentes renais crônicos em geral ganham peso por causa da retenção de líquidos.

Era uma sexta-feira, e os soluços em sequência que incomodavam H. e o impediam de se alimentar levaram os médicos a interná-lo e submetê-lo a uma sequência de exames físicos, laboratoriais e de imagem. Sem diagnóstico à vista, o então médico residente Luis Cuadrado Martin ouviu do paciente H. um relato que se mostraria bastante importante e revelador ao longo dos anos. “Foi a carambola, doutor”, disse, referindo-se às três carambolas que havia ingerido cerca de quatro horas antes do início dos sintomas. Na segunda-feira seguinte à internação, após passar por sessão regular de hemodiálise, os soluços sumiram e H., enfim, recebeu alta hospitalar.

Em agosto daquele ano, H. voltou ao hospital para participar do programa de diálise junto a outros pacientes e reparou que um deles chegara ao local com uma canastra de carambolas provenientes do sítio em que vivia, que abrigava caramboleiras (Averrhoa carambola). Em alerta após experiência anterior, H. recusou a fruta. Mas 10 dos 18 pacientes renais crônicos e uma parte da equipe de saúde comeram carambola. Dos dez pacientes que ingeriram o fruto, oito desenvolveram soluços nas primeiras 12 horas após a ingestão. Dois pacientes que comeram a fruta antes da hemodiálise não tiveram qualquer soluço, assim como os pacientes que a recusaram, e os profissionais de saúde que a ingeriram.

Luis Cuadrado Martin – crédito: Carlos Pessoa / FMB

Foi a partir desta espécie de experimento informal, ocorrido há 35 anos nas dependências do HCFMB, que o então residente Luis Cuadrado Martin, hoje docente da Faculdade de Medicina de Botucatu, elaborou, como autor principal, a primeira descrição clínica sobre o potencial tóxico da carambola em pacientes com doença renal crônica de que se tem notícia na literatura científica.

O artigo “Soluço intratável desencadeado por ingestão de carambola (Averrhoa carambola) em portadores de insuficiência renal crônica” foi publicado três anos depois no Jornal Brasileiro de Nefrologia. O texto foi assinado por Martin e outros dois médicos em início de carreira que também se tornariam docentes da Unesp: Jacqueline Caramori e Pasqual Barretti. Completava o time de autores o então professor da FMB Vitor Augusto Soares, que havia apresentado a descrição clínica no ano anterior no XVI Congresso Brasileiro de Nefrologia, realizado no Rio de Janeiro.

Dentre os 8 pacientes que ingeriram a carambola após a hemodiálise naquele dia e apresentaram sintomas, dois apresentaram intercorrências mais graves e tiveram que retornar ao hospital no dia seguinte. Foram então submetidos a uma nova sessão de hemodiálise, que zerou os sintomas. O artigo com a descrição do caso sugeria que o experimento informal resultara em um achado inédito.

“Os dados apresentados sugerem fortemente que a ingestão de carambola foi o fator desencadeante do soluço nestes pacientes (…) A observação de que nenhum dos membros da equipe de saúde que ingeriu a fruta tenha apresentado soluço, associada ao fato de que o tratamento hemodialítico foi eficaz na supressão desses sintomas, sugere que na carambola deva existir alguma substância de excreção renal e dialisável capaz de provocar esse sintoma”, escreveram os autores no artigo de 1993.

Martin relata que o achado ecoou entre os colegas. “Ambos os episódios, o isolado e o epidêmico, foram no ano de 1990. Nós descrevemos e avisamos: ‘olha, já se sabe que tem que tomar cuidado com essa fruta para pacientes com insuficiência renal’. Lembro que na época do Congresso (Brasileiro de Nefrologia), alguns nefrologistas nos procuraram para dizer que já tinham atendido pacientes com soluços e que, a partir dali, perguntariam sobre a carambola”, lembra.

Relato de caso de morte repercute

Porém, na literatura científica, o alerta sobre a carambola do artigo dos professores da Unesp ecoou somente cinco anos depois. Em 1998, o professor e médico Miguel Moyses Neto, da Divisão de Nefrologia do Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto, reportou, junto com dois colegas do Departamento de Bioquímica da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão, seis casos de pacientes renais em um programa de diálise que também apresentaram soluços associados a outros sintomas importantes depois de comerem carambolas, tais como insônia, confusão mental e, em um dos casos descritos, a morte de um paciente com diabetes, aos 57 anos de idade.

O artigo de 1998 foi publicado na revista médica Nephrology Dialysis Transplantation, de Oxford, acompanhado de uma nota do professor e editor-chefe Eberhard Ritz em que se pondera tratar-se de “observação clínica preliminar que requer confirmação”. Na nota, o docente justificava a publicação em razão da “potencial implicação clínica”. Uma das quatro referências do artigo assinado pelos docentes do câmpus de Ribeirão Preto da USP é o artigo pioneiro dos professores da Unesp no Jornal Brasileiro de Nefrologia.

“Na época, eles ligaram para o professor Pasqual (Barretti, um dos autores) para saber como é que tinha sido (no HCFMB) porque havia casos mais graves lá e já começaram a fazer hemodiálise nesses pacientes, alertados pelo nosso primeiro artigo”, diz o professor Luis Cuadrado Martin. “Tivemos casos leves, mas já foi descrito de forma bem consistente. A relação causa-efeito ficou muito clara e também deduzimos que essa suposta substância, na época era uma suposta substância, devia ser excretada pelo rim (via hemodiálise).”

