O 37º Congresso de Iniciação Científica da Unesp, que ocorreu entre 25 e 27 de novembro, propôs como mote para reflexão “Ciência e liberdade de pensamento em uma época de extremos”. A escolha do tema teve como pano de fundo as dificuldades vivenciadas pela comunidade acadêmica em todo o mundo, diante do crescimento de movimentos que tentam desacreditar o conhecimento científico e limitar a autonomia universitária, afetando diretamente o funcionamento e a liberdade de pensamento.
Um dos convidados para debater o tema com os estudantes foi o filósofo e professor da Universidade de São Paulo, Pablo Ortellado. Em sua palestra, intitulada “Os desafios da universidade em meio às guerras culturais”, ele analisou o complexo quadro das disputas ideológicas que dominam o ambiente acadêmico atualmente, inclusive na forma de guerras culturais — nas quais o debate entre direita e esquerda deixa de se basear em pautas políticas e passa a ser travado em torno de questões morais e de costumes.
Na palestra, Ortellado destacou a predominância indiscutível do pensamento progressista nas áreas de ciências humanas das universidades brasileiras. Por outro lado, pontuou, uma parcela da sociedade que adota uma perspectiva conservadora reivindica maior abertura das instituições de ensino superior às suas ideias. O problema, explicou o docente, é que a forma agressiva que um pequeno grupo conservador adota para expressar suas posições e atacar as instituições universitárias tem dificultado a construção do diálogo. Os setores progressistas, receosos das ameaças proferidas por esses grupos, tendem então a se fechar ao debate. O resultado é a impossibilidade do confronto de ideias, que é o elemento central do ambiente acadêmico. Isso serve de combustível para o fortalecimento de um sentimento anti-universidade.
Para o filósofo, uma saída possível é ampliar a presença de docentes com uma perspectiva conservadora nas universidades, sobretudo nos departamentos de ciências humanas. Essa reorganização pode permitir que se restabeleça o debate qualificado entre intelectuais com visões distintas, fundamentado em uma convivência respeitosa e livre de preconceitos. E os benefícios alcançam também os estudantes, contemplados com uma formação mais crítica e ampla.
Após a palestra, Ortellado concedeu a seguinte entrevista ao Jornal da Unesp.
O que são guerras culturais e como a universidade se insere nesse contexto?
Pablo Ortellado: As guerras culturais são um fenômeno em que a divisão entre direita e esquerda deixa de se basear em questões políticas, econômicas ou sociais e passa a se concentrar em temas morais e de costumes. A sociedade deixa de se dividir entre liberais e socialistas e passa a se dividir entre progressistas e conservadores. As guerras culturais são, portanto, disputas políticas em torno de temas relacionados a valores.
Esse processo começou nas décadas de 1960 e 1970, quando os movimentos sociais provocaram transformações no âmbito das relações interpessoais. Isso incluiu a luta das mulheres por equidade no mercado de trabalho e dentro de seus relacionamentos afetivos, o movimento negro contra o racismo na sociedade e o movimento LGBTQIA+ contra a discriminação com base na orientação sexual. Essas batalhas por mudanças nas relações interpessoais foram ganhando terreno, até que, em algum momento, os setores conservadores se viram como minoritários e se organizaram politicamente para reagir a essas mudanças, dando origem às guerras culturais. Hoje, essa batalha se estendeu às universidades, que se tornaram um dos palcos centrais desse confronto maior.
Um dos efeitos das guerras culturais é que, nas ciências humanas – acredito que isso não se aplique às outras áreas do conhecimento – verifica-se uma hegemonia muito clara do progressismo. Isso é um problema, porque a universidade elabora políticas públicas e produz conceitos que orientam ideologias políticas.
Há fatores que impedem as universidades brasileiras de oferecerem um ambiente mais diversificado, aberto a diferentes linhas de pensamento?
Pablo Ortellado: A forma violenta com que esse debate tem sido travado gerou uma reação defensiva nas universidades. Elas passaram a associar as demandas por pluralidade a uma perspectiva conservadora de caráter anti-universitário. É preciso superar essa associação.
Qual é o caminho para reverter este quadro e tornar a universidade um ambiente mais plural também neste aspecto?
Pablo Ortellado: Para introduzir uma maior pluralidade, o primeiro passo é defender a liberdade de expressão e sermos mais zelosos quanto ao direito de um debate amplo e crítico dentro das universidades. Hoje, por conta da forma violenta como as guerras culturais se manifestam, com grupos de direita fazendo provocações e ataques às instituições, as universidades se tornaram muito refratárias a certas discussões.
Precisamos fazer, com muita franqueza e serenidade, as discussões em torno de ideias. Esse é o primeiro passo para uma maior pluralidade.
É preciso sermos mais zelosos quanto ao direito de um debate amplo e crítico dentro das universidades
O tema do Congresso deste ano é “Ciência