Pesquisadores da Unesp desenvolvem modelo para monitorar lixo espacial em órbita da Terra

Oito décadas de exploração espacial deixaram um anel de centenas de milhares de fragmentos de metal, vidro, tinta e outros materiais ao redor do planeta, que representam risco de colisão para satélites e missões. O estudo identificou regiões mais sensíveis à ocorrência de impactos e pode ajudar gestores no planejamento de órbitas de futuros lançamentos. Brasil terá rede de telescópios para monitorar lixo espacial.

Em 1957, a União Soviética lançou ao espaço o Sputnik 1, o primeiro satélite a orbitar a Terra. O feito marcou o início da corrida espacial e abriu caminho para uma série de avanços tecnológicos que possibilitaram a viagem do primeiro homem à Lua em 1969 e, mais recentemente, os atuais planos de missões tripuladas a Marte e de mineração no Cinturão de asteroides.

 Segundo levantamento da Agência Espacial Europeia, ao longo dessas quase sete décadas de atividades espaciais, ocorreram mais de 6.000 lançamentos de sondas, satélites e foguetes. Uma das consequências menos favoráveis desse progresso, entretanto, são os resíduos gerados em escala descomunal: fragmentos de metal, tinta, vidro, plástico e outros materiais, com dimensões entre 1 cm e 10 cm, formam um anel de lixo espacial com cerca de 500 mil detritos. Quando se conta os fragmentos de lixo espacial com menos de 1 mm, o número total salta para mais de 100 milhões.

Entre os efeitos mais conhecidos do lixo espacial estão os episódios de reentrada desse material na Terra. Embora muitos objetos se desintegrem na atmosfera ou caiam no oceano, alguns acabam impactando o solo. Esse foi o destino do pedaço de foguete da SpaceX que, em 2022, caiu a 100 metros de uma casa em São Mateus do Sul, Paraná.

Porém, há problemas também no espaço. As órbitas desses detritos nem sempre são estáveis, e a influência gravitacional da Terra pode resultar em alterações em seus percursos, colocando-os em rota de colisão com outros fragmentos de lixo espacial ou, até mesmo, com alguma missão em curso.

Um dos fenômenos que podem alterar a órbita de veículos e detritos espaciais é conhecido como ressonância orbital. Com apoio da Fapesp, um grupo de pesquisadores da Unesp, liderado pelo matemático Jorge Kennety S. Formiga, do Instituto de Ciência e Tecnologia do câmpus de São José dos Campos, desenvolveu um modelo matemático capaz de identificar quais objetos em órbitas próximas à Terra são mais sensíveis a esse tipo de perturbação e que, por isso, representam risco maior para missões espaciais e para o agravamento do problema do lixo orbital espacial.

 “A principal motivação do trabalho foi conseguir identificar a variação que o efeito de ressonância tem sobre essas órbitas”, conta Formiga. Em um artigo publicado na revista científica Journal of Space Safety Engineering, o grupo de pesquisadores identificou quais são algumas das regiões de maior atenção e revelou que mesmo uma alteração de 50 m na órbita já é suficiente para aumentar o risco de impacto. Segundo o pesquisador, quando detritos espaciais orbitam muito próximos uns dos outros, qualquer alteração em suas rotas pode levar a colisões entre eles, dando origem a cada vez mais detritos. Esse “efeito dominó” é conhecido como síndrome Kessler.

Nomeado em homenagem ao consultor da NASA Donald J. Kessler, o conceito descreve um cenário em que a quantidade de detritos na órbita terrestre cresce a ponto de desencadear colisões em cadeia. Cada impacto gera novos fragmentos que, por sua vez, aumentam a probabilidade de novas colisões, instaurando um ciclo potencialmente descontrolado de produção de lixo espacial.

No pior dos cenários, a síndrome de Kessler prevê um acúmulo tão grande de detritos que, caso nenhuma medida seja adotada, futuras missões de exploração ou o lançamento de novos satélites poderão se tornar praticamente inviáveis.

Com essa preocupação em mente, agências espaciais passaram a documentar as características e a órbita de fragmentos de lixo espacial acima de 10 cm. Também procuram identificar os tipos de detritos e as regiões mais suscetíveis aos efeitos de ressonância. A partir desse conjunto de informações, os planejadores dos lançamentos de satélites podem determinar quais são as áreas que precisam de monitoramento mais atento ou devem ser evitadas ao traçar as rotas para novas missões.

Legenda: A visualização mostra objetos em órbita ao redor da Terra em fevereiro de 2024. Ela começa com aproximadamente 31.000 pontos laranja, cada um representando um detrito rastreável. Em seguida, pontos verdes surgem gradualmente, destacando cerca de 9.300 satélites ativos.
Crédito: NASA’s Scientific Visualization Studio

Áreas de risco

O estudo analisou fragmentos presentes na faixa da órbita terrestre baixa (LEO, na sigla em inglês), região em que os objetos se encontram abaixo de 2.000 km de distância da Terra. Essa é, precisamente, a área mais congestionada do ambiente espacial, como resultado das décadas de lançamentos, missões e colisões.

