Qualquer animal, ao longo de sua existência, em algum momento travará contato com os incontáveis vírus, fungos e bactérias com que compartilhamos o planeta, e esse encontro pode resultar no surgimento de uma série de doenças. Se este animal vive em grupo, a situação pode se tornar um pouco mais complicada. A depender do tipo de doença, toda a comunidade a que ele pertence pode estar sob o risco de contágio. Para impedir que as infecções se espalhem e dizimem os grupos, muitas espécies desenvolveram a capacidade de mudar de comportamento e adotar diversas estratégias, seja isolando os indivíduos doentes, aumentando a higiene individual e coletiva ou mesmo eliminando a ameaça.
Em nossa espécie, a capacidade de alterar comportamentos com o objetivo de aumentar a proteção ficou bastante visível durante a pandemia de Covid-19. Praticamente todos os países adaptaram seus modos de socialização para diminuir as chances de contágio. Porém, tais mudanças podem ocorrer em animais de porte bem menor, como no caso das formigas cortadeiras, ou saúvas.
Os paralelos que podem ser feitos entre esse tipo de formiga e os seres humanos são muitos: elas adaptaram seu modo de vida em sociedade e conseguiram sobreviver por milhões de anos, dominando regiões inteiras. Isso foi possível graças a sua habilidade única de cultivar o próprio alimento dentro das colônias, em algo semelhante a monoculturas de fungos. Graças ao novo estudo, sabemos agora que também compartilhamos com esses pequenos insetos a capacidade de aprender a lidar melhor com doenças específicas, fortalecendo assim o sistema imunológico da colônia.
Esse foi um dos achados revelado por um estudo do qual participaram pesquisadores da Unesp, e que foi divulgado no artigo “Exploring immune memory traits in the social immunity of a fungus-growing ant”, publicado na revista científica Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences. “Estávamos muito interessados em entender se as saúvas conseguem ‘aprender’ a se defender de diferentes patógenos, ou seja, se possuem algum tipo de memória imune coletiva”, explica Aryel C. Goes, primeiro autor do artigo que foi resultado da sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas (Biologia Celular, Molecular e Microbiologia) da Unesp, câmpus de Rio Claro.
“Constatamos que a formiga é capaz de reconhecer os patógenos e, além disso, intensificar respostas higiênicas quando defrontadas repetidas vezes com um mesmo tipo de ameaça, o que podemos traduzir como um tipo de memória coletiva. É a primeira vez que se observa algo assim em insetos sociais”, diz André Rodrigues, orientador da pesquisa e docente do Departamento de Biologia Geral e Aplicada no Instituto de Biociências da Unesp.
As etapas da memória imunológica
A memória imune, ou imunológica, é a capacidade do sistema imunológico de “lembrar” de microrganismos ou substâncias que causaram doenças em outros momentos da vida do organismo. Isso permite ao sistema imune responder às doenças e modo mais rápido e direcionado, evitando que a enfermidade se espalhe no organismo ou ganhe força. De maneira geral, é como se o corpo criasse uma “lista de inimigos conhecidos” para se proteger melhor no futuro.
Quando um organismo conta com memória imunológica, costuma apresentar quatro características principais quando exposto a um patógeno: força, velocidade, duração e especificidade da resposta imune. Essas foram definições apresentadas em 2018, por uma dupla de imunologistas franceses que queriam estabelecer contornos mais precisos ao significado da expressão “memória imune”, devido à importância que esse campo de pesquisa estava ganhando no desenvolvimento de tratamentos e vacinas.
Considera-se que um organismo apresenta memória imune quando ele demonstra respostas intensificadas contra um mesmo patógeno, após o primeiro contato (força); as respostas do sistema imunológico costumam ocorrer mais rapidamente a cada reinfecção (velocidade); sendo que essa intensidade só irá ocorrer para um patógeno já conhecido pelo sistema (especificidade); e essa capacidade imune contra o patógeno específico permanecerá no corpo, permitindo que a defesa volte a ser ativada quando necessário (duração).
O grupo de pesquisadores desejava investigar a ocorrência dessas quatro características nas formigas Atta sexdens, conhecidas popularmente como saúvas-limão. Com este objetivo, organizaram um grande experimento, que envolveu 80 colônias.
No estudo, os pesquisadores colocaram os insetos em contato com diferentes agentes patógenos. Algumas colônias foram expostas aos fungos Fusarium oxysporum e Trichoderma spirale, conhecidos por prejudicar os fungos dos quais as formigas se alimentam e, consequentemente, ameaçando a sobrevivência da comunidade. Outra parcela das colônias foi exposta aos fungos Metarhizium anisopliae e Beauveria bassiana, que afetam exclusivamente as formigas. “Os patógenos que atacam as formigas são encontrados naturalmente nas colônias de saúva-limão, e são candidatos a serem usados como bioinsumos para controlar esses insetos quando são considerados pragas em lavouras ou plantações de eucaliptos”, conta Goes.
Além disso, para garantir que as quatro características da memória imune seriam encontradas, o grupo dividiu as 80 colônias em diferentes regimes de infecção. Todas as colônias passaram por uma primeira infecção e, depois, foram infectadas sete dias depois. Entretanto, algumas voltaram a ser infectadas novamente 30 dias depois, e outras só receberam a reinfecção após 60 dias. Este recurso permitiu aos pesquisadores monitorar o quanto uma dada colônia é capaz de intensificar a resposta higiênica a um mesmo patógeno, transcorrido certo período.
Para avaliar o aspecto da especificidade, o grupo seguiu o mesmo regime de reinfecções com diferentes espaços de tempo, porém, também mudou o patógeno que era inserido na colônia a cada reinfecção. Isso possibilitou observar se o comportamento de defesa se mantinha o mesmo, independentemente do patógeno inserido, ou se a resposta mudava conforme a ameaça. Os dados revelaram que o sistema imunológico das formigas é capaz de se lembrar de fungos que já as infectaram anteriormente, e também que a velocidade e o tipo de cada resposta eram específicos para cada ameaça.
Formigas recrutam operárias para defesa da colônia
A equipe de pesquisadores observou também que, quando um composto “estranho” é inserido na colônia, as formigas rapidamente conseguem identificá-lo por meio da antenação, que permite captar pistas químicas no ambiente. “Elas comparam essas pistas com o próprio odor e com a composição química da colônia, e isso mostra para elas que algo está diferente”, conta Goes. Nesse momento, inicia-se um processo de investigação para determinar se a partícula externa apresenta alguma ameaça. Caso a dúvida se confirme, começa o recrutamento de formigas operárias, que ficarão responsáveis por lidar com a ameaça.
Goes e os demais pesquisadores do artigo conseguiram identificar dois comportamentos principais entre as saúvas-limão. O primeiro ocorria quando as próprias formigas eram contaminadas com fungos causadores de doenças. Nesse caso, elas iniciavam um processo de limpeza, lambendo-se e lambendo umas às outras, até que a limpeza estivesse completa. Já nos casos em que os patógenos são identificados em fungos que servem de alimento, elas realizam um procedimento parecido com a nossa capinagem, e retiram pedaços de fungo contaminado e os levam para serem “descartados” da colônia, ou lambem diretamente o fungo, a fim de remover a contaminação. “Tudo o que elas lambem de alguma superfície fica armazenado no interior da boca. A boca é conectada a glândulas que liberam secreções antifúngicas e antibacterianas. Desta forma, o fungo malicioso é destruído, e posteriormente elas cospem esses restos no lixo”, conta Goes.
Os resultados também mostraram que a capacidade de reação das colônias, após repetidamente expostas ao mesmo patógeno em intervalos de até 30 dias, se tornava cada vez mais rápida, e aumentava também o número de formigas envolvidas na limpeza logo nos minutos iniciais. Porém, essa velocidade decaiu um pouco no intervalo de 60 dias. “Isso indica um tipo de memória cíclica: elas ainda conseguem lembrar e responder ao patógeno, porém de maneira mais lenta”, diz Goes.
