Crescimento de número de acidentes e mortes por picadas de abelhas já configura problema de saúde pública, defende grupo de pesquisadores

Em três anos, registro de ataques saltou quase 80%, e de óbitos mais que dobrou. Especialistas sugerem que quadro pode estar ligado a aumento das situações de interação entre humanos e insetos, e defendem desenvolvimento de tratamentos específicos como estratégia para reduzir mortes.

Celebradas pela sua função polinizadora e pela produção de mel, as abelhas da espécie Apis mellifera parecem inofensivas quando observadas em voos solitários pela paisagem urbana. Entretanto, ataques por enxames de abelhas têm vitimado cada vez mais pessoas no Brasil, registrando sucessivos recordes no número de acidentes e óbitos decorrentes desses encontros.

Entre 2021 e 2024, o número de ataques envolvendo as abelhas africanizadas, como também são conhecidas, aumentou em 83%, passando de 18.668 para 34.252 ocorrências. Já a quantidade de óbitos cresceu 123%, alcançando 125 casos em 2023, número que se repetiu em 2024. Para efeito de comparação, em 2023, o total ataques de abelhas ultrapassou o número registrado de ataques de serpentes, e a situação se mantém até hoje.

O crescimento expressivo na quantidade de ocorrências e mortes nos últimos anos motivou um grupo de pesquisadores da Unesp a publicar um artigo em que apontam o envenenamento por picadas das espécies Apis mellifera como um problema de saúde pública negligenciado. O trabalho da equipe coordenada pelo médico-veterinário Rui Seabra Ferreira Júnior, diretor do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (Cevap) da Unesp, foi publicado na revista científica Frontiers in Immunology e descreve as situações clínicas do envenenamento, o impacto do veneno no organismo humano e avalia as tecnologias terapêuticas emergentes. A publicação aponta ainda que, até julho deste ano, foram registrados mais de 18 mil acidentes com abelhas no país.

Os autores do artigo argumentam que os ataques de abelhas podem ser considerados um problema de saúde negligenciado, dada a intensificação desses encontros que, no pior dos cenários, podem levar à morte. Além disso, a ausência de um tratamento ou fármaco específico para atender a essas vítimas é outro argumento para enquadrar as intoxicações por Apis mellifera como uma questão negligenciada. “Ainda hoje não existe um antídoto contra o veneno de abelhas, como os que temos para as picadas de serpentes, aranhas e escorpiões”, diz o pesquisador.

Pesquisador do Instituto de Biociências da Unesp, no câmpus de Rio Claro, e uma das maiores referências no estudo das abelhas no Brasil, o biólogo Osmar Malaspina diz que ainda não é possível determinar com exatidão os motivos que levaram ao crescimento. Ele especula sobre a possibilidade de uma combinação entre o desmatamento, com perdas de locais que serviriam de habitat nas matas, e a procura de novos locais para instalação de ninhos próximos a áreas urbanas e, ainda, a procura por alimentos gerados a partir das atividades humanas em determinadas épocas do ano.

Efeitos de ferroadas variam em cada pessoa

“Não é possível determinar quantas ferroadas irão colocar a pessoa em situação de risco”, afirma Benedito Barraviera, docente da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB). “Isso vai depender muito do sistema imunológico de cada um.”

O médico, que também foi um dos fundadores do Cevap, explica que existem dois tipos principais de acidentes. O primeiro ocorre quando a pessoa é alérgica. Nesses casos, apenas um ferrão pode ser suficiente para desencadear um choque anafilático, que consiste em uma reação alérgica grave e potencialmente fatal. “Nesses casos, o indivíduo deve receber uma injeção de adrenalina e atendimento médico imediato”, diz.

Outro tipo de acidente ocorre quando uma pessoa não alérgica é picada por muitas abelhas simultaneamente. Nesses casos, o excesso de veneno pode causar intoxicação, com complicações neurológicas e renais. Por fim, o médico também chama a atenção para o fato de que o veneno pode gerar um torpor neurológico com potencial de desencadear parada cardiorrespiratória.

Barraviera destaca que a falta de um soro específico contra ferroadas de abelhas africanizadas aumenta as chances de complicações em casos de intoxicação e torna o tratamento mais caro e de difícil previsibilidade dos resultados. “O protocolo atual é aplicar apenas o tratamento para os sintomas. Se o soro antiapílico desenvolvido pelo Cevap já estivesse disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), seria possível lidar com todas essas complicações de uma só vez e com mais segurança”, diz.

Em janeiro de 2024, a Unesp registrou a patente do primeiro soro antiapílico do mundo, produzido em parceria com profissionais do Instituto Vital Brazil e do Instituto Butantan. O novo produto, que vem sendo desenvolvido há mais de uma década, já passou com sucesso pelas duas primeiras etapas de testes clínicos. Atualmente, os pesquisadores envolvidos aguardam financiamento para a realização da terceira etapa de testes, necessária para o registro na Anvisa.

