Enfrentando uma dura crise hídrica, os moradores da cidade de Bauru conviveram, por quase seis meses, com a imposição de rodízio no abastecimento de água. Ao longo de setembro, ponto mais crítico da crise, estabeleceu-se que, nas regiões da cidade abastecidas pelo rio Batalha, o fornecimento de água se daria por 24 horas a cada período de três dias. Segundo o Departamento de Água e Esgoto (DAE) de Bauru, autarquia municipal que gere os recursos hídricos da cidade, o Batalha é responsável pelo fornecimento para aproximadamente 38% das residências do município. O principal motivo para a adoção do regime de rodízio no abastecimento foi o rebaixamento do nível da água na lagoa de captação, que impedia a sua coleta pelas bombas. Devido às chuvas, o rodízio foi suspenso no último dia 5.
O último balanço da precipitação e da temperatura produzido pelo Centro de Meteorologia de Bauru da Unesp (IPMet) mostra que o acumulado de chuvas em setembro no município foi de apenas 11,7 mm. Isso corresponde a apenas 17% da média esperada, e o mês foi considerado como o segundo mais seco registrado nos últimos dez anos. Ao mesmo tempo, a temperatura média máxima registrada no período alcançou 34,4°C, ultrapassando em 6,3°C a média mensal de 28,1°C. Ou seja, além de seco, o mês de setembro se revelou bem mais quente do que se esperaria, o que contribuiu para a evaporação da água no manancial bauruense.
Ainda que a quantidade de chuvas tenha sido inferior à média registrada dos últimos anos, a perspectiva é que cenários mais secos, como esse que estamos vendo em 2024, deixem de ser uma exceção e passem a se repetir com cada vez mais frequência. Isso já está se refletindo no abastecimento de água dos municípios. Além de Bauru, moradores de São José do Rio Preto, Rio Claro, Araraquara, Atibaia e diversos outros municípios do interior paulista estão adotando ou já adotaram algum tipo de medida para reduzir o consumo, como o racionamento.
Climatologistas concordam que, em virtude das mudanças climáticas, a tendência é de alteração nos padrões pluviométricos em função das mudanças climáticas, bem como de eventos extremos, como a estiagem. Por isso, para além da necessidade de assegurar o abastecimento público deste ou daquele município, é necessário encetar uma discussão mais ampla sobre a gestão e o uso dos recursos hídricos no Estado pelos diferentes atores (veja arte abaixo).
Na base desta discussão está o fato de que muitas das cidades do estado de São Paulo estão localizadas sobre os aquíferos Guarani e Bauru. O acesso a esses reservatórios é franqueado a entes privados por meio de outorga concedida pelo antigo Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), hoje rebatizado como SP Águas. A exploração ocorre principalmente por meio de poços profundos, que não necessariamente integram a rede de água municipal. Portanto, os donos destes poços estão isentos de cortes no fornecimento.
Poços se multiplicam pelo estado
Especialista em águas subterrâneas, o geólogo Didier Gastmans explica que, desde que teve início a exploração do Aquífero Guarani, a principal destinação das águas foi sempre o abastecimento público. Em especial, naqueles municípios que dispõe de poucas opções de captação em águas superficiais, como rios ou reservatórios. Um exemplo deste perfil de cidade é Ribeirão Preto, cujo abastecimento se baseia integralmente em águas subterrâneas. Porém, desde os primórdios da exploração do Aquífero, usinas do setor sucroalcooleiro começaram a perfurar poços para garantir sua autonomia hídrica.
“O que estamos vendo é que outros setores da economia, em diferentes regiões do Estado, estão seguindo por este caminho, perfurando poços com mais de mil metros de profundidade. Estes poços custam de R$ 8 a R$ 10 milhões. Não é um empreendimento barato. Quem dispõe desse dinheiro para investir ou é o Estado, que busca atender demandas locais, ou os grandes motores da economia paulista”, aponta o professor da Unesp, do campus de Rio Claro.
O que estamos vendo é que outros setores da economia, em diferentes regiões do Estado, estão seguindo por este caminho, perfurando poços com mais de mil metros de profundidade
Didier Gastmans
Coordenador do Laboratório de Hidrologia e Isótopos Ambientais (LARHIA), Gastmans e seu grupo elaboraram no ano passado um estudo hidrogeológico sobre o uso da água na Bacia do Pardo Grande, que compreende mais de 40 municípios, entre eles São José do Rio Preto, Votuporanga e Catanduva, que têm entre suas principais atividades econômicas a agricultura e a agroindústria, relacionadas principalmente ao cultivo da cana-de-açúcar e da laranja. “Observamos que nessa região está ocorrendo uma pressão sobre a água subterrânea por parte do agronegócio, seja em sua vertente industrial ou agrícola. Em algumas cidades da bacia do Pardo Grande, o consumo para abastecimento público corresponde a 60% do total, enquanto que aquele destinado a suprir as demandas da agroindústria e da agricultura alcança 30%.
