Para reduzir pegada de carbono da indústria eletrônica, pesquisas da Faculdade de Ciências e Tecnologia apostam em nanomateriais biodegradáveis

Dispositivos feitos a partir de materiais biológicos, como madeira, mel e papel kraft, são capazes de simular comunicação entre células nervosas, imitar propriedades do olho humano e detectar presença de contaminantes no ambiente. Estudos são resultado de parcerias com instituições de Portugal e do Reino Unido.

Reduzir a pegada de carbono da indústria eletrônica e, ao mesmo tempo, oferecer à sociedade dispositivos de alto desempenho. Essa é a promessa da eletrônica baseada em materiais biodegradáveis e sustentáveis, que traz a dupla vantagem de utilizar processos de fabricação de baixo impacto ambiental e, ao mesmo tempo, abrir a possibilidade de uma variadíssima gama de aplicações, de sensores ambientais até equipamentos eletrônicos que podem ser usados em vestimentas.

Na Unesp, pesquisas neste campo estão conduzidas pelo Laboratório de Dispositivos e Sensores Orgânicos, ligado à Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Unesp, no câmpus de Presidente Prudente, em colaboração com diferentes instituições de pesquisa de outros países. Nos anos de 2024 e 2025, essa colaboração resultou na publicação de três artigos em periódicos internacionais, todos sustentando a perspectiva de que materiais biodegradáveis, como papel kraft, madeira e mel, podem viabilizar uma eletrônica mais ecológica, mas não menos eficiente. Um quarto artigo deve ser publicado proximamente.

O trabalho conta com o apoio da Fapesp  por meio do projeto ‘Dispositivos eletrônicos baseados em nanomateriais sustentáveis’, contemplado com auxílio financeiro na SPRINT (São Paulo Researchers in International Collaboration), e é coordenado pelos professores Neri Alves e Carlos Constantino.

Neri Alves conta que a série de artigos reflete o aprofundamento das parcerias internacionais, em especial com Rodrigo Ferrão Martins, professor e pesquisador da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, e com Jeff Kettle, docente da University of Glasgow, na Escócia. “O objetivo geral dessa colaboração é desenvolver dispositivos sustentáveis para diferentes aplicações, que incluem circuitos neuromórficos, sensores ambientais, internet das coisas, embalagens inteligentes e eletrônica vestível e comestível, dentre outras”, afirma.

Transistor à base de madeira e mel

O primeiro estudo da série, cujos resultados foram publicados na revista Advanced Intelligent Systems, resultou na criação de um transistor sustentável, baseado em madeira e mel, capaz de emular o funcionamento da sinapse, isto é, a comunicação entre dois neurônios do sistema nervoso. Teve como primeiro autor o doutorando da Unesp Douglas Henrique Vieira e foi coordenado por Neri Alves e Rodrigo Ferrão Martins, da Universidade Nova de Lisboa.

“A eletrônica convencional é amplamente baseada em materiais como plásticos e metais raros, que provocam um impacto ambiental significativo. Além disso, no processo de fabricação, muitas vezes são empregadas temperaturas elevadas e vácuo, o que implica alto consumo energético e custo financeiro”, diz Vieira. “Nosso objetivo foi conseguir um resultado igualmente bom com baixo impacto, utilizando materiais pouco convencionais”, diz.

A impressão do circuito foi feita por meio de serigrafia, o mesmo procedimento empregado para estampar camisetas. Como o substrato que sustenta o circuito é a madeira, o dispositivo poderá, no futuro, ser integrado em mobílias inteligentes.

“Além do substrato de madeira, um destaque importante do estudo foi a utilização de mel como eletrólito, o que torna o dispositivo biodegradável e reciclável, reduzindo fortemente os impactos ambientais sem comprometer o desempenho”, sublinha o professor Emanuel Carlos, da Universidade Nova de Lisboa e segundo autor do artigo.

Vale lembrar que os eletrólitos, amplamente utilizados em dispositivos como baterias, transistores eletrolíticos e supercapacitores, são materiais que conduzem eletricidade mediante o movimento de íons dispersos em uma solução. Sejam sólidos, líquidos ou gelatinosos, eles oferecem um meio no qual as cargas elétricas podem se mover.

O artigo enfatiza a excelência do desempenho do transistor, e diz que a bem-sucedida emulação do processo de aprendizado–esquecimento–reaprendizado–esquecimento oferece potencial para seu uso em sistemas neuromórficos sustentáveis.

Dispositivo é capaz de distinguir cores

O segundo artigo, publicado na revista Advanced Functional Materials, relata o desenvolvimento de um dispositivo, feito com materiais biodegradáveis e reutilizáveis, capaz de mimetizar o que ocorre nos fotorreceptores do olho humano.

