O ciclo vicioso que tende a levar à extinção de uma espécie, e da biodiversidade de uma forma geral, é bem conhecido pelos cientistas e, quase sempre, envolve a ação antrópica. O primeiro grande problema é a destruição do próprio hábitat, porque rompe todos os elos da cadeia ecológica em que o animal está inserido. Sem casa, sem comida e sem condições ideais para acasalar com membros de populações diferentes, os grupos, cada vez menores, se tornam endogâmicos. Devido à baixa variabilidade genética, ocasionada pelo cruzamento entre animais aparentados, o grupo passa a apresentar as mesmas vulnerabilidades a certos agentes patológicos – um microrganismo, por exemplo – e isso abre o flanco para que a ação de doenças possa resultar na perda de toda a população.
Para reverter o processo de destruição ambiental, os cientistas costumam agir em duas grandes frentes, apostando tanto em ações de regeneração e preservação do meio ambiente quanto em projetos que ajudem as espécies ameaçadas a não sumir em definitivo.
Entre as estratégias adotadas com este segundo objetivo está a retirada, do ambiente natural, de indivíduos pertencentes a espécies consideradas ameaçadas ou de interesse. Estes indivíduos podem ser abrigados em centros especiais, onde é possível que pesquisadores especializados interfiram em diversos aspectos ligados à reprodução, realizando o que é denominado como manejo reprodutivo. Um destes centros é o Núcleo de Pesquisa e Conservação de Cervídeos (Nupecce), que desde 1994 funciona no campus da Unesp em Jaboticabal.
Nesses centros, veterinários com treinamento especializado podem desenvolver recursos como os bancos de germoplasma, que funcionam como uma grande biblioteca de células reprodutivas. Esses bancos são importantes para a preservação da diversidade genética de uma dada espécie. Porém, para que todo esse mosaico de possibilidades genéticas, que está estocado nos bancos de germoplasma, possa efetivamente se mostrar na natureza, os veterinários precisam recorrer muitas vezes a procedimentos como o da inseminação artificial.
O mais recente avanço científico do grupo de Jaboticabal, publicado em artigo na revista científica Scientific Reports, é o desenvolvimento de um método inovador de inseminação artificial que centros de conservação de cervídeos poderão aplicar com maior facilidade, em comparação a outras biotécnicas reprodutivas mais avançadas, e alcançar um impacto favorável na conservação de espécies de veados. Os resultados obtidos pelo grupo registraram uma eficiência alta.
Dificuldades no manejo reprodutivo
Para animais em risco ou ameaçados de extinção, uma forma de garantir a existência dessas populações é aumentar as taxas reprodutivas dos animais por meio de biotecnologias reprodutivas. No entanto, a aplicação dessas biotécnicas em espécies selvagens ainda é mínima. Isso acontece, principalmente, devido à falta de conhecimento básico da biologia reprodutiva da maioria dos grupos.
Mesmo entre os indivíduos que vivem no ambiente natural, observa-se a ocorrência de um alto grau de anormalidades estruturais no esperma. Estas anormalidades são geradas pelo aumento da endogamia (e a consequente perda de variabilidade genética) que se segue ao declínio populacional, que tem como causas tanto as mudanças ambientais como intervenções humanas.
A mesma tendência de anomalias estruturais também é observada em animais que vivem em cativeiro. Neste caso, os danos se devem ao estresse por viverem em espaços reduzidos, às mudanças de ambiente e à convivência constante com outros indivíduos, algo a que muitas vezes não estão acostumados num ambiente natural.
Mais eficiente e menos invasiva
O líder do estudo é José Maurício Barbanti, que é professor do Departamento de Zootecnia da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, e coordenador do Nupecce. Barbanti conduz estudos nesse campo há 30 anos, e explica que a nova pesquisa apresenta um método que é menos invasivo e mais eficiente do que os demais atualmente disponíveis.
