Mesmo em áreas preservadas da Mata Atlântica, cervídeos sofrem o impacto das ações humanas

Estudo que mapeou populações de cervos em áreas do bioma de dez estados brasileiros revela um cenário de “floresta vazia”, em que a preservação da vegetação mascara uma preocupante redução da fauna.

Conservar uma área de vegetação natural não garante que as espécies que vivem lá estarão protegidas. O fenômeno da defaunação, ou a extinção da fauna de uma área, pode ocorrer mesmo sem perda total da cobertura vegetal, como consequência das intervenções humanas. Agora, um estudo inovador, com foco na Mata Atlântica, procurou avaliar a densidade das populações de espécies de cervídeos que podem ser encontradas neste que é um dos biomas brasileiros mais afetados de todos os tempos. E os resultados devem soar uma sirene de alerta para conservacionistas de todos os setores. A densidade populacional dos grupos mapeados pela pesquisa mostra uma significativa redução naquelas áreas onde a influência humana é maior.

A pesquisa reuniu docentes e profissionais da Universidade de Araraquara, Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, câmpus de Jaboticabal, Universidade Federal de Catalão, Universidade Federal de Integração Latino-americana, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e Universidade Federal do Paraná. O estudo foi publicado na revista Journal of Applied Ecology.

O biólogo Márcio Leite de Oliveira, que é pesquisador da Universidade de Araraquara e o primeiro autor do artigo, explica que este quadro, em que uma área rica em vegetação se mostra quase deserta no aspecto da fauna, é descrito por meio do conceito de floresta vazia, proposto originalmente em 1992 pelo biólogo americano Kent Redford. O novo estudo se debruçou especificamente sobre a possibilidade de defaunação envolvendo a família dos cervídeos. Esses animais desempenham importantes papéis ecológicos nos ecossistemas e podem servir como indicadores da integridade ambiental dos lugares nos quais são encontrados. Na Mata Atlântica, vivem cinco espécies: Mazama rufa, Mazama jucunda, Mazama nana, Subulo gouazoubira e Passalites nemorivagus.

“Vários estudos já mostraram a ocorrência de defaunação. Agora, também conseguimos dar contornos a esse processo para o caso dos cervídeos da Mata Atlântica”, diz Oliveira. “E, nesse caso, não temos como fugir do fato de que estamos vendo um quadro de vazio.”

Dados foram coletados em 10 estados

Antes da chegada dos europeus ao nosso território, em 1500, a Mata Atlântica se estendia por 1,6 milhão de km² ao longo da costa brasileira e alcançava também o leste do Paraguai e a província de Misiones, na Argentina. Atualmente, estima-se que restem apenas entre 11% e 16% de sua área original. A maior parte do bioma está dispersa em fragmentos pelo terreno. E 97% dos fragmentos florestais remanescentes possuem área inferior a 50 hectares.

Os pesquisadores coletaram amostras em 21 áreas localizadas nos estados do RS, SC, PR, SP, MG, RJ, MS, GO, BA e SE. A maioria das áreas estava situada no interior de unidades de conservação. O desenho metodológico feito pelos cientistas relacionou a densidade populacional dos animais com um indicador denominado Índice de Influência Antrópica, para estimar o quanto uma dada região é afetada pelas ações das populações humanas. Dados sobre caça, presença de cães domésticos, exploração vegetal e ocorrência de javalis ou ungulados domésticos foram usados para alimentar o modelo.

Estimar a densidade das populações de cervídeos não é uma tarefa fácil, mas se torna ainda mais desafiadora quando o ambiente de trabalho é uma floresta tropical, como é o caso da Mata Atlântica. Para monitorar o comportamento desses animais, biólogos do Brasil vêm aperfeiçoando uma nova metodologia que emprega cães farejadores treinados para localizar fezes. A partir da localização e da análise dessas amostras, é possível estimar o número de animais que vivem na região e procurar por padrões de defaunação.

Por causa de diferenças na vegetação e na fragmentação das regiões amostradas, os pesquisadores estabeleceram 31 estimativas de densidade. Em cada área, os cães farejadores percorreram transectos dentro da floresta, fora de trilhas pré-existentes. O esforço amostral fez com que os percursos dos animais variassem entre 369 m e 43.087 m, dependendo do tamanho e da heterogeneidade da área estudada.

