Podcast Prato do Dia celebra centenário do Manifesto Surrealista

Pesquisadora em literatura e docente da Unesp, Flavia Falleiros explora as origens do movimento surrealista na Europa e seus desdobramentos nas várias artes, e apresenta os criadores brasileiros que mantém a escola viva em nosso país.

No início do século 20, as grandes potências da Europa passaram por uma onda de grandes transformações nas mais diversas áreas da vida social, e num intervalo de tempo relativamente curto. O avanço tecnológico que se verificou a partir do final do século 19, que trouxe para o cotidiano das nações inovações como o motor a diesel, o avião e o cinematógrafo, se refletiu na elevadíssima letalidade da Primeira Guerra Mundial, que entre 1914 e 1918 deixou milhões de corpos estendidos pela continente. A guerra teve um impacto cataclísmico, enterrando de vez o espírito otimista que caracterizava as grandes potências europeias no fim do século 19 e confundindo a bússola moral desses países. Medo, desilusão e insegurança com o futuro da sociedade eram pensamentos comuns entre os europeus  da época.

Influenciado por sua experiência na guerra, por sua busca pessoal como artista e por este cenário mais amplo de incertezas, o escritor francês André Breton publicou, em outubro de 1924, um texto condensando suas ideias e a de seus colegas apresentando a arte adequada para aqueles tempos perturbados. Intitulado Manifesto Surrealista e com mais de 20 páginas, o texto consolidou as bases do que viria a ser o movimento artístico que se destacou por questionar a fundo as normas da racionalidade lançar as bases para um novo tipo de civilização.

Para celebrar o centenário desse texto e rememorar sua importância, o Prato do Dia conversou com Flavia Falleiros, professora do Departamento de Estudos da Linguagem do campus da Unesp de São José do Rio Preto, e estudiosa do Surrealismo.

“O primeiro impulso do movimento foi marcado pela profunda revolta de uma geração de jovens cujo passaporte para a vida adulta foi a terrível experiência da Primeira Guerra Mundial”, conta a docente. As cenas de  brutalidade e desumanização deflagraram uma crise moral entre artistas e intelectuais, que testemunharam como, diante da violência da guerra moderna, valores como honra, lealdade e humanidade desaparecem. E foram motivo também para questionar outros fundamentos da modernidade, como a razão e a lógica, diante da constatação de que diálogos diplomáticos e acordos não puderam evitar a maior carnificina que a humanidade  vira até então.

No campo das artes, outras formas de protesto contra os valores da sociedade burguesa haviam eclodido a partir da guerra. Foi o caso do Dadaísmo, surgido em 1916, que defendia a ausência de sentido na produção artística e a criação da arte espontânea. Essa vertente foi uma das mais influentes para a criação do surrealismo, tanto que Breton e outros precursores surrealistas participaram de grupos dadaístas. No entanto, o que diferencia as vertentes é que enquanto o dadaísmo prega a ausência absoluta de sentido, o surrealismo quer explorar aspectos menos comuns na arte naquele momento, como o subconsciente e os sonhos. A pesquisadora em literatura ressalta que havia aí uma influencia do trabalho da Freud, que afirmava a existência de vontades e desejos reprimidos no inconsciente de cada um. Inspirando-se nestes e em outros elementos, Breton escreve o texto do Manifesto Surrealista e inicia oficialmente ao movimento de vanguarda.  

 A lógica confusa dos sonhos vai dominar a produção da arte surrealista, principalmente na pintura e no cinema. Os artistas buscam caminhos para criar uma nova realidade, enquanto contestavam as normas estabelecidas pela civilização, e buscavam estimular o público a se rebelar contra a moral burguesa. “O pensamento utópico – a busca da Utopia – é algo fundamental na postura surrealista desde o seu início”, diz Falleiros.

Na literatura se destacam técnicas como a escrita automática, que obedece o fluxo de pensamento ao invés da ordem lógica da escrita, e a justaposição de ideias, para remeter aos sonhos. A pintura, que se tornou a forma mais reconhecida do surrealismo, usa de elementos oníricos, fantasiosos e irreais para compor seus cenários. Cinema, teatro e fotografia se utilizam da narrativa não linear, manipulação de imagens e utilização da lógica dos sonhos.

 Além do escritor Breton, outros nomes ligados ao início do movimento se tornariam célebres. Na poesia se destacaram o alemão Max Ernst e o francês Paul Éluard. Na pintura surgiriam alguns dos colaboradores mais famosos, como Salvador Dalí e René Magritte. Na fotografia as referências maiores são Giorgio de Chirico e Man Ray. Apesar da morte de seus maiores expoentes, o movimento surrealista segue ativo ainda nos dias de hoje, embora tenha perdido visibilidade. “O surrealismo sempre está em transformação, em busca de caminhos para mudar a vida humana, o que se dá tanto pelas discussões internas, que sempre o caracterizaram, quanto pelos problemas e polêmicas que se apresentam no aqui e agora em que nós vivemos”, afirma a docente.

Para ouvir a íntegra da entrevista com Flávia Falleiros, acesse o episódio completo do Prato do Dia, na plataforma Podcast Unesp, no player abaixo ou no seu aplicativo de podcasts preferido, como Spotify, Apple Podcasts e Deezer.