Área irrigada cresceu mais de cem vezes em uma década
Em outra região do estado, o engenheiro florestal Edson Pirolli vem mapeando o impacto das atividades econômicas na bacia do rio Pardo, que começa na região de Botucatu e atravessa 20 municípios, até alcançar Ourinhos, onde está o campus da Unesp em que Pirolli é professor. Entre os impactos das atividades econômicas observados pelo docente está o aumento do uso da água, que nesta região destina-se principalmente à agricultura.
Entre os fatores que turbinam o consumo dos recursos hídricos está o aumento expressivo, por parte das propriedades rurais, do número de pivôs centrais. Esses equipamentos são usados na irrigação de grandes áreas agrícolas. “O consumo de água para irrigação aumentou significativamente no Brasil na última década. Aqui na bacia do rio Pardo estou orientando uma pesquisa para calcular esse aumento. Mas, visualmente já é possível observar que antes havia meia dúzia de pivôs centrais e hoje temos bem mais de 200. Nós saímos de 25 hectares irrigados para 2.700 hectares irrigados em uma década”, aponta.
O aumento no uso dessas águas superficiais ao longo da bacia, argumenta Pìrolli, tem consequências na qualidade e na quantidade de água disponibilizada em Ourinhos.
Desde a última grande crise hídrica, em 2021, o município passou a explorar também o Aquífero Guarani a partir de quatro novos poços profundos, que custam por volta de R$1,5 milhão. Hoje eles respondem por 5% do abastecimento da cidade. Para Pirolli, a perfuração clandestina de poços pode representar um problema na gestão hídrica da região. “Poços de grandes empresas e municípios costumam ter outorga porque são fiscalizados. Porém, proprietários rurais ou mesmo condomínios, por exemplo, muitas vezes abrem poços mesmo sem ter a outorga. Estou falando dos poços artesianos e semiartesianos, mais profundos e que podem custar até mais de R$1,5 milhão”, aponta.
Falta de dados acessíveis dificulta fiscalização
De acordo com o último relatório Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil, publicado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), de 2023, os setores com maiores usos consuntivos dos recursos hídricos (nome que designa a diferença entre a água que é retirada dos corpos d’água e a que é retornada a eles) são o abastecimento público urbano (50,5%) e a irrigação (23,0%). A indústria e o abastecimento animal vêm em seguida, com 9,4% e 8,1%, respectivamente.
A disponibilidade de informações sobre o volume e os diferentes usos da água no estado de São Paulo, bem como a concessão de outorgas e os seus respectivos locais, ainda estão aquém do que uma boa governança dos recursos hídricos exige, segundo opinião dos especialistas ouvidos pelo Jornal da Unesp.
Na visão do engenheiro agrônomo Rodrigo Manzione, o DAEE-SP, autarquia responsável pelo gerenciamento dos recursos hídricos do estado de São Paulo, vem sendo esvaziado nas últimas décadas e, embora esses números estejam na base de dados de outorgas, seu acesso é complexo. “Acho que está na hora de dar um passo adiante e transformar dados em informações. Os dados estão lá, mas não estamos fazendo um bom uso deles”, afirma o professor da Faculdade de Ciências, Tecnologia e Educação da Unesp no campus de Ourinhos. “Além disso, precisamos coletar mais dados pluviométricos, de águas subterrâneas, do clima, das estações meteorológicas e investir em treinamento. Estamos ficando para trás na gestão de um recurso que está cada vez mais escasso”, alerta.
Estamos ficando para trás na gestão de um recurso cada vez mais escasso
Rodrigo Manzione
Em setembro, o governo do estado anunciou a substituição do DAEE-SP pela SP Águas, que irá atuar como uma agência reguladora dos recursos hídricos paulistas. A ideia é que a nova estrutura, além de gerir a concessão de outorgas, também fiscalize e monitore esses contratos. Já a equipe de obras e serviços que também integra o DAEE-SP será migrada para o Departamento de Estradas de Rodagem (DER), que também será remodelado para assumir atividades de infraestrutura no estado. Nessa transição, o governo afirma que serão feitos novos concursos e mudanças nos processos de indicação dos dirigentes e em seus mandatos, para que se aproximem ao que é praticado em agências reguladoras.
