Paulo Galvão, 20, indígena do povo Tapuia, acostumou-se a viver, em suas próprias palavras, “no olho do furacão”. Assim descreve os múltiplos problemas que grassam nos arredores de sua Santarém natal, na região do Baixo Tapajós. “Lá acontece mineração ilegal, garimpo ilegal e desmatamento, que é muito forte, principalmente na Reserva extrativista Tapajós-Arapiuns”, diz. “Essa movimentação toda me fez ficar ligado nas pautas ambientais e na luta pela resistência indígena.” Com apenas 15 anos, começou a colaborar com a ONG Engajamundo, e desde então vem construindo sua trajetória como militante e ativista ambiental. O contato com as lideranças da ONG despertou o desejo de cursar relações internacionais na graduação. Imaginou que o curso poderia representar uma oportunidade de levar a discussão das pautas indígenas para outros campos de atuação e incentivar uma mudança na visão ocidentalizada que vigora na área. “A visão indígena tem muito a contribuir no campo das relações internacionais, porque envolve desconstruir a maneira como nos relacionamos com o mundo, com as pessoas e com os problemas”, diz o jovem ativista.
Constatou, porém, que tal curso não era oferecido pelas instituições de ensino superior de seu estado. Examinou opções por todo o país e optou por participar dos processos seletivos que o levassem ao curso de RI da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, no campus de Franca. Nem os 3 mil km de distância, nem o fato de não conhecer ninguém na nova cidade o impediram de buscar o sonho de “estudar em uma das melhores universidades do Brasil”. Hoje, cursa o terceiro ano de RI. Diz que ao chegar foi muito bem recebido por professores e colegas, mas estranhou a ausência de outros estudantes indígenas. Por isso, desde o primeiro semestre se aproximou de integrantes do Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão (Nupe). “Apesar da abertura para conviver em outros espaços, como é o caso do Nupe, ainda não existe, de fato, um coletivo indígena organizado. Me vejo muito sozinho em relação a pessoas que me entendam, e que vivam, ou tenham vivido, experiências parecidas”, diz.
Bem aos poucos, a presença indígena vai se difundindo pelos campi do Brasil. Segundo levantamento realizado pelo Semesp, entidade que representa as instituições de ensino superior do Brasil, entre 2011 e 2021, a quantidade de matrículas de alunos autodeclarados indígenas no ensino superior aumentou 374%, em comparação ao decênio anterior. A subida nos números acompanhou o Censo Demográfico realizado pelo IBGE. Em 2010, o Censo indicou aproximadamente 900 mil pessoas que se identificavam enquanto indígenas, já em 2022, o número saltou para aproximadamente um milhão e 700 mil indivíduos.
A chegada a este novo ambiente coloca os estudantes indígenas diante de desafios pessoais, econômicos e acadêmicos. Mas é principalmente sobre as autoridades públicas, e também sobre as direções das instituições universitárias, que recai a responsabilidade de conceber e operar as ferramentas institucionais e as políticas que possam inserir e apoiar os jovens ingressantes, procurando tornar suas jornadas menos árduas. É a partir das experiências que estes primeiros alunos estão vivendo que poderão surgir os aperfeiçoamentos que beneficiarão os estudantes das próximas gerações. E os desafios destes estudantes já estão sendo objeto de pesquisas por parte das próprias universidades.
Indígenas em escolas de medicina
Docente do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos, o médico Willian Fernandes Luna conduziu uma pesquisa sobre a presença indígena nas faculdades de medicina como parte de seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na Faculdade de Medicina de Botucatu, que foi orientado pela docente Eliana Goldfarb Cyrino. A pesquisa, intitulada “Indígenas na Escola Médica no Brasil: experiências e trajetórias nas universidades federais”, envolveu um levantamento dos estudantes indígenas em cursos de medicina de instituições federais. Dos 80 cursos existentes em 2019, momento em que a pesquisa foi realizada, a presença de estudantes indígenas foi identificada em 43. Foram ouvidos 40 discentes, de 25 povos distintos, com o objetivo de explorar como eles vivenciavam as relações dentro da universidade e em que ponto suas expectativas com os cursos eram correspondidas ou não.
A chegada de indígenas ao ensino superior iniciou-se há décadas, mas houve uma guinada clara a partir de 2012, quando foi instituída a lei de cotas que reserva uma porcentagem das vagas universitárias para estudantes pretos, pardos e indígenas provenientes de escolas públicas. Luna, que também atua como tutor no Programa Educação Tutorial Indígena – Ações em Saúde, diz que, embora as cotas permaneçam um mecanismo relevante, hoje o principal meio para ingresso de estudantes indígenas nas universidades passa por outras ações afirmativas, como reserva de vagas, disponibilização de vagas extras e oferta de vestibular indígena, que se revelam mais eficientes.
