Graças ao trabalho dos arqueólogos e historiadores, podemos hoje obter informações sobre povos que desapareceram da face da Terra há séculos — ou mesmo milênios. Através da investigação sistemática dos materiais remanescentes que eles produziram — um acervo variado que pode incluir documentos, construções, enterramentos, utensílios domésticos, naufrágios etc. — os cientistas conseguem formular conclusões sobre o seu modo de vida e até sua cultura. Porém, quando se trata de estudar certos aspectos da vida humana que não estão diretamente preservados pela cultura material, é preciso recorrer a novos instrumentos de análise.
Este é o desafio de Gladis Massini-Cagliari, professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp no câmpus de Araraquara e criadora de novos tipos de investigação dentro da linha de pesquisa intitulada linguística histórica do português. Gladis faz uma espécie de arqueologia da linguagem, com o objetivo de descobrir como era a prosódia e o ritmo do português arcaico, o “antepassado” da moderna língua portuguesa que era falado na Península Ibérica durante a Idade Média, nos séculos 13 e 14.
O interesse de Gladis pelo português arcaico começou ainda no doutorado, nos anos 1990. À época, este era um tema pouquíssimo estudado, do ponto de vista da linguística moderna. Ainda no doutorado, ela adotou como procedimento metodológico o estudo das caraterísticas métricas da poesia medieval. Desde então, já estudou mais de 500 cantigas compostas naquele período. O trabalho já resultou inclusive num livro publicado pela editora Unesp em 2015, intitulado “A música da fala dos trovadores”. Recentemente, ela publicou um artigo delineando sua metodologia na revista Cadernos de Linguística, e apresentou seu trabalho numa live oficial da Associação Brasileira de Linguísticas (Abralin).
Durante a Idade Média, a produção poética e musical de menestréis e trovadores floresceu na península Ibérica. Graças aos manuscritos, sobreviveram até os nossos dias mais de 3 mil cantigas cujo caráter é classificado como profano, e mais de 400 cantigas religiosas. Estas cantigas deviam seguir certas estruturas pré-estabelecidas, que exigiam elementos tais como o uso de rimas nos versos. Da imensa maioria delas, conhecemos apenas o texto. De algumas dezenas sobreviveram registros de seus elementos musicais; estes, porém, foram feitos segundo sistemas empregados à época, que são diferentes das partituras que conhecemos hoje. A análise dos textos, das partituras e da interação entre música e letra torna possível encontrar indícios de como era a “melodia” do português arcaico em que os trovadores se basearam para compor suas obras.
A base da metodologia está em analisar o ritmo dos versos das canções, o qual é determinado pelas chamadas proeminências, tanto no aspecto da música como do texto propriamente dito. O termo proeminência identifica qual é o elemento, de uma música ou de uma palavra, que é executado com mais intensidade. Nas peças musicais, isso pode ser observado, por exemplo, pela alternância entre tempos mais fortes e mais fracos que caracterizam um determinado estilo de música. Na língua, isso é dado pela intensidade das sílabas numa palavra, que podem ser pronunciadas com maior ou menor ênfase. Na palavra “Café”, por exemplo, a última sílaba é a mais forte, e a primeira é a mais fraca.
“A metodologia que desenvolvi estuda onde se localizavam os acentos tônicos das palavras, tanto no aspecto musical como no aspecto linguístico”, explica a professora. “Se olharmos como os poetas antigamente contavam as sílabas poéticas para construir os versos, e em qual posição eles colocavam os acentos tônicos, ou seja, a forma como os acentos tônicos se organizam no verso, podemos descobrir pistas de como seria o ritmo da língua que dá suporte aos versos e que dão suporte à música. Ou seja, trabalhamos com três elementos: língua, poesia e música”, diz.
Ela diz que esse princípio da coincidência da acentuação de texto e música é usado até hoje como ferramenta de composição de músicas populares. E, recentemente, começou a desenvolver outra metodologia para estudar as variações entre graves e agudos na pronúncia das palavras do português medieval, o que equivale a destrinchar a melodia da língua.
O monarca que compunha cantigas
Nos séculos 13 e 14, o português arcaico era falado tanto no Reino de Portugal como na Galícia, região que depois seria incorporada à Espanha (e na qual surgiu, desta mesma origem, a língua hoje conhecida como galego). E justamente o monarca de um dos reinos que depois se integrariam a Espanha, Afonso X, celebrizou-se como um dos principais compositores de cantigas medievais. Afonso, dito o sábio, viveu entre 1221 e 1284 e reinou em Castela e Leão. A ele é atribuída uma coleção de 420 cantares, denominadas Cantigas de Santa Maria, que foram preservadas em quatro diferentes coleções de manuscritos, abrigadas por diferentes instituições da Espanha e da Itália. As Cantigas de Santa Maria estão entre as principais fontes utilizadas pelos estudiosos do português arcaico. Aliás, o talento parece ter sido um dom familiar. Seu neto D. Dinis foi rei de Portugal, e também um dos trovadores mais importantes do reino em sua época.