A correlação desses fatores mostrou que, nas regiões com um Índice de Influência Antrópica mais elevado, o que indica que os efeitos da presença humana são maiores, os cervídeos aparecem menos. A densidade variou de 0,14 a 18,17 indivíduos/km², e a espécie Passalites nemorivagus mostrou ser a mais abundante. Os resultados demonstram que o fenômeno de floresta vazia, observado nos fragmentos da Mata Atlântica, não pode ser desconectado do quadro mais amplo de destruição deste bioma no país, destruição esta bastante visível aos olhos humanos e também aos radares dos analistas.

“As pessoas pensam que, se há floresta e há cervídeos vivendo nela, então está tudo bem. Mas os dados mostram que a pressão exercida sobre os animais, no caso da Mata Atlântica, é realmente grande”, diz o veterinário José Maurício Barbanti Duarte, docente do Departamento de Zootecnia da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, câmpus de Jaboticabal.

Barbanti coordena o Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos (Nupecce) e é pesquisador de referência na área de cervídeos no Brasil, além de ser um dos autores do artigo. Ele diz que o fato de as florestas muitas vezes estarem cercadas por áreas destinadas à agropecuária ou por cidades resulta em impactos negativos sobre os biomas.

“Existem cães que adentram as florestas para caçar, por exemplo. Também há o impacto causado pelos próprios caçadores humanos e pelas atividades de exploração das espécies que são desempenhadas no interior das florestas. É tudo isso que esse trabalho mostra agora”, diz o pesquisador. No caso dos cervídeos, esses animais sofrem até o impacto pela convivência com espécies estrangeiras introduzidas no Brasil pelo homem, como no caso do javali europeu.

Cães treinados para ajudar na pesquisa

Por causa da dificuldade em identificar as fezes de animais silvestres, que muitas vezes se misturam com a serrapilheira, os pesquisadores optaram por usar cães farejadores para localizá-las. Barbanti diz que essa metodologia vem se mostrando importante.

“Estamos trabalhando bastante com essa metodologia. Inicialmente, usamos os cães para estudos genéticos relacionados às amostras fecais, voltados, por exemplo, para análise de distribuição geográfica. Mas outras pesquisas nos deram agora a segurança para usar esse método também para estimativas populacionais. É um avanço muito grande em relação ao que existia até então, em termos metodológicos, para estimativas de mamíferos florestais. As técnicas disponíveis eram bastante limitadas e com erros muito grandes. Com essas estimativas mais realistas que apresentamos agora, temos uma resposta mais fidedigna de como essas populações estão flutuando. Isso é muito importante para estudos de conservação em geral”, diz ele.

Em linguagem técnica, o modelo rodado pelos cientistas é conhecido pelo nome “Fecal Standing Crop” (contagem de pilhas fecais, em português). As estimativas usadas no cálculo são a taxa de defecação da espécie e o tempo de decomposição das fezes no ambiente. Entram nas contas também o tamanho da área percorrida pelos cães farejadores, assim como o tempo gasto no processo de rastreamento. “O trabalho mostra que, nas áreas que são protegidas, onde existem mais guardas-parques atuando, a presença dos animais é maior”, diz Oliveira.

Para buscar reverter a diminuição das populações de cervídeos na Mata Atlântica, os estudiosos propõem a adoção de diferentes medidas. Algumas estão relacionadas ao aumento da fiscalização ambiental para combater a caça ilegal e o tráfico de animais silvestres. Outras ações estratégicas envolvem a criação de corredores ecológicos, o controle de espécies invasoras, programas de educação ambiental e iniciativas de apoio às comunidades locais, visando sensibilizar a população sobre a importância da fauna. Por fim, sugerem a oferta de alternativas econômicas sustentáveis às populações que vivem perto dos habitats desses animais, a fim de diminuir o apelo exercido pela caça de subsistência.

Há também a necessidade de aprimorar nosso conhecimento da biodiversidade brasileira, aumentando o investimento nas atividades de monitoramento por meio do uso de drones ou armadilhas fotográficas.

“Diante da situação negativa que estamos vendo com essas espécies, tudo o que favoreça a conservação é importante”, defende Oliveira.

Imagem acima: Um Mazama nana. Crédito: Natália Azevedo/Nupece.