Essas estratégias de inclusão, específicas para estudantes indígenas, são oferecidas por poucas instituições. A Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, a Universidade Federal de São Carlos e a Universidade Estadual de Campinas são alguns exemplos. As duas últimas organizam um vestibular específico para estudantes indígenas, em que são feitas provas fora do estado. “Quando se discute a adoção de ações afirmativas, isso não implica, apenas, que uma parte das vagas deva ser destinada a essas pessoas. É uma afirmação de que se quer que os estudantes pertencentes a esses grupos estejam nas nossas instituições”, diz Luna. A implementação dessas políticas é um grande diferencial para a escolha de uma instituição por parte dos estudantes. Isso foi constatado pela pesquisa, que chegou a mapear os deslocamentos entre estados empreendidos pelos discentes entrevistados (veja abaixo).
A oferta dessas políticas se reflete em números. Atualmente, após quase quinze anos da aplicação da primeira ação afirmativa, a UFSCar conta com mais de 350 estudantes indígenas na graduação e um coletivo organizado que encaminha demandas da comunidade para a instituição. Na USP, em 2023, havia 66 alunos matriculados na graduação. Na Unesp, em 2024, são 23, espalhados por 22 cursos de graduação. Ou seja, em 21 cursos, há apenas um estudante indígena matriculado.
Ver-se como a única indígena em sua turma durante os quatro anos da graduação também foi a experiência de Enaie Hanaiti Silva, 23, que pertence à etnia Terena, MS. Ela se formou em pedagogia pela faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília. Filha de um indígena Terena que deixou a terra natal em busca de trabalho, e de uma mulher não indígena, ela nasceu e cresceu na capital paulista, mas manteve o vínculo com a aldeia da família. Durante a pandemia, mudou-se para lá e atualmente reside lá em definitivo. Sua trajetória foi contada em um dos episódios da série Caminhos: quando sonhos encontram a educação, que está disponível no canal oficial da Unesp no YouTube.
Assim como Paulo Galvão, Enaiê também orientou sua escolha profissional com base nas questões que mobilizavam seu povo. “Queria fazer algo que beneficiasse minha aldeia, por isso terminei escolhendo pedagogia”, declarou em entrevista para a série. Mas enfrentou dificuldades para encontrar, no ambiente acadêmico, espaços para explorar seus interesses pela educação indígena. “Na graduação, comecei a estudar educação rural porque foi o que mais se aproximava, mas ainda assim era um campo muito distante da educação escolar indígena”, diz. Em busca de novas possibilidades, dirigiu-se para outra cidade, e procurou o Centro de Estudos Indígenas Miguel Angel Menendes, um grupo de pesquisas que funciona na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara, coordenado pelo antropólogo Edmundo Antonio Peggion. Lá, além de ser incorporada ao grupo, recebeu uma bolsa de iniciação científica que lhe permitiu retornar à aldeia na condição de pesquisadora, e que também serviu de ponte para que ela passasse a colaborar na escola local.
Ela diz que assim que chegou procurou conhecer mais alunos indígenas na universidade. Encontrou uma pessoa, que ainda está em processo de reconstrução da própria identidade étnica. Ela diz que foi brem recebida na universidade, mas que percebeu que “para muitos colegas e professores, eu fui a primeira pessoa indígena que eles conheceram. Achei isso muito estranho”, diz. Enaiê avalia que um programa mais robusto de políticas públicas tornaria mais fácil para que um número maior de indígenas conseguisse se deslocar das aldeias para as universidades. “Mas não é assim. Ainda envolve muita luta, muita resistência e muita tristeza durante o caminho. E poderia haver uma trajetória diferente”, diz.
O desafio de se manter no curso
Paulo Galvão também já pensa em como facilitar o caminho para os que virão depois dele. “Conheço poucos indígenas que cursam Relações Internacionais. Depois de me formar, posso falar com pessoas, contar sobre o curso e, se em algum momento a Unesp tiver um vestibular indígena, incentivar para que estudem na Unesp”, diz, E destaca que a implementação de ações afirmativas relacionadas ao acesso precisa vir acompanhada de políticas que tenham como foco a permanência dos estudantes. “Não basta entrar na universidade, é preciso conseguir se manter no curso”, diz.
No quesito da recepção, os indígenas estudantes de medicina relataram vivências variadas aos pesquisadores da FMB. Se muitos se disseram bem acolhidos por colegas e docentes, de modo semelhante ao que contam Enaiê e Paulo Galvão, outros relataram episódios de xenofobia e até racismo. Mas tanto uns como outros apontaram pouco espaço para explorar temas que os interessem. “Muito rapidamente identificamos que praticamente nenhum curso de medicina incluía conteúdos sobre saúde indígena”, conta Cyrino. A docente da Faculdade de Medicina de Botucatu diz que a inclusão de conteúdos que abordam a realidade e questões indígenas colabora, também, para a formação de profissionais mais capacitados. “No caso da medicina, os estudantes até agora sempre vieram da elite da sociedade brasileira. Por isso, não raro enfrentam dificuldades para ouvir e entender a população. Então, como posso atender indígenas se eu não entro um pouco no saber, na história e na cultura deles?”, indaga.