“Testamos esta metodologia em cerca de 20 animais e obtivemos uma porcentagem de,aproximadamente, 50% de eficácia, o que é excelente. Só para dar uma ideia, o índice de eficiência que tínhamos até agora em técnicas de laparoscopia era de cerca de 30%”, diz Barbanti. Isso representa um ganho de quase 70% na taxa de sucesso. E há outras vantagens. “Com esta nova metodologia não precisamos fazer uma cirurgia para entrar na cavidade do animal. Tudo é feito via vaginal. Ou seja, são usados menos procedimentos invasivos que podem machucar o animal.”
A pesquisa foi realizada no âmbito do Programa de Pós-graduação em Ciência Animal da FCAV. “Dentre as espécies de cervos e veados, há populações bastante sensíveis e que apresentam problemas importantes de conservação. Por isso, as técnicas de reprodução são extremamente importantes para conectarmos material genético entre populações, tanto as mantidas em cativeiro como as que estão livres no ambiente”, explica Barbanti.
Embora a eficácia da técnica de inseminação artificial intrauterina por videolaparoscopia, a mais usada atualmente, seja satisfatória em espécies de veados, trata-se de um procedimento cirúrgico um pouco invasivo, e que pode causar sequelas reprodutivas, como aderências. Já a inseminação artificial através do colo do útero, investigada no novo estudo, mostrou-se mais segura e, portanto, mais aplicável para a garantia do bem-estar animal.
Anatomia traz dificuldades
Ainda assim, permanecem obstáculos importantes ao uso da técnica, e que tiveram que ser contornados pela nova pesquisa. Um deles é a anatomia do colo do útero dos veados. Eles, assim como as ovelhas, possuem um canal cervical tortuoso e com dimensões reduzidas. Nas ovelhas, o canal cervical é considerado o principal obstáculo para a realização de inseminações artificiais através do colo do útero.
A forma de sedação e o desenvolvimento de instrumentos específicos para o novo tipo de inseminação também foram passos dados com sucesso pela equipe de pesquisa. Assim como o protocolo de imobilização do animal durante o procedimento, exatamente por causa da anatomia vaginal da espécie. Os cientistas da Unesp, na prática, adaptaram técnicas de inseminação já utilizadas em caprinos e ovinos.
Os estudos foram conduzidos por veterinários da Unesp e da Embrapa, e envolveram 20 veados-catingueiros. Trata-se de uma espécie considerada pouco vulnerável, e sua seleção atendeu às exigências dos protocolos de pesquisa. Agora que a técnica foi adaptada para este tipo de modelo experimental, os cientistas iniciaram estudos a fim de empregá-la em espécies que apresentam um risco maior de extinção, segundo a classificação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN na sigla em inglês).
O veado-catingueiro é uma das espécies mais disseminadas pela América do Sul, e apresenta uma população significativa, tanto na natureza quanto em cativeiro. “Em setembro, iremos ao Uruguai para empregar esta técnica em fêmeas de veado-campeiro, uma espécie bastante ameaçada de extinção. Para isso, vamos melhorar também ainda mais a técnica, em etapas como a sincronização da ovulação, tudo para melhorar ainda mais a questão da invasão, que é parte do nosso protocolo. A inseminação continuará sendo via colo do útero, mas vamos fazer algumas modificações para melhorar ainda mais o processo”, explica Barbanti. Segundo o pesquisador, outro ponto importante é o desenvolvimento de medicamentos orais, para a administração dos hormônios, o que deixa todo o processo ainda mais confortável.
Núcleo abriga material genético de mais de mil indivíduos
Segundo o Guia Ilustrado de Cervídeos, uma publicação oficial do Nupecce, as 55 espécies de veados espalhadas pelo mundo, do ponto de vista taxonômico, estão todas englobadas na família Cervidae. São todos mamíferos ungulados com chifres verdadeiros – estruturas ósseas expostas na parte superior do crânio dos machos (com exceção da rena, em que ambos os sexos os possuem, e o veado-d’água-chinês, em que nenhum dos sexos os possuem – ambas espécies que não existem no Brasil).
