O Gajo: da agressividade do punk à descoberta dos segredos da viola campaniça

Depois de iniciar sua carreira como guitarrista em grupos de rock pesado, músico adotou instrumento tradicional e mergulhou em uma viagem ao passado, capturando sons que evocam um Portugal de antes que Portugal existisse.

O português João Morais, o nome por trás do projeto musical denominado O Gajo, está entre aqueles raros músicos capazes de conceber um trabalho artístico original. Inspirado na sua descoberta da viola campaniça, ensejou uma obra que combina elementos do trovadorismo, da música tradicional portuguesa e da World Music.

João Morais nasceu em Lisboa, em uma família sem raízes musicais. “Em casa não havia músicos. Por isso, minha relação com a arte e com a música iniciou mais tarde. Tive que me relacionar com pessoas fora do círculo familiar para poder entrar em contato com a música. Aos 15 anos entrei para a Escola Artística de Lisboa. Aí a música começou a fazer todo o sentido na minha vida, foi como se ela estivesse à minha espera e eu estivesse à espera dela”, relembra.

Ao longo de seus anos de estrada como músico profissional, atuou como guitarrista de grupos portugueses do estilo punk rock, que tinham como referência bandas como Dead Kennedys, The Clash, Xutos e Pontapés e outras ainda mais pesadas. “Creio que essas bandas sejam bem importantes na difusão do punk em diferentes pontos do mundo. Mas eu gostava de sons ainda mais pesados. Porém, é um circuito muito limitado. Dificilmente você consegue sobreviver de música tocando esse gênero, em determinadas regiões.”  

A maturidade trouxe a necessidade de se aproximar da cultura portuguesa, por meio de uma sonoridade distinta. O projeto O Gajo nasceu em 2016, com a proposta de interligar sua música às raízes portuguesas, mas sem resvalar em rótulos específicos. A inspiração para o projeto veio da descoberta da viola campaniça, um instrumento de raiz tradicional da região do Alentejo (Sudeste de Portugal) e que faz parte da milenar história cultural do país.

“Quando virei a chave para executar um estilo musical diferente, a maior dificuldade não foi tanto na transição do instrumento. Até porque nunca tive formação musical tradicional, portanto minha técnica sempre foi muito adaptada às coisas que eu fazia. Eu tocava rock, sabia os acordes e andava ali com a distorção de um lado para o outro. Passei dessa ‘barulheira’ toda para um instrumento acústico que tento processar o menos possível. Queria que o som fosse o de fusão da viola, e não de uma quantidade de pedais”, diz.

Foi preciso superar as dificuldades intrínsecas na execução de um instrumento acústico, sensível por natureza. “Quando executamos um instrumento com limpeza acústica, isso mexe com o nosso corpo. Cada pequeno toque, cada ruído influencia no que estamos apresentando, até mesmo a respiração”, relata. “Honestamente, acho que só a partir do ano passado é que sinto que estou a conseguir dominar o instrumento, e que não é o instrumento que me está a dominar em palco.”

A viola campaniça

A viola campaniça é um instrumento típico da região de Alentejo. Sabe-se que era tocada antigamente para acompanhar o canto em bailes, folias e rodas. Seu comprimento varia entre 93 cm  e 110 cm, e é tocada por um dedilhado feito apenas com o polegar. Possui 12 tarraxas, o que sugere que, no passado, poderia ter sido tocada com 12 cordas. Hoje, porém, são usadas apenas 10, sendo cinco cordas duplas.

“Eu me apaixonei pela viola campaniça de cara. Quando toquei o instrumento pela primeira vez, me transportei no tempo e na história. Portugal e a Península Ibérica têm essa história, tivemos aqui essa herança islâmica. Este país está cheio de referências. Temos, por exemplo, o Algarve, em que isso está muito presente em algumas arquiteturas. Eu acho que na música isso também acontece.”  

O Gajo não tem formação musical e sequer conhecia as escalas usadas na música árabe. A música que começou a conceber a partir do contato com o instrumento é o resultado de uma exploração intuitiva. “Eu não fiz isso intencionalmente, ‘ah, vou fazer uma escala desse estilo’. Meu som é intuitivo. Trata-se de uma viagem curiosa para a qual o instrumento me transporta, para um Portugal antes de ser Portugal.”

A descoberta do Brasil

O Gajo lançou em 2017 Longe do Chão, seu álbum de estreia. Dois anos mais tarde saíram quatro EPs:  Rossio, Santa Apolónia, Cais do Sodré e Alcântara Terra. Juntos, formam o álbum As 4 Estações d’O Gajo. Em 2021 saiu Subterrâneos. O álbum conta com a participação de dois conceituados músicos da cena artística portuguesa, Carlos Barretto (contrabaixo) e José Salgueiro (percussão). Em 2023 foi lançado o álbum Não Lugar, trabalho em que explorou o cruzamento da viola campaniça com diversos instrumentos.

Em sua carreira, ele levou o projeto O Gajo para reputados festivais europeus, como o Eurosonic, na Holanda, o Reeperbahn, na Alemanha e o MUMI, na Espanha. Em 2023 atravessou o oceano para fazer uma tour em território brasileiro, que incluiu uma participação no Festival MATE.

“O circuito de shows em Portugal é limitado. Eu até consigo transitar de uma região para outra, tenho meus espaços para apresentações, mas aqui não é igual ao Brasil que tem uma série de lugares, as pessoas buscam espetáculos, querem conhecer o som do artista. Inclusive, na minha última vinda, me apresentei em capitais, cidades do interior etc. Aqui a gente fica preso a um determinado circuito e também depende de festivais. Nesse caso surge um outro desafio: fazer um show acústico ao lado de bandas completas e plateias maiores. É complicado. Por isso que para o meu próximo álbum já estou pensando em inserir contrabaixo e bateria, dentre outros instrumentos, justamente para poder participar ainda mais desses eventos.”

Parceria com a viola caipira

Esta busca por sonoridades e parcerias originou também uma colaboração com o brasileiro Ricardo Vignini, com quem criou o projeto Terra Livre. O duo nasce do encontro da viola caipira com a viola campaniça.

“A Internet possibilitou esse encontro. Foi durante o período de pandemia. Eu recebi uma mensagem descomprometida do Ricardo a dizer que o trabalho dele se identificava com o meu. Posteriormente, fui pesquisar o trabalho dele e gostei muito. O som que ele faz com a viola caipira é sensacional e percebemos que, de fato, tínhamos muito em comum. Incluindo a relação com o rock no passado e a virada para uma viola mais tradicional”, conta.

 “Nessa época, estava compondo e pensando em criar algo usando instrumentos de diferentes lugares, como Guiné, Índia, Turquia. Quando descobri o ótimo trabalho de viola que ele fazia, pronto; pesquei o Ricardo e o convidei para participar desse primeiro disco. Mandei umas ideias, e ele retornou com materiais que me surpreenderam e encaixaram com perfeição. A partir daí começamos a trocar ideias e quando vimos já tínhamos músicas suficientes para gravar um álbum e surgiu Terra Livre.”

Em outubro passado, O Gajo recebeu o prêmio “Inatel Award” conferido durante o Festival  Iberian Festival Awards, em Portugal.

Confira no link abaixo a entrevista completa ao Podcast MPB Unesp.