O dispositivo combina três funções: detectar a luz, processar a informação e armazená-la na memória, e tudo isso em uma única unidade, tal como acontece no olho humano. Mesmo quando desligado, ele pode reter informações armazenadas, uma propriedade conhecida como não volatilidade.

“Nosso dispositivo é capaz de distinguir as cores, tal como se espera que o olho humano faça. Além disso, apresentou um consumo médio de energia muito baixo para cada processo de treinamento, estando entre os melhores resultados relatados”, diz José Diego Fernandes, o segundo autor do artigo, que é pesquisador de pós-doutorado ligado à FCT. “Os dispositivos neuromórficos são inspirados no funcionamento do cérebro, permitindo que o processamento e o armazenamento de dados ocorram no mesmo sítio, o que significa melhor desempenho e menor consumo de energia”, diz.

Jeff Kettle, da University of Glasgow, que foi, juntamente com Neri Alves, um dos coordenadores desse estudo, ressalta a longa colaboração entre o Reino Unido e a Unesp, da qual a nova pesquisa é um desdobramento, e o potencial para inovação que ele oferece. “O estudo é altamente inovador e demonstra que um único transistor pode ser transformado em um pixel de imagem, capaz de distinguir diferentes cores. Seu desempenho e baixo consumo de energia abrem caminho para futuros sistemas eletrônicos sustentáveis”, diz.

O terceiro estudo, também coordenado por Neri Alves e Jeff Kettle, foi publicado em Advanced Sustainable Systems e teve como primeiro autor o pós-doutorando Rogério Miranda Morais, também ligado à FCT. O texto propõe a fabricação de dispositivos eletrônicos por meio da conversão de papel kraft em grafeno, induzida por laser. “Os dispositivos demonstraram excelente condutividade elétrica e desempenho térmico, atingindo temperaturas de até 145,5 °C, com distribuição homogênea de calor. Além disso, a avaliação do ciclo de vida revelou que essa tecnologia tem um impacto ambiental duas ordens de grandeza inferior ao dos eletrônicos convencionais”, diz Morais.

O pesquisador relata que o grafeno induzido por laser (LIG) foi preparado diretamente por síntese in situ a partir de substratos de papel kraft. Espectroscopia Raman e técnicas de microscopia foram utilizadas para analisar a transição das fibras de celulose para flocos de grafeno carbonizado. “Os resultados indicam que a pirólise fototérmica do papel kraft utilizando um diodo laser permite a produção de dispositivos flexíveis de baixo impacto e produtos eletrônicos ecológicos”, diz Morais.

Papel capaz de monitorar pesticidas

Além dos três estudos publicados, um quarto artigo, ainda em fase de revisão, tem como foco a criação de plataformas sustentáveis e eficientes para a detecção de contaminantes ambientais, devido ao uso descontrolado e ao manejo inadequado de pesticidas. O estudo foi conduzido pela pós-doutoranda da UNESP Maíza Ozório e colaboradores, sob a supervisão dos professores Carlos Constantino, da FCT, e Rodrigo Ferrão Martins, da Universidade Nova de Lisboa.

“Nosso objetivo foi a fabricação de plataformas baseadas em papel para aplicações em transistores voltados para o monitoramento de pesticidas como tiabendazol (TBZ) e acefato (ACF). O uso do papel como substrato destaca-se por suas diversas vantagens, incluindo leveza, flexibilidade, baixo custo e impacto ambiental reduzido. A abordagem proposta envolve a fabricação de eletrodos de grafeno induzido por laser (LIG) diretamente nos substratos de papel, além da utilização de nanoestruturas de óxido de zinco e de nanopartículas metálicas (prata ou ouro) para aprimorar o efeito”, conta Ozório.

Como explica a pesquisadora, a relevância do projeto está na possibilidade de desenvolver uma plataforma analítica que combine diferentes técnicas de detecção em um único substrato. “A colaboração entre a Unesp e a Universidade Nova de Lisboa possibilitou a realização da pesquisa. Agora, com o conhecimento adquirido, estou dando continuidade ao projeto, investindo esforços no desenvolvimento de transístores totalmente sustentáveis para aplicações ambientais”, afirma.

A convergência das várias abordagens evidencia a produção de dispositivos neuromórficos baseados em materiais sustentáveis e técnicas de fabricação inovadoras como um dos caminhos para o futuro da eletrônica. “O próximo desafio será escalar essas tecnologias para aplicações comerciais, garantindo sua viabilidade econômica sem comprometer os princípios de sustentabilidade que motivaram sua criação”, diz Alves.