Motivo de confusão, os chifres dos veados são estruturas diferentes dos cornos observados nos bovinos e seus parentes, segundo os veterinários. Enquanto os cornos são estruturas de base óssea, mas com uma capa córnea protuberante e permanente, os chifres são constituídos apenas de um prolongamento do osso frontal e possuem ciclos de troca. Os cervídeos pertencem à ordem Cetartiodactyla que também abrange as famílias de antilocapra, bovídeos, mosquídeos, porcos, taiassuídeos, camelos, trágulos, girafas, hipopótamos e, de maneira interessante, a subordem cetacea, onde se encontram as baleias e os golfinhos.
De maneira geral, os cervídeos são herbívoros ruminantes que habitam uma grande variedade de habitats por todo o globo, exceto no continente antártico. Em muitos lugares, os cervídeos foram introduzidos por populações humanas com a finalidade de alimentação e caça esportiva. Destacam-se na cultura popular pelas renas que puxam o trenó do Papai Noel e pelo personagem Bambi, dos filmes da Disney.
No Brasil, a família Cervidae é representada por nove espécies: Odocoileus virginianus (veado-galheiro), Blastocerus dichotomus (cervo-do-pantanal), Ozotoceros bezoarticus (veado-campeiro), Mazama americana (veado-mateiro), Mazama jucunda (veado-mateiro-pequeno), Mazama nana (veado-mão-curta), Mazama gouazoubira (veado-catingueiro) e Mazama nemorivaga (veado-roxo). “O cervo-do-pantanal, o campeiro e o mateiro são as três espécies que nos geram mais preocupações. Estamos trabalhando principalmente para adaptar nossas técnicas para a conservação em cativeiro desses grupos”, explica Barbanti.
Ainda segundo o Guia Ilustrado dos Cervídeos Brasileiros, as três primeiras espécies, que apresentam chifres ramificados e são de grande porte, habitam campos, várzeas e cerrados mais abertos e têm hábitos diurnos. As espécies do gênero Mazama, entretanto, são menores e vivem mais perto da floresta, em cerrados fechados, sendo predominantemente noturnas. Pelo fato de serem quase sempre predadas por outros mamíferos, as espécies de cervídeos no Brasil possuem o comportamento de evitar a aproximação e, ao perceberem a aproximação de qualquer outro animal, inclusive os seres humanos, fogem, até por causa, também, da aguçada audição e olfato. Tudo isso dificulta o estudo desses animais. Métodos indiretos, que se desenvolveram bastante nas últimas décadas, como armadilhas fotográficas, vêm ajudando na avaliação das espécies.
Em relação ao status de vulnerabilidade das espécies brasileiras, dentro da classificação da IUCN (União Internacional para a Conservação da Natureza), existem três em estado mais crítico. Principalmente, por causa da distribuição geográfica dos grupos. O Cervo-do-Pantanal é o maior cervídeo da América do Sul, pesando entre 80kg e 150 kg, e com a altura do dorso variando entre 110cm e 130 cm. Os chifres dos machos adultos podem possuir de 4 até 10 pontas. Por viver em áreas abertas, perto dos grandes rios, são presas fáceis. Além do próprio bioma em que vivem estar em constante ameaça, principalmente pelos severos incêndios dos últimos anos.
Os grupos dos veados-mateiro-pequenos e dos veados-mão-curta vivem na floresta atlântica, outro bioma com sérias pressões antrópicas. As duas espécies têm hábitos noturnos e, apesar do nome, os veados-mateiro-pequeno são considerados os maiores mamíferos endêmicos da Mata Atlântica, podendo chegar aos 25 quilos e uma altura de dorso entre 52 e 62 cm.
Hoje,o Nupecce abriga material genético congelado de mais de 1000 animais, coletados de sete espécies de cervos. “Um dia, vamos dominar por completo essa técnica de transformar essas células e gerar animais que, daqui a uns 50 anos, poderão salvar populações inteiras que estão sob ameaça ”, diz Barbanti.
Image acima: cervo tratado pelos veterinários do Nupecce. Crédito das imagens: José Maurício Barbanti.