“A fase 3 servirá para avaliar a segurança, a melhor dose e a eficácia do produto em um grande número de pacientes, e em pesquisas multicêntricas. Isso torna essa etapa arriscada, cara e com resultados imprevisíveis”, diz Barraviera. Para concluir a última fase, seriam necessários cerca de 200 pacientes presentes em diferentes regiões do Brasil e um investimento de aproximadamente R$ 20 milhões. Isso tem dificultado o acesso ao financiamento, que, desde 2019, vem sendo negado pelas agências brasileiras de fomento e também pelos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Saúde.

A presença de abelhas africanizadas no Brasil

Segundo Malaspina, uma das características das abelhas africanizadas é a defensividade, o que muitas vezes pode ser confundido com um comportamento agressivo. Esse comportamento emerge quando as abelhas percebem qualquer ameaça à colmeia e pode ser potencializado por fatores externos, como ventanias e calor excessivo. Tal característica, contudo, não impediu que as Apis mellifera se espalhassem pelo país como grandes produtoras de mel, com destaque para os estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Piauí.

“As abelhas nativas do Brasil, tanto as que vivem em sociedades como as solitárias, não produzem tanto mel”, explica Malaspina. Uma colmeia de uma espécie nativa, como a jataí, pode produzir entre 300 ml e 500 ml de mel por ano. Em contrapartida, cada colmeia das abelhas africanizadas pode alcançar uma produção de 30 kg de mel por ano. No Brasil, as abelhas africanizadas usadas atualmente na apicultura surgiram no final da década de 1950, em Rio Claro, São Paulo, a partir do cruzamento de abelhas europeias com abelhas africanas. Elas foram introduzidas no país pelo geneticista e agrônomo Warwick Estevam Kerr, que, na época, estudava formas de impulsionar a indústria de mel no Brasil.

Cerca de 70 anos depois, as abelhas africanizadas tornaram o país o décimo maior produtor de mel do mundo, com um recorde de 64,2 milhões de quilos produzidos em 2023, segundo dados do IBGE. Em 2024, as exportações do setor ultrapassaram US$ 100 milhões, de acordo com o sistema ComexStat do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

Apesar do impacto positivo na economia e no comércio exterior, a expansão produtiva pode ter sido um dos fatores que intensificaram a presença de colônias próximas a áreas povoadas e, consequentemente, o número de acidentes.

“O principal problema ocorre quando há mais abelhas do que a colônia comporta. Isso resulta na produção de enxames que saem da colônia para buscar um novo local para se instalar”, explica Seabra. Nessa migração, os insetos buscam duas condições principais, alimento e abrigo. Muitas vezes, é nas cidades em que estas condições podem ser encontradas, e o resultado é a formação de colmeias em áreas urbanas. “Temos observado que os acidentes costumam ocorrer justamente em áreas próximas às cidades. Em especial, em regiões onde não há grandes áreas de mata separando os campos rurais das cidades”, diz ele.

Esse cenário também leva os pesquisadores a acreditarem que o desmatamento e a redução das áreas de mata, que poderiam servir de habitat natural para as abelhas, são fatores que, somados à população massiva das produtoras de mel, podem ter causado o aumento dos acidentes nos últimos anos. “O desmatamento retira o habitat e a fonte de alimento desses insetos, que são obrigados a viajar grandes distâncias para se alimentarem”, diz Malaspina. “As Apis mellifera conseguem voar até 3 km, mas isso não é eficiente para elas, porque gastam toda a energia do alimento na viagem de volta. Então, não compensa irem tão longe. Elas preferem economizar energia e mudar a colônia para um local mais próximo. E, se não há áreas de mata por perto, o novo local acaba sendo a própria cidade”, diz.

Mas há outros fatores que poderiam influenciar o aumento de casos e de vítimas. “Existem muitas coisas que devem ser levadas em consideração, como o clima da região, o aumento do número de apicultores e de colmeias, a atuação da Defesa Civil e dos bombeiros, a inexistência de empresas especializadas em remoção de colmeias, os índices de desmatamento, a proximidade com animais e humanos. É muito difícil determinar as causas exatas”, diz Malaspina.

É preciso manter a calma na presença de abelhas

Na ausência de tratamentos específicos, o melhor é redobrar a atenção para evitar acidentes graves. A recomendação dos especialistas é nunca manusear a colmeia, não fazer uso de inseticidas e venenos, evitar movimentos bruscos e ruidosos próximos ao ninho, isolar o local e chamar a Defesa Civil, os bombeiros ou uma empresa especializada em remoção.

Malaspina alerta que, caso ocorra uma picada próxima ao ninho, é de extrema importância que a pessoa não se debata e tente manter a calma. O pesquisador explica que, quando se sentem ameaçadas, as abelhas liberam um feromônio que “marca” a ameaça para as outras abelhas. Quando alguém é ferroado, o feromônio fica preso na pessoa por conta do ferrão, o que faz com que todas as demais iniciem uma perseguição em conjunto.

“O ideal, no momento, é não gritar, não se bater e não matar a abelha para não espalhar mais o cheiro. O recomendado é retirar o ferrão e sair o mais rapidamente possível do local”, indica Malaspina. “As abelhas conseguem identificar esse cheiro mesmo à distância. É preciso se afastar o mais rápido possível. Ou entrar em um local protegido, com cuidado para não deixar que as abelhas entrem junto.”

Imagem acima: Criação de abelhas africanizadas para produção de produtos apícolas. Crédito: Jonathan Wilkins