Os pesquisadores também concentraram as análises na coleção de detritos que apresentavam ressonância 15:1. Ou seja: nos objetos que completavam 15 voltas ao redor da Terra, enquanto o planeta realizava apenas uma volta em torno do seu eixo. Segundo os autores, essa ressonância ocorre em regiões que são muito utilizadas por satélites e que, consequentemente, contam com a presença de detritos.

 Para o trabalho, o grupo utilizou a base de dados CelesTrak, que reúne uma série de informações orbitais de objetos próximos à Terra e é amplamente utilizada por pesquisadores e operadores de satélite. Com essas informações em mãos, foi possível identificar que os principais picos de ressonância ocorriam em uma faixa de apenas 4 km, em distâncias entre 563 km e 599 km da Terra. Isso significa que, quando um objeto está orbitando a Terra e passa próximo dessas distâncias, há mais chances de que sua órbita sofra alguma alteração. “O interessante é que, saindo dessa faixa de 4 km, não identificamos mais o efeito de ressonância. Isso é um sinal do quanto essas alterações são sensíveis: mesmo distâncias pequenas podem ter grandes impactos”, afirma Formiga.

Os estudos foram conduzidos a partir da combinação dos dados do CelesTrak com um modelo matemático desenvolvido pelo próprio grupo, que permitiu simular a evolução de 210 órbitas ao longo de 12 mil dias (cerca de 33 anos). Ao longo de todo esse tempo, o grupo identificou picos de ressonância, responsáveis por provocar leves alterações na órbita dos detritos, cada vez que eles passavam pela faixa de 563 km e 599 km de distância da Terra.

Em alguns dos cenários estudados, entretanto, o grupo observou que a ressonância não se manifesta imediatamente, mas apenas depois de uma longa evolução orbital. Um exemplo ocorre nas simulações com detritos que têm uma inclinação orbital de 87°. Nesses casos, o efeito só se manifestou por volta de 500 dias após o início da simulação. Nesse momento, o detrito experimenta um pequeno deslocamento de alguns metros e, após esse evento, a órbita continua apresentando variações graduais.

Limpeza espacial

De maneira geral, os resultados mostraram que os efeitos de ressonância aparecem principalmente em órbitas quase circulares e muito inclinadas (com cerca de 63,4° e 87° de inclinação). Quando isso acontece, o semieixo da órbita, que é a distância média de um objeto no espaço ao seu centro gravitacional, pode mudar de forma repentina, chegando a alterações de até 50 m. Ou seja, o trajeto feito pelos fragmentos é suscetível a pequenas alterações por conta dos efeitos de ressonância, o que já é suficiente para aumentar os riscos de colisão.

 “Dentro de um cenário espacial, podemos pensar que isso não é grande coisa”, diz Formiga, “mas, se os detritos estão viajando próximos uns dos outros, em órbitas que se cruzam, essa pequena variação já é suficiente para gerar um impacto”, explica.

O matemático diz que o mesmo se aplica a satélites ou outros equipamentos que estejam com órbitas próximas. “Essa pequena variação pode causar uma colisão responsável por encerrar uma missão espacial e resultar em um elevado desperdício de recursos, tudo por causa de um mau planejamento da missão”, diz.

Por esse motivo, Formiga reforça a necessidade de manter o mapeamento de detritos e os estudos orbitais atualizado, de maneira a garantir a melhor rota para missões espaciais e prevenir impactos que poderiam ser contornados. Em 2024, o Brasil iniciou a estruturação para a implementação de uma rede de telescópios para monitorar lixo espacial. O objetivo é garantir o monitoramento contínuo dos detritos espaciais e permitir uma gestão mais eficiente dos riscos de colisão com satélites brasileiros.

 “Com isso, o próprio país poderá fazer o monitoramento para as missões nacionais. Conhecendo as principais características orbitais de um detrito, é possível descobrir de qual ressonância ele está próximo e ter um planejamento mais assertivo das missões”, diz Formiga. O pesquisador também destaca que, além do monitoramento, é necessário pôr em prática planos de limpeza espacial para remover o lixo acumulado nas últimas décadas. “Agora é a hora de começar a limpar, o estrago já foi feito, o problema está aí: temos lixo espacial reentrando na Terra e órbitas cada vez mais congestionadas”, afirma.

Embora algumas agências espaciais, públicas e privadas, tenham desenvolvido planos de missões para limpeza espacial, até o momento nenhuma foi efetivamente implementada. A missão da Agência Espacial Europeia (ESA), em colaboração com a startup suíça ClearSpace, é a que se encontra em estágio mais avançado, com lançamento previsto para 2026. O plano será utilizar uma espaçonave equipada com quatro braços robóticos para capturar um pedaço de foguete desativado e arrastá-lo de volta para a atmosfera terrestre, onde será queimado durante a reentrada.

Imagem acima: simulação mostrando objetos em órbita ao redor da Terra. Aproximadamente 95% destes objetos representam lixo espacial. Crédito: NASA Orbital Debris Program Office