Luna avalia que a permanência de um estudante envolve três pontos centrais a serem pensados. O primeiro ponto está relacionado à permanência material, e passa por questões como bolsa, moradia e alimentação. O segundo marco é a permanência pedagógica: a grande variedade de povos faz com que os estudantes tenham, também, uma grande diversidade de trajetórias e culturas. Isso cria a necessidade de pensar em meios para fazer com que o estudante consiga aproveitar e construir sua própria trajetória acadêmica. Tutorias e mentorias são alguns exemplos de políticas que podem ser implementadas com este fim. Por último, há a permanência simbólica, que diz respeito à importância de os estudantes se verem representados no que está sendo estudado. Paulo Galvão concorda: “garantir a permanência também passa por conseguir fazer com que toda a população universitária, não apenas a indígena, mas toda a diversidade que compõe a universidade, consiga se enxergar nos conteúdos que estão sendo administrados”, diz.
Um olhar diferenciado para a seleção
Para Edmundo Peggion, a simples implementação de ações afirmativas não basta para assegurar a inclusão da população indígena no espaço universitário. Será necessário que as instituições levem em consideração as especificidades da população no momento da elaboração dessas políticas, o que deve ser feito com a participação de representantes indígenas. “Isso ocorre, por exemplo, com a determinação legal com relação ao ensino fundamental e ensino médio nas escolas indígenas. Uma escola indígena é específica, diferenciada, intercultural e bilíngue”, afirma o pesquisador. Peggion ressalta que as universidades não precisam, necessariamente, apresentar todas essas características, mas poderiam, por exemplo, investir em vestibulares indígenas que consideram as especificidades dos participantes, por meio de memorial, de reflexão sobre a trajetória, de autodeclaração e declaração de pertencimento.
Cyrino diz que a presença de estudantes indígenas dentro do ambiente universitário traz benefícios, inclusive, para o próprio ecossistema da instituição. Estudantes, docentes, servidores e a instituição como um todo passam a se relacionar e a integrar pessoas que trazem consigo saberes, culturas e idiomas próprios. “Isso é uma superoportunidade de aprendizado, de exercitar a escuta. Eu acho um absurdo que não se aproveite a presença dos estudantes indígenas para que eles possam trazer contribuições na formação acadêmica”, afirma Cyrino.
Já Luna destaca que a diversidade no ambiente universitário permite formar profissionais melhores, atentos às demandas e especificidades de diferentes grupos. “Os profissionais estão sendo formados para lidar com uma população geral. E os indígenas estão em todos os espaços da sociedade. Então, se os estudantes não são ensinados a lidar com indígenas, termina-se por reduzir ou excluir a possibilidade de que venham a trabalhar com esses grupos depois”, diz. Segundo o Censo de 2022, mais de 86% dos municípios brasileiros tinham, pelo menos, um habitante indígena.
Peggion afirma que a presença indígena na universidade tem o potencial de provocar um deslocamento e possibilita pensar em uma universidade mais diversa. “Eu penso que os estudantes indígenas, quando chegam à universidade, já têm uma formação de base e já são intelectuais, mas a instituição ainda resiste muito para estabelecer o diálogo”, afirma. Segundo o professor, a simples entrada de estudantes indígenas não basta: é necessário que a universidade passe a dialogar abertamente com os conhecimentos e saberes trazidos por essas pessoas de maneira a construir um ambiente mais diverso.
Os pesquisadores ressaltam a necessidade de envolver pessoas indígenas na elaboração de políticas e ações, uma vez que elas são as que melhor conhecem suas demandas. Essa é, também, uma reivindicação dos estudantes indígenas e que pode ser mais bem alcançada em espaços onde ocorram suficientes conexões e representatividades, de maneira a permitir o surgimento de coletivos organizados, por exemplo.
“Uma coisa que sempre ouvimos das lideranças é que a gente sai do território para estudar e voltar para os territórios para usar os conhecimentos que a gente adquire na universidade, somados aos conhecimentos que a gente já tem, em prol das nossas lutas e das nossas demandas. E também podermos falar por nós. É necessário ter pessoas na política, nas universidades e em muitos outros espaços que carregam essa representatividade e levam de alguma forma a voz e a demanda dos povos indígenas”, diz Paulo Galvão. “A universidade só tem a ganhar com a presença indígena, e outras presenças, dentro dessa diversidade que temos no nosso país. Este é o próprio espírito da universidade”, diz Peggion.
Imagem acima: Enaiê Hanaiti. Crédito: Caminhos: quando sonhos encontram a educação