O assassinato a tiros, à luz do dia, do promotor equatoriano César Suárez, vitima de um ataque enquanto dirigia por uma rua da cidade de Guayaquil, na última quarta-feira, 17, é o mais recente evento da onda de violência que tem varrido a nação andina desde a primeira semana do ano. Ataques de membros de facções criminosas por todo o país suscitaram uma crise de segurança sem precedentes, e Suárez estava investigando um dos mais dramáticos episódios: no dia 9/1, homens armados e encapuzados invadiram um estúdio de televisão, o que resultou na transmissão, ao vivo, de ameaças aos funcionários.
A inesperada explosão de violência, que incluiu também grandes motins em presídios com tomada de reféns e diversos episódios de ataques com ônibus e carros incendiados, foi deflagrada no último dia 7/1 pela fuga de Adolfo Macías, líder da facção criminosa Los Choneros, a maior do país. Conhecido como “Fito”, o equatoriano cumpria pena de 34 anos numa prisão de alta segurança, da qual simplesmente sumiu. O presidente equatoriano, Daniel Noboa, respondeu decretando, nos dias 8 e 9, estado de exceção e estado de defesa, a fim de empregar medidas mais extremas de segurança, incluindo toque de recolher, emprego das forças armadas no apoio à luta contra a criminalidade e a classificação de 22 facções criminosas como organizações terroristas. Essas medidas foram respondidas pela eclosão dos ataques, e o clima de violência instalado resultou em ruas vazias nas grandes cidades e em pelo menos 10 mortes apenas nos primeiros dois dias da crise. Segundo o jornal El Universo, entre 9 e 15 de janeiro, foram realizadas 15.400 operações, nas quais mais de 1.500 pessoas foram presas.
Na verdade, desde 2016 a ação das facções criminosas tem crescido em escala exponencial, com reflexo nos índices de segurança do país. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes, por exemplo, passou de 5,8 em 2019 para 26,7 em 2022, crescendo quase 300%. “O que estamos vendo é uma reação tardia do governo do Equador à escalada da de violência dos últimos anos, que agora atingiu um pico”, diz Marília Carolina Barbosa de Souza Pimenta, docente do Departamento de Relações Internacionais da Unesp, campus de Franca. Em entrevista ao Jornal da Unesp, a especialista em América Latina fala sobre os contornos sociais, políticos e econômicos que levaram à deflagração da crise atual de segurança em território equatoriano, discute o papel do Estado no enfrentamento das facções e analisa a possibilidade de que o país talvez não retome sua condição anterior, mais pacífico porque menos sujeito à interferência do crime transnacional que se alimenta do tráfico de drogas. “É possível que o país tenha entrado, de forma permanente, na mira do tráfico internacional de drogas”, diz.
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Até há alguns anos o Equador era um país que apresentava índices bem menores de violência. O que deflagrou a crise atual?
Marília Pimenta: Foi uma confluência de fatores. Inclusive, existe a hipótese de que a pandemia possa ter influenciado o processo, devido à queda dos índices econômicos do país, do aumento do desemprego e, portanto, pela falta de uma estrutura social e econômica forte. Isso gerou um terreno fértil para a penetração do crime organizado. Vimos casos semelhantes no Rio de Janeiro, por exemplo, onde cresceu a atuação da milícia em determinadas regiões. Na Venezuela temos a presença destacada de grupos como o Trem de Aragua, que cresceu durante a pandemia. No Equador não foi diferente. O país estava fragilizado nos seus processos econômicos, sociais e políticos. Com isso, cria-se um terreno fértil para a operação do crime organizado.
De maneira específica, a fuga de “Fito” da prisão contribuiu para desencadear essa crise sem precedentes. Até agora, é uma fuga misteriosa. E o ápice de uma crise que, na verdade, é muito mais profunda e anterior. Os índices de violência no Equador vêm aumentando vertiginosamente nos últimos anos. Isso levou a uma pulverização das facções criminosas dentro dos presídios espalhados no país. Esse quadro está inserido em uma realidade latino-americana, na qual acompanhamos uma superlotação das penitenciárias e, por consequência, uma forte presença das facções nesses espaços com o potencial de controlar as atividades vinculadas ao tráfico de drogas no país. Isso fez o Equador entrar na mira de grupos internacionais ainda maiores, que passaram a ver o território equatoriano como um terreno propício para realizar suas operações.
Já ficou claro, ao longo desses dias, se os criminosos possuem algum objetivo ou demanda?
