A discussão sobre anistia aos participantes do ataque à praça dos Três Poderes em 9/01/22 ecoa um tema que é recorrente na história do Brasil: a dos movimentos, em geral protagonizados por militares, que buscam desestabilizar ou derrubar o governo, e as iniciativas políticas para anistiar seus líderes e participantes. Houve dezenas de leis de anistia aprovadas ao longo da história do Brasil, por diferentes motivos. Para destrinchar esta página polêmica e dolorosa da história brasileira, o podcast Prato do Dia recebeu o professor e historiador Paulo Ribeiro da Cunha.
A história do Brasil republicano é marcada pela recorrente participação dos militares na política. Inicia-se com um golpe, em 1889, protagonizado pelo exército, e os dois primeiros chefes de estado do período foram marechais, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Quatro décadas depois, a Revolução de 1930 levou Getúlio Vargas ao poder. A proximidade do líder gaúcho com os fardados permitiu o golpe de 1938, origem o Estado Novo, um regime autoritário que perdurou até 1945. Mesmo após o fim da Segunda Guerra Mundial, a influência militar permaneceu latente, atravessando momentos de crise, como o suicídio de Vargas em 1954. Já em 1964, um golpe de Estado liderado pelas Forças Armadas instaurou uma ditadura que duraria 21 anos — com desdobramentos que perduram até hoje, como o não julgamento da maioria dos civis e militares envolvidos nos crimes cometidos durante o regime. Com o retorno à democracia e o início da Nova República, em 1985, estabeleceram-se garantias constitucionais que buscavam restringir a atuação política dos militares. No entanto, sua influência na vida pública segue sendo motivo de debate, com discussões sobre seu papel na sociedade e na gestão do país.
Paulo Ribeiro da Cunha, que é doutor em ciências sociais e docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, câmpus de Marília, e pesquisador da história do das forças armadas, diz que a história mundial é marcada pela presença do Exército na política sem que, necessariamente, isso represente um tensionamento para regimes democráticos. “Na Grécia antiga, os cidadãos e os guerreiros estavam incluídos nessa cidadania, eram reconhecidos como iguais e com direito de falar e decidir. Então, não é nada novo. Nós criamos um paradigma de que a participação política dos militares é algo danoso para democracia. Mas, não é necessariamente assim. Basta lembrar que a República adveio de um golpe militar, e foi algo positivo. E, um ano antes, a participação política dos militares auxiliou na abolição da escravatura”, diz o docente.
Cunha aborda também as anistias ao longo da trajetória do Brasil. De todas as 80 leis de anistia aprovadas no país, a mais conhecida e controversa é a que foi promulgada em 1979, e que se mostrou um componente crucial do projeto de abertura política para por fim à ditadura militar. “A anistia de 1979 foi totalmente excludente. Por exemplo, não contemplava, em um primeiro momento, os marinheiros e praças. Além disso, a lei foi interpretada de forma juridicamente absurda, o que abriu margem para também perdoar os chamados “crimes conexos” — ou seja, os crimes cometidos pelos próprios agentes da repressão, como tortura e assassinato. Aos poucos, nós temos visto a superação disso pelo entendimento e evolução do Direito, e passamos a compreender que os atos desses torturadores são crimes contra a humanidade. Então não são prescritíveis”, explica o professor.
O docente faz um paralelo com os dias de hoje ao analisar os atos antidemocráticos ocorridos em 8 de janeiro de 2023, em Brasília, quando manifestantes invadiram e depredaram prédios públicos em protesto contra o resultado das eleições presidenciais de 2022. “Avalio que a perda de controle da multidão foi o que abortou a possibilidade do golpe ou, ao menos, de um fato político que pudesse conduzir à destituição de um governo democrático. E está havendo um movimento de tentar uma anistia, o que é um absurdo. Nesse cenário, percebo que, sem dúvida nenhuma, o Judiciário tem atuado com muita efetividade, o que é muito positivo para a democracia”, diz o professor.
Neste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete acusados réus por tentativa de golpe de Estado durante as eleições de 2022, após denúncia realizada pela Procuradoria Geral da República. Cinco dos réus são ligados às Forças Armadas. Paulo Cunha defende que a punição aos envolvidos deve ser exemplar, pois, ao longo da história brasileira, militares anistiados foram reintegrados aos seus cargos sem sofrer consequências significativas, o que permitiu a manutenção de vieses golpistas que persistem até hoje.
Mas que tipo de Forças Armadas queremos ter no Brasil? Para o professor, uma coexistência pacífica entre os poderes civil e militar é possível. “Eu acho que implica, sem dúvida nenhuma, uma visão nova das Forças Armadas. Desde que a classe política também reveja as suas posições e entenda os militares como um componente da cidadania do Estado Democrático de Direito, submetidos ao poder civil”, diz.
Ouça a entrevista completa com Paulo Ribeiro da Cunha ao podcast Prato do Dia no player abaixo, e também nas principais plataformas de áudio.