Com o decorrer dos anos, a toxicidade da carambola para pacientes renais crônicos passou a ser estudada sob a perspectiva lançada a partir do Brasil. Embora atualmente seja muito comum no país, em especial no estado de São Paulo, a caramboleira, árvore que pertence à família Oxalidaceae, é nativa da Ásia e foi introduzida nos países tropicais da América do Sul durante o período das grandes navegações ultramarinas.

“Quando o (médico e docente da USP) Miguel Moyses me ligou dizendo que uma paciente estava em coma e que tinha comido carambola, perguntou se era o caso para diálise. Respondi que ‘pela nossa experiência com certeza é’. A diálise foi feita e foi bem-sucedida. Eles (na USP) foram mais ousados em termos de pesquisa, publicaram em uma revista internacional e Ribeirão Preto ganhou grande protagonismo. Mas os dois momentos (da Unesp e da USP) foram fundamentais e de grande importância. Com o tempo, tornou-se um conhecimento de domínio mais amplo a partir de estudos iniciados e concluídos no Brasil”, diz o professor Pasqual Barretti, que foi reitor da Unesp de 2021 a 2024.

Pasqual Barretti na ala de hemodiálise do HCFMB

 A “suposta substância” a que se refere o professor Cuadrado Martin foi isolada e caracterizada em 2013 por um trabalho em colaboração da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, ambas do câmpus de Ribeirão Preto da USP. A toxina presente na carambola, que recebeu o nome de caramboxina, é absorvida pela digestão, filtrada pelo rim e eliminada na urina em pessoas sadias. Em pacientes com problemas renais, como o funcionamento do rim está comprometido, a caramboxina, que é um aminoácido, acumula-se no organismo e, via corrente sanguínea, liga-se a receptores do sistema nervoso central, pois não é adequadamente filtrada pelo rim, causando soluços, confusão mental, agitação psicomotora, convulsões e até morte. O artigo de 2013 dos docentes da USP, com pesquisa financiada pelas principais agências de fomento do Brasil, foi publicado na revista Angewandte Chemie International e tem, entre seus 17 autores, dois nomes do artigo científico de 1998.

Em editorial escrito em 2015, o professor Pasqual Barretti, coautor do artigo pioneiro de 1993, publicou no Jornal Brasileiro de Nefrologia um histórico que vai da primeira descrição clínica feita no HCFMB ao isolamento da caramboxina, citando a publicação de uma revisão sistemática, de autoria de nutricionistas da Universidade Federal de Juiz de Fora, que contém artigos publicados entre 2000 e 2014 sobre os efeitos da ingestão da carambola em um total de 110 pacientes com doença renal crônica e relatos semelhantes àqueles relatados nas descrições iniciais publicadas em 1993 (Unesp) e em 1998 (USP), papers que passaram a ser citados como os pioneiros do achado científico.

“Como três dos autores estavam em início de carreira, penso que o fato de nós termos feito iniciação científica contribuiu para desenvolvermos habilidades para identificar e divulgar o caso. O principal impacto de fazer iniciação científica é o gosto por publicar. Você aprende a fazer pesquisa, a ter raciocínio voltado para pesquisa. Tínhamos esse espírito científico”, diz Martin, lembrando também de quem teve o insight inicial para a questão, o paciente H.

“É importante escutar o paciente. A conversa e a obtenção de dados clínicos corretos na anamnese têm valor preditivo positivo e valor preditivo negativo maior do que qualquer exame, por mais sofisticado que seja. Foi isso que fizemos na época: escutamos o paciente H., ligamos os pontos e tratamos adequadamente. Felizmente, na nossa casuística, salvaram-se todos”, diz Martin.

De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de 10% da população brasileira apresenta algum grau de doença renal crônica, percentual que tende a ser influenciado pelo envelhecimento populacional e a alta na prevalência de doenças como hipertensão e diabetes, principais causas da doença. “Esse achado foi um marco para a nefrologia do Brasil, e importante também para a saúde pública. É uma fruta muito comum em várias partes do mundo”, afirma o professor Pasqual Barretti.

Martin, que também é ex-presidente da Sociedade Brasileira de Hipertensão, ressalta que muitas pessoas desconhecem que têm problemas nos rins e, por isso, seria importante ampliar, no dia a dia, o alcance da mensagem sobre a toxicidade da carambola para renais crônicos.

“Para cada pessoa que faz hemodiálise, tem cem pessoas da população que tem algum grau de problema renal, mesmo que leve. A pessoa, eventualmente, nem sente ou tem sintomas tão inespecíficos que acabam não sendo diagnosticados. Então existe um iceberg submerso de doença renal crônica”, diz o professor Luis Cuadrado Martin. “Seria interessante ter uma lei estadual ou federal ou uma ação mais abrangente no sentido de avisar que a carambola pode ser tóxica para quem tem problema renal. Ninguém quer proibir as pessoas de comer a fruta, mas o aviso é bastante importante”, afirma.

Fotos: Martha Morais / ACI Unesp