Em 2017, o furacão Maria, um ciclone de categoria 5, deixou um rastro de devastação na ilha Dominica, onde passou com ventos de 260 km/h. Além do impacto humano, o evento gerou diversas consequências ambientais na pequena ilha caribenha, entre elas a perda de 75% da população do beija-flor caribe-de-garganta-púrpura (Eulampis jugularis), um importante polinizador da região.
A maioria das plantas com flores depende de animais para a polinização, isso é ainda mais marcante em regiões tropicais, nas quais mais de 90% de todas as espécies contam com essa dependência. No caso de ilhas, por estarem isoladas do continente e, muitas vezes contarem com uma diversidade limitada de espécies de animais e plantas, a fauna e a flora costumam ter um comportamento conhecido como generalista, que ocorre quando as espécies se adaptam a uma variedade de recursos e condições, em vez de depender de um tipo específico de alimento, ou de polinizador, por exemplo. Esse não é o caso do E. jugularis, que é o principal polinizador de duas espécies de flores de helicônia, endêmicas da ilha caribenha de Dominica.
O beija-flor caribe-de-garganta-púrpura e as exuberantes flores vermelhas e amarelas de helicônia evoluíram a partir de uma relação super-específica, ao ponto de que o pássaro era considerado o polinizador exclusivo desse tipo de flor. O formato acentuadamente curvo do bico das fêmeas é ideal para depositar o pólen nas flores de maneira perfeita: sem alterar sua forma ou machucar a planta. Além disso, ao longo dos anos não eram observadas outras espécies de pássaros próximos das helicônias, provavelmente porque pássaros mais generalistas, com bicos retos e mais curtos, teriam problemas para polinizar, ou mesmo se alimentar, uma vez que os estigmas, onde o pólen deve ser depositado, ficam reclusos entre as folhas da planta.
Por isso, ecólogos e ambientalistas observaram com preocupação quando a passagem do furacão Maria pela ilha Dominica dizimou três quartos da população desse beija-flor tão importante para a reprodução das helicônias. “Nós imaginamos que, com a perda do polinizador, a planta também iria se extinguir, porque é uma especificidade tão grande que ninguém seria capaz de repor essa função”, afirma Fernando Gonçalves, pesquisador da Universidade de Copenhagen.
Para surpresa da equipe de pesquisadores da qual Gonçalves fazia parte, não foi isso que aconteceu. A redução do número de indivíduos do E. jugularis, abriu espaço para que as helicônias passassem a ser polinizadas por outras espécies de pássaros, que, se não realizam o trabalho com a mesma desenvoltura dos beija-flores caribe-de-garganta-púrpura, ainda assim conseguem manter a sobrevivência da planta. Esse achado foi apresentado no artigo Hurricane-induced pollinator shifts in a tightly coadapted plant–hummingbird mutualism, publicado na revista científica New Phytologist.
Novos polinizadores em cena
A pesquisa teve início em 2021, quatro anos após a passagem do furacão Maria, quando um grupo internacional de pesquisadores que acompanhava a interação entre as duas espécies, se questionou de que maneira a redução na população de E. jugularis afetaria as helicônias. Na época, Gonçalves estava realizando seu pós-doutorado no Instituto de Biociências da Unesp, campus Rio Claro, sob orientação do professor Mauro Galetti e ambos os pesquisadores passaram a integrar o projeto. Os pesquisadores, que também integram o Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças do Clima (CBioClima), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado no campus de Rio Claro da Unesp, foram então para o Caribe, na ilha Dominica, observar de perto essa interação.
De início o grupo percebeu que mais pássaros estavam visitando as helicônias, mas isso não significava que as flores estavam sendo polinizadas. “Esses beija-flores são bem agressivos e territorialistas, então quando o número caiu, isso abriu espaço para que outros pássaros generalistas começassem a visitar as helicônias”, explica Gonçalves, “até então, nós acreditávamos que eles só visitavam a flor, bebiam o néctar, mas não necessariamente faziam a polinização”.