Um exemplo de análise aplicado a uma das obras atribuídas a Alfonso é o estudo da cantiga intitulada “Entre Ave e Eva“. O texto é o seguinte:
Entre Av’ e Eva/gram departiment’ há./Eva nos foi deitar/do dem’ em sa prijom,/e Ave ém sacar;/e por esta razom
Entre Ave e Eva
Entre Av’ e Eva/ gram departiment’ há./Ca Eva nos tolheu /o paraís’ e Deus;/Ave nos i meteu./Porend’, amigos meus,
Entre Av’ e Eva/gram departiment’ há./Eva nos fez perder/amor de Deus e bem,/e pois Ave haver/no-lo fez. E porém
Entre Av’ e Eva/gram departiment’ há./Eva nos enserrou/os ceos sem chave,/e Maria britou/as portas per Ave.
Entre Av’ e Eva | gram departiment’ há
Ave, no caso é uma referência ao “Ave maria”, uma forma de citar a figura cristã de Nossa Senhora. Já Eva é a mulher responsável pela mítica queda da humanidade do Paraíso. Esta cantiga possui um refrão que diz: “Entre Av’ e Eva/ gram departiment’ há.” Aqui, ocupam posições tônicas tanto “Ave” como “Eva”, além da palavra “gram” (uma forma antiga do adjetivo “grande”) e uma das sílabas de “departiment’ ” (termo arcaico que significa distância, separação) e o verbo “há” que fecha o verso. Se o verso for lido com nossas referências fonéticas atuais, não parece apresentar qualquer rima. À luz das estruturas de poesia adotadas à época, haveria aí uma grave falha formal. Isso permite aos estudiosos argumentarem que a maneira usual de pronunciar a palavra “eva” à época exigia uma acentuação no “a” final, nesta cantiga específica. A palavra “evá” rima perfeitamente com o verbo “há”, e atende às exigências de metrificação.
Caçadores das proparoxítonas perdidas
Gladis diz que os estudos de linguística histórica já conseguiram responder certas questões sobre as características do português arcaico. Ao mapear-se a existência de palavras como “rubi” nas cantigas medievais foi possível determinar que já no fim da Idade Média a língua continha palavras oxítonas (isto é, que tem a acentuação forte na sua sílaba final) terminadas em vogal. Outra pergunta envolvia as palavras proparoxítonas, cuja acentuação está na penúltima sílaba. Embora sejam comuns no latim, os estudos sobre o português falado no início da Idade Moderna, a partir do século 15, pareciam sugerir que por algum tempo as palavras latinas proparoxítonas haviam sumido do mapa ao se transformarem em palavras paroxítonas. É o caso, por exemplo, da palavra latina mácula, que deu origem em português aos termos malha e mancha. Posteriormente, um pouco antes do período em que viveu Camões (1524 – 1580), falantes de português passaram a usar diretamente a palavra latina mácula, então com outro sentido, e ela terminou por ser reincorporada ao idioma.
“Não se sabia como se pronunciava no português medieval uma palavra como ‘cantávamos’. Inclusive no galego a acentuação é colocada na penúltima sílaba: ela é pronunciada como “cantavámos”, diz Gladis. Através da análise da parte musical nas cantigas, porém, foi possível identificar a presença da forma “cantávamos” já no período medieval tardio, assim como a existência de termos como “crérigo”, uma forma anterior do atual “clérigo”.
Aliás, a professora acha que a constatação de que alguém da importância do rei Afonso X usava formas como “crérigo”, “groriosa” ou “frores” pode servir como um poderoso antídoto contra preconceitos de base linguística. “Esse tipo de pronúncia vem da deriva natural do português. Estas cantigas eram consideradas como uma produção extremamente culta. O rei as ofertou como presente ao Papa da época”, conta. Ou seja: o tipo de fala que hoje se costuma associar a pessoas iletradas e carentes no passado fazia parte do vocabulário real. “Trabalho com estes textos em sala para ajudar a desmistificar os preconceitos que envolvem a origem social dos falantes, e ajudar os alunos a entenderem que a língua varia. E quanto mais ela varia, mais viva está. A língua que não varia já morreu.”
Imagem acima: Minitura de abertura do Códice dos Músicos, Escorial, representando o Rei Afonso X no seu scriptorium, acompanhado de poetas e músicos. Crédito: ÁLVAREZ, R. Los instrumentos musicales en los códices alfonsinos: origen. Algunos problemas iconográficos.