Outro resultado que chamou a atenção do grupo veio dos experimentos com patógenos diferentes. Quando as formigas estavam lidando com uma infecção, e outro microrganismo era inserido na colônia, elas evitavam o contato com o novo invasor e limitavam sua resposta. Para Rodrigues e Goes isso indica que o sistema imunológico das formigas não reage à exposição de maneira meramente reflexiva. Se fosse assim, a resposta imune à segunda infecção deveria ser aumentada. “Ou seja, a colônia não vai intensificar a resposta imune simplesmente porque surgiu algo novo, especialmente se ela ainda estiver lidando com alguma infecção anterior”, diz Goes.
O fator que motiva esse comportamento é o mesmo que leva a nós, humanos, a evitar ambientes fechados quando gripados, ou até mesmo ficarmos próximos a pessoas adoentadas: é preferível deixar o organismo se recuperar corretamente de uma primeira infecção do que sobrecarregá-lo pela atuação simultânea de múltiplos vírus ou bactérias. “A grande interpretação é que as respostas mais intensas não são consequência dos efeitos das infecções, mas sim dos patógenos. Ou seja, elas são capazes de diferenciar os tipos de infecção “, completa Goes.
Aplicações no combate a pragas
Além de contribuir para o avanço do entendimento científico sobre o comportamento das Atta sexdens, o estudo sobre a memória imunológica desses insetos também traz implicações práticas importantes, especialmente no campo do manejo de pragas agrícolas. As formigas-cortadeiras são consideradas grandes pragas em lavouras e em florestas plantadas, principalmente as de eucalipto.
Conhecidas como desertos verdes, por conta da grande quantidade de água que consomem, as florestas de eucaliptos correspondem ao principal tipo de floresta plantada no Brasil. Segundo dados de Extração vegetal e Silvicultura do IBGE, em 2023 o número de hectares plantados foi mais de 7,5 milhões, o que corresponde a um número quatro vezes maior do que a área correspondente ao pinus, a segunda espécie mais plantada. O cultivo de eucalipto é destinado, em sua maioria, para a produção de chapas de madeira e celulose, indústria que corresponde a 3% das exportações do Brasil. A produção de 25 milhões de toneladas de celulose em 2022 garantiu ao país o segundo lugar no ranking global de produtores, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.
Esses megaempreendimentos, entretanto, enfrentam a constante ameaça das saúvas, responsáveis por destruir plantações inteiras. “O controle dessas populações normalmente é feito com produtos químicos, que têm grande impacto ambiental. Por isso, cada vez mais a indústria tem se interessado pela produção de bioinsumos para controle de pragas, que tenham como base microrganismos, como fungos, capazes de extirpar as colônias”, conta Rodrigues.
Os pesquisadores enxergam potencial no novo estudo para servir de base para a produção de novos produtos, ao revelar que aplicações repetidas do mesmo microrganismo podem, na verdade, fortalecer a resposta higiênica das formigas, tornando-as mais rápidas e eficazes em eliminar o patógeno. “Isso mostra que não será a aplicação do produto em quantidades crescentes que vai matar a formiga. Pelo contrário, quanto maior a quantidade e a frequência, maiores as chances de que aprendam a combater a ameaça”, diz Rodrigues. A dupla defende que um controle de pragas eficaz exigirá um “drible” no padrão de reconhecimento das formigas e a busca de microrganismos ainda desconhecidos para elas.
“As colônias são sistemas que estão em constante contato com patógenos, seja porque são alvo de produtos para controle de praga, seja porque elas mesmas trazem ameaças externas quando levam folhas e matéria orgânica para dentro da colônia”, completa Goes. “Faz sentido, no contexto evolutivo, que elas tenham desenvolvido essa capacidade de higiene e de memória imune. Agora, com esse estudo, conseguimos desvendar mais uma característica desse grupo de insetos”, conclui o jovem pesquisador, que hoje está realizando o doutorado na mesma área na Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos.
Imagem acima: operária de saúva-limão (Atta sexdens) realizando a capinagem no jardim de fungo infectado, que consiste na remoção de fragmentos contaminados e seu descarte no lixo da colônia. Crédito: Quimi Vidaurre Montoya