Entre os próximos dias 8 e 10 de maio, Moscou será novamente palco de uma das mais importantes celebrações do calendário político russo: o Dia da Vitória Soviética. Os festejos vão marcar os 80 anos da rendição da Alemanha nazista à URSS, e o ponto alto será o tradicional desfile militar na Praça Vermelha na sexta-feira, 9.
Entre os líderes internacionais que confirmaram presença nos festejos estão o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente chinês, Xi Jinping, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel Bermúdez, o presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic e o primeiro-ministro da Eslováquia, Robert Fico. Outras potências, como a Índia, vão enviar delegações de alto nível. As potências ocidentais, porém, não devem enviar representantes, devido ao contexto da guerra da Ucrânia.
A data é especialmente simbólica para a Rússia, por conta do papel central desempenhado pelo Exército Vermelho da URSS na derrota do regime de Adolf Hitler. Mais que uma celebração militar, o dia também relembra os imensos sacrifícios feitos pela população soviética durante o conflito. Ao final da guerra, estima-se que a União Soviética tenha sofrido cerca de 27 milhões de baixas, entre militares e civis. Cidades inteiras foram destruídas e diversas regiões do país foram devastadas pela máquina de guerra alemã. O sofrimento da população soviética foi agravado pela brutalidade da ocupação nazista em áreas como Belarus, Ucrânia e os países bálticos, onde milhões de civis foram mortos, escravizados ou deportados para campos de trabalho e de concentração.
Como gesto simbólico durante as comemorações, Putin anunciou um cessar-fogo unilateral temporário na guerra contra a Ucrânia, mas disse que Moscou responderá se Kiev violar o cessar-fogo. Em resposta, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky propôs um acordo para que o cessar-fogo durasse pelo menos 30 dias, e disse que a Ucrânia não poderia garantir a segurança de nenhuma autoridade estrangeira que fosse a Moscou para o evento.
O prefeito de Moscou, Sergey Sobyanin, afirmou, em uma publicação no Telegram, que drones ucranianos atacaram Moscou nesta terça-feira (6), interrompendo voos em quatro aeroportos da capital russa e em diversos outros locais. De acordo com a publicação, pelo menos 19 drones ucranianos foram destruídos ao se aproximarem da cidade durante a noite, um dia depois de as defesas aéreas russas derrubarem quatro drones perto da capital.
No cenário atual da guerra entre russos e ucranianos, e da confusão em que caíram as negociações para o fim do conflito, chama a atenção a ausência de representantes de países europeus que lutaram junto com os soviéticos pela libertação do continente do jugo das forças nazistas alemãs. Essa ausência mostra a profunda divisão que paira no continente europeu hoje entre os antigos aliados, e o temor de que esta divisão escale para um conflito aberto.
Celebração retrata estado de divisão do mundo
Héctor Luis Saint-Pierre, professor especialista em segurança internacional e vice-coordenador executivo do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, analisa o contexto em que ocorrerá a celebração dos 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial e o significado da presença do presidente Lula no evento.
“O principal elemento que marca este encontro é servir como um retrado do estado de divisão do mundo, o estremecimento do sistema internacional que está acontecendo na atualidade”, diz o docente. A celebração, explica Saint-Pierre, evoca o reconhecimento da vitória lograda pela União Soviética, por meio do sacrifício do povo soviético, e evidencia o grau de recuperação alcançado pela Rússia, e seu pertencimento ao BRICS.
“A celebração ocorre num momento no qual há uma guerra. A Rússia invadiu a Ucrânia e enfrenta o governo de Zelensky que é muito próximo de uma extrema direita que é, digamos, filha do nazismo. Um governo que defende, por exemplo, a figura do Stepan Bandeira, um militar que, durante toda a Segunda Guerra Mundial, foi um agente do nazismo na Ucrânia. E, neste contexto de guerra, o desfile militar também é uma forma de representar a capacidade bélica da Rússia”, diz.
Saint-Pierre comenta o significado da participação da China no evento para o panorama geopolítico atual. “A China também faz parte do BRICS, e é o pivô central da transformação do sistema internacional. E, nesse momento, está em uma guerra comercial feroz contra os Estados Unidos. E também apresenta uma nova alternativa, da multilateralidade contra a unilateralidade, e essa alternativa é defendida tanto pela Rússia quanto pelos países que integram o BRICS, inclusive o Brasil. Então, também se comemora, neste encontro de líderes, essa nova alternativa para o mundo, o mundo multilateral e multipolar”, diz.
O docente diz que o mundo unipolar, sob hegemonia dos Estados Unidos, se encerrou quando da eclosão da guerra da Ucrânia, em março de 2022. Em seu lugar, começou a se consolidar um mundo “polipolar”, em que as relações são definidas por organismos internacionais e existe uma isonomia normativa entre os países que integram o sistema internacional. “Não é um mundo regido por regras que são ditadas pelo vencedor”.
Agenda do Lula vai além do desfile
O docente da Unesp também fala sobre a participação do presidente Lula no encontro. “A ida do presidente do Brasil é um reconhecimento da vitória da União Soviética contra o nazismo. Também é uma participação enquanto integrante do BRICS. E, além da participação do evento comemorativo pelo fim da segunda Guerra Mundial, estão agendadas visitas e um encontro entre Lula e Putin e também entre Lula e Xi Jinping. Haverá esse encontro de três Presidentes, três primeiros mandatários de grandes potências, de países importantes que são, digamos, o núcleo central do BRICS. E vão ampliar parcerias de comércio, de infraestrutura e de amizade entre os povos. Então, essa visita do Lula é muito importante.”
Zelensky faz ameaça e EUA não se manifestam
Nos últimos dias, o líder da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, disse que não pode assegurar que não haverá ataques ucranianos contra Moscou durante a celebração, e que não garantiria a segurança dos líderes estrangeiros que estarão por lá.
“Talvez essa ameaça seja parte da razão pelo qual muitos países da Europa não vão mandar representantes para essa comemoração que faz parte da história da Europa. Porque, sem a resistência da União Soviética a Europa seria outra, sem dúvida”, diz Saint-Pierre. “Neste momento, a Europa enxerga a Rússia como um país beligerante contra a OTAN, como a principal ameaça à Europa.”
O docente destaca o fato de que a ameaça feita por Zelensky não despertou críticas no ocidente. “O presidente dos Estados Unidos não se manifestou com relação a essa ameaça. Isso pode ser lido, por parte de Zelensky, como uma carta branca para algum atentado terrorista, ou por meio de drones, contra a Praça Vermelha, onde estarão as autoridades do mundo que decidiram comemorar essa vitória.”
O docente diz que o contexto da guerra é o que mantém Zelensky no poder. “Qualquer ataque terrorista por parte de Zelensky significa, digamos, uma reafirmação da situação de guerra. E é isso que o mantém no poder. Enquanto houver a guerra, ele não precisa disputar eleições, e se mantém no poder. E é nisso que consiste a manutenção da guerra. Então, possivelmente as ações bélicas vão ocorrer em algumas das frentes”, diz.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast Unesp.
Imagem acima: ensaio para desfile militar na Praça Vermelha, em Moscou. Crédito: Depositphotos