Marília Pimenta: A demanda que me pareceu mais clara até o momento foi de melhoria das condições do sistema penitenciário. Esse é um fenômeno de toda a região latino-americana: penitenciárias superlotadas nas quais não são observados os direitos humanos e ocorre uma série de quebras dos direitos individuais. Essa demanda de melhora do sistema prisional se torna mais clara com essa crise no Equador. Fora isso, não há grandes demandas dentro do campo político. O que está acontecendo são ações situadas fora do campo político que buscam efeitos de curto prazo, tais como suscitar temor e pânico na população. Inclusive nas forças estatais. Gera-se, então, uma instabilidade, para que se possa atuar a partir de uma nova governança. Em alguns artigos, ao lado de alguns colegas, eu discuto o conceito de governança híbrida para falar de espaços onde existe o governo do Estado, lado a lado com o governo de outros atores. E isso inclui atores ilícitos, vinculados ao crime organizado. Então, o que estamos observando, na verdade, é essa explosão de violência que antecede um reposicionamento quanto à governança de um país, um território específico. É possível que os índices [de ataques pelo crime] tendam a diminuir, e algumas das demandas do crime organizado passem a ser atendidas. Segue-se uma subsequente reorganização, a partir de novos padrões de governança.
Depois que foi empossado em novembro, o presidente do Equador Daniel Noboa adotou iniciativas diretamente inspiradas nas medidas implementadas pelo presidente Bukele, de El Salvador, que conseguiram reduzir extremamente a criminalidade e os homicídios naquele país. Esse pode ter sido mais um fator a contribuir para desencadear essa crise?
Marília Pimenta: De fato, Daniel Noboa usou algumas medidas adotadas por Bukele em El Salvador, que são um exemplo de demonstração de força do Estado. Noboa se comprometeu, por exemplo, com a construção de novas prisões. É uma demonstração de força do Estado, de tolerância zero com o crime organizado, por assim dizer.
Essa é uma resposta de curto prazo. Pode, inclusive, possuir uma conotação populista no sentido de representar exatamente aquilo que a população deseja ver: uma resposta mais concreta. Demora algum tempo para construir as prisões, isso não se faz de uma hora para outra. Até lá, aparentemente as respostas serão nessa linha: intervenções das forças armadas em espaços urbanos, em penitenciárias… Todos esses processos que acompanham um estado de exceção, incluindo toque de recolher, até que se chegue à construção dessas novas prisões.
O que me preocupa é a ausência de respostas mais estruturais e mais de longo prazo. Esses grandes números de operações e prisões respondem a um anseio mais urgente da sociedade. São respostas mais televisivas, mais imagéticas, e que, de alguma forma, demonstram a capacidade do Estado de responder a essa violência. Entretanto, há uma ausência de respostas mais estruturais. Por exemplo: reformas no sistema econômico, uma elevação sustentável nos índices de emprego, a oferta à população de alternativas econômicas, de alternativas para o desenvolvimento social e humano, o direito de ir e vir em segurança… Tudo isso cria uma sociedade mais resiliente à presença do crime organizado.
Se a sociedade não possui estabilidade econômica, baixos índices de desemprego, possibilidade de planos sólidos para o futuro, a população se torna cada vez menos resistente à presença do crime organizado. Pode ser que o resultado da ausência de uma resposta mais estrutural do governo seja que alguns grupos criminosos no Equador passem a controlar algumas regiões periféricas, ou o próprio sistema prisional. Ou seja, há a possibilidade de que esses grupos passem a fazer uma governança junto com as forças estatais. Isso é muito grave e muito ruim para uma sociedade porque gera debilidades institucionais cada vez mais profundas.
Se o presidente equatoriano demonstrou um desejo de emular alguns elementos da política do Bukele, que é de enfrentamento muito forte, esse levante de agora não pode ser uma forma de a criminalidade do Equador se posicionar no sentido de não aceitar esse regime mais duro?
Marília Pimenta: A reação do Estado equatoriano é tardia. Nos últimos anos, já houve uma explosão no aumento dos índices de violência no país, e a pulverização das facções, que hoje estão presentes no sistema prisional. Respostas tardias tendem a ser militarizadas, com um caráter de “tolerância zero” ao crime. O Estado, armado até os dentes, coloca as forças armadas na rua para fazer uma série de operações que alcançam até a população civil. Já vimos isso acontecer na própria Colômbia, no México em alguns momentos, e estamos vendo em El Salvador.
Qual será a reação do crime organizado frente a essa resposta militarizada do Estado? Em geral, se o crime organizado entender que aquele espaço oferece solo fértil para seu desenvolvimento, mesmo que haja uma resposta militarizada do Estado, ele irá conduzir ações terroristas, como incendiar carros, incendiar ônibus, fazer barricadas em alguns bairros, controlar o acesso da população a alguns lugares. Há, inclusive um histórico de assassinatos de candidatos à presidência, e isso ocorreu recentemente no Equador. Houve o assassinato de um candidato que apresentava um discurso muito forte de combate ao crime organizado. Essas ações podem se intensificar, até o estágio em que o Estado precisa parar e negociar com o crime.
Esperemos que não chegue a esse ponto, mas pode ser que o Equador seja sim um solo fértil para o crime organizado. Ele é um vizinho dos dois maiores produtores de cocaína no mundo, a Colômbia e o Peru, e uma região estratégica para o escoamento de drogas. É possível que ele tenha caído, de forma permanente, na mira do tráfico internacional de drogas. Essa é uma grande preocupação.
Imagem acima: soldado do exército equatoriano após a retomada do controle da Penitenciária de Archidona, província de Napo. Crédito: ejercito ecuatoriano.