Para a pesquisa, o grupo identificou quais novos pássaros estavam visitando as helicônias e, por fim, se eles eram capazes de polinizar as flores. Para isso, foi necessário combinar três técnicas diferentes. A primeira, foram câmeras posicionadas em frente às flores, programadas para fazer fotografias caso captassem algum movimento, isso permitiu que o grupo soubesse quais pássaros faziam a visita. Em seguida, o grupo retirava o estigma da flor para verificar se havia sido depositado algum pólen ali. Além disso, a equipe também capturou alguns visitantes alados, utilizando “redes de neblina”, redes feitas de um tecido fino, que permitem capturar os pássaros sem machucá-los. Com os pássaros em mãos, o grupo passava um pequeno pedaço de gelatina nos bicos e penas para capturar qualquer pólen que estivesse sendo transportado.
“Isso nos permitiu confirmar se os pássaros carregavam pólen e se o pólen estava sendo depositado nas flores”, afirma Gonçalves. Entretanto, também foi necessário identificar qual pólen estava sendo depositado, uma vez que a polinização só ocorre caso seja transportado material de outras helicônias. Para isso, foi necessário recorrer a análises de microscópio do pólen presente nos estigmas e coletado nas gelatinas. “As partículas de pólen de cada espécie tem características próprias, como se fosse uma assinatura. A olho nu não é possível enxergar isso, mas olhando no microscópio vemos uma diferença grande na morfologia do pólen”, afirma Gonçalves. Ao observar essas características, é possível comparar com imagens presentes em atlas e livros de consulta para identificar a qual espécie o pólen coletado pertence.
Revisitando a ideia de coadaptação
O grupo coletou material por mais de três meses e, ao final, conseguiu identificar que, contra todas as expectativas, espécies de pássaros generalistas não apenas passaram a visitar as helicônias, como também depositavam pólen no estigma e possivelmente atuam como polinizadores dessas plantas. Uma espécie em particular se destacou: o pequeno Cambacica (Coereba flaveola). Isso chamou a atenção dos pesquisadores que, baseados em bibliografias anteriores que sugerem uma relação super específica entre helicônias e o beija-flor caribe-de-garganta-púrpura, consideravam que as helicônias da ilha Dominica estavam fadadas à extinção caso a população do beija flor diminuísse drasticamente.
“O que nos surpreendeu foi ver que a planta consegue ter uma plasticidade para que outros polinizadores façam essa função. Então esse ‘dead-end’, como nós falamos, de que a planta vai morrer se os polinizadores específicos forem extintos, não é bem assim, elas conseguem ter uma formação mais generalista do que o imaginado”, relata Gonçalves. Além disso, apesar dos novos visitantes, as fêmeas dos beija-flores caribe-de-garganta-púrpura continuam sendo uma das principais polinizadoras.
O achado levanta suposições sobre o fato de que coadaptação e relações específicas, como é o caso das helicônias e do E. jugularis, são mais complexas do que se imaginava e, periodicamente, podem ser perturbadas por eventos climáticos e geológicos como furacões, terremotos, erupções vulcânicas, tsunamis, etc. Nesses casos, é possível que espécies generalistas, como o cambacica, sejam vitais para a resiliência de determinadas plantas, mantendo sua polinização até o momento em que as populações de polinizadores específicos voltem a aumentar.
A complexidade dessas interações e da resiliência da fauna e flora de locais isolados , como é o caso de ilhas oceânicas, ganha novos contornos em um contexto no qual se tem registrado uma frequência cada vez maior de fenômenos climáticos. A Agência Meteorológica dos EUA, anunciou que, neste ano, o Atlântico pode enfrentar até sete furacões, de categoria três ou superior. Isso se deve tanto à transição de La Niña, prevista para o final do ano, como pelo aumento da temperatura do nível do mar. “Quando esses distúrbios ocorrem de maneira frequente, pode ser que as populações não consigam se recompor, levando essas espécies à extinção porque elas são endêmicas de uma ou duas ilhas e não existem no continente”, afirma Gonçalves.
Com isso em mente, um dos objetivos do grupo é estabelecer um estudo de longo prazo na ilha Dominica, com duração entre 5 e 10 anos, para que a equipe possa observar de que maneira a população de beija-flores caribe-de-garganta-púrpura é afetada e se comporta quando afetada por fenômenos climáticos. “As ilhas que estudamos são muito vulneráveis a fenômenos naturais, então não vamos observar apenas furacões, mas também erupções vulcânicas, terremotos e mesmo pequenos tsunamis”, conta Gonçalves.
Imagem acima: Registo da flor de helicônia sendo visitada por um beija-flor caribe-de-garganta-púrpura (E. jugularis) (Crédito: Ethan Temeles/Amherst College-EUA)