Projeto mapeia uso da água em Bauru
A coleta de dados sobre o volume de água extraído de poços, dos rios, quem paga e quanto por esse recurso entre outras informações foi um dos principais esforços dos primeiros anos do Projeto Sacre, uma iniciativa financiada pela Fapesp e coordenada pela USP que conta com a colaboração de colegas de diversas instituições do Brasil e do exterior.
O projeto tem o município de Bauru como um estudo de caso para investigar e propor estratégias para aumentar a segurança hídrica das cidades. “Bauru foi escolhida porque possui diversas fontes de água. O Aquífero Guarani é a principal, mas existe também o rio Batalha, que abastece cerca de um terço da cidade e que está relacionado com essa crise hídrica. Existem ainda vários poços particulares de comércios, condomínios e indústrias, que usam a água do Aquífero. Isso ocorre em Bauru, mas também é uma realidade em outros municípios de São Paulo”, explica o doutorando Fernando Rörig, integrante da equipe do Projeto Sacre.
No esforço para obter dados, a equipe fez um diagnóstico do perfil de usuários de poços particulares outorgados pelo DAEE-SP (atual SP Águas) e cadastrados junto ao Departamento de Água e Esgoto (DAE-Bauru) para fins de cobrança da taxa de esgoto. Inicialmente, os pesquisadores identificaram que o abastecimento público de Bauru realizado pelo DAE-Bauru, além da captação superficial no rio Batalha, é complementado por 39 poços que retiram água principalmente do Aquífero Guarani. Somam-se a essa produção pública 470 poços particulares ativos, que totalizam um volume outorgado de 22,46 mm2/ano, segundo levantamento realizado pelos pesquisadores na base de dados estadual de outorgas do DAEE=SP.
Desses 470 poços ativos, 177 são dedicados ao abastecimento público, com um volume outorgado correspondente a aproximadamente 14 mm3/ano, (cerca de 62% do total). Outros 25 poços são voltados à irrigação, e totalizam 8,3 mm3/ano (37% do total). Outros usos, como comércio e serviços, recreação, indústrias e agricultura somam pouco mais de 200 poços cujo volume de água outorgado não chega a 1% do total.
Durante a consolidação das bases do DAE pelos pesquisadores, entretanto, foi identificada a existência de mais de 1.200 inscrições de uso de águas subterrâneas relacionadas a mais de 500 poços. Os pesquisadores destacam que as duas bases de dados (DAE-Bauru e DAEE-SP) não estão corretamente vinculadas. “A realidade é que a gestão da informação sobre águas subterrâneas ainda tem muito espaço para se organizar melhor”, afirma Rörig.
“Sabemos que poços particulares, seja em condomínios ou comerciais, já atendem hoje 10% das demandas do município. Queremos entender se existe uma relação entre eles e o problema de falta de água, e se a falta de água estimula os particulares a quererem furar mais poços. Ainda que seja um investimento relevante, ele pode valer a pena ao longo do tempo porque esse usuário só vai pagar a taxa de esgoto”, destaca.
Atores econômicos estão fora do racionamento
Para Rodrigo Manzione, um dos integrantes da Unesp que colaboram com o projeto Sacre, o consumo particular da água é cada vez mais relevante, uma vez que há um intenso desenvolvimento de alguns setores da atividade econômica na região, mas eles nem sempre participam dos esforços de racionamento. “Quais usuários participam do rodízio pode variar bastante. Se uma grande indústria tem o seu próprio poço, o que é muito provável, ela não entra no rodízio. Então a população acaba sofrendo mais do que quem pode pagar por uma fonte alternativa. O mesmo vale para quem tem um poço dentro de casa”, explica.
A chuva que caiu na maior parte do interior de São Paulo no final de outubro aliviou a pressão sobre os recursos hídricos da região. Em Bauru, as autoridades já falam em encerrar o rodízio no abastecimento se a expectativa de precipitação se concretizar. Manzione entende que, no médio e longo prazo, a perspectiva de redução nos padrões de chuva e aumento das temperaturas médias exigirão uma gestão cada vez mais integrada dos recursos hídricos. “Provavelmente seremos cada vez mais dependentes das águas subterrâneas. E isso vai exigir um melhor planejamento do uso dessas águas”, alerta o pesquisador.
Imagem acima: nível d´água baixo em lagoa de captação do rio Batalha, em Bauru. Crédito: DAE Bauru.