Até o século 20, o papel reservado ao Brasil na arena do comércio internacional de alimentos era limitado, e se vinculava a alguns poucos produtos, como cana-de-açúcar e café. O grosso da produção de gêneros alimentícios que abastecia o mercado global vinha de países que possuíam clima temperado, como a Argentina, os EUA e algumas nações da Europa. Este quadro, porém, não podia se sustentar diante do crescimento populacional que ocorreu a partir da década de 1920, e ganhou velocidade após a Segunda Guerra Mundial. O risco de insegurança alimentar a partir da década de 1960 era real. A resposta veio na forma de um pacote de tecnologias agronômicas, que ficou conhecido como Revolução Verde. As novas tecnologias abriram as portas para que a atividade agrícola se expandisse também para as regiões tropicais do planeta, que, naquele período, eram consideradas áreas improdutivas e pobres em nutrientes.
O Brasil talvez seja o país do mundo onde esta virada aconteceu de forma mais intensa. Nos últimos 50 anos, nos tornamos um dos principais fornecedores do mercado internacional, líderes na exportação de commodities como açúcar, laranja e soja, e desfrutando dos resultados econômicos advindos desse comércio. Isso só foi possível graças ao salto que nosso país deu no campo do conhecimento, com o desenvolvimento de ciência e tecnologia especialmente voltados para os solos e o clima da região tropical.
Esta vitoriosa jornada científica, bem como os problemas ambientais que ela ensejou, são o tema do mais recente episódio do podcast Prato do Dia. O entrevistado desta edição é o agrônomo e professor sênior da Unesp no campus de Jaboticabal, José Marques Júnior. Especialista na área da ciência de solos, Marques Júnior ressalta o impacto que a tecnologia exerceu sobre o Brasil. “Nós conseguimos, em pouco tempo, passar de importadores para uma das maiores potências na exportação de alimentos do planeta. E isso em um ambiente que, inicialmente, não era tão favorável ao desenvolvimento de plantas importantes para a alimentação humana”, diz.
Um dos principais problemas que limitaram a agricultura brasileira por séculos foi a importação de métodos de manejo de culturas e cuidados do solo que eram eficientes para climas temperados, em detrimento de práticas agrícolas adaptadas às particularidades de biomas nativos. Marques, que coordena um grupo de pesquisa para caracterização de solo para fins de manejo específico, diz que o reconhecimento do potencial agrícola do Cerrado foi um passo crucial para que o setor agrícola brasileiro pudesse passar por esta transformação. “Não se pensa em fazer agricultura intensiva em áreas muito declivosas, como era o caso do café em Minas Gerais. A agricultura capaz de produzir em maior quantidade só se estabeleceu quando entrou em áreas mais planas, onde não havia o impedimento à mecanização nem o problema severo da erosão.”
A criação da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e o desenvolvimento de outras instituições brasileiras especializadas na pesquisa agrícola, a partir dos anos 1970, foram a chave que permitiu esse desbravamento. “Temos uma vocação agrícola desde o passado colonial, não tenho dúvida. Mas esse potencial para alta produtividade, capaz de colocar o Brasil num patamar internacional de potência do agronegócio, surgiu depois que nós entramos nessas áreas mais planas do Cerrado. Isso possibilitou acelerarmos a adaptação de culturas anuais, como soja e milho”, diz.
Devido à baixa fertilidade natural de seus solos, o Cerrado brasileiro era considerado impróprio para a agricultura intensiva, sendo frequentemente utilizada para pastagens. apresentava adversidades significativas. Amas o uso de recursos como a adição de calcário e fertilizantes, e a implementação de práticas de manejo próprias tornou-o uma pujante fronteira agrícola. Isso aconteceu, no entanto às custas de significativos impactos ambientais, na forma, por exemplo, de degradação do solo. “Então, hoje, temos um novo desafio,” comenta o especialista, “Se antes o Cerrado representou para a esfera da química de solos. Agora nós temos um desafio químico e físico, porque esses solos estão degradados, e nem sempre em áreas planas”, diz.
De acordo com o agrônomo, o objetivo da ciência agronômica até 2050 é cessar o avanço em regiões ameaçadas, como a Mata Atlântica e a Amazônia, e desenvolver tecnologias agrícolas para a restauração dessas áreas. Sendo um dos maiores fornecedores mundiais de alimentos, o Brasil tem o dever de investir em tecnologias de mitigação do desmatamento de vegetação nativa e do efeito estufa, e ainda restaurar a nutrição de solos degradados de maneira sustentável, considerando os impactos ambientais das crises climáticas e do desmatamento causado pelo setor.
A manutenção de um sistema de extrema dependência de fertilizantes químicos, como ocorreu no caso do Cerrado, perpetua um dos principais problemas do agronegócio brasileiro atual, que é depender de outros países para adquirir fósforo, potássio, e outros elementos geralmente demandados. Na entrevista, José Marques diz que há significativas iniciativas em desenvolvimento por pesquisadores brasileiros para mudar esse quadro. Elas incluem o mapeamento de nutrientes a partir das rochas e o investimento em bioinsumos, “Muitos pesquisadores estão se interessando por isso, pessoas muito capacitadas e bem informadas. E agora recebem apoio de startups brasileiras que estão liderando o caminho nos negócios, aprendendo a negociar. Sabemos que não é fácil nesse universo do agronegócio brasileiro. É um movimento que está surgindo.”
O episódio completo do podcast Prato do Dia sobre Agricultura Tropical pode ser acessado na plataforma Podcast Unesp, no player abaixo ou em seu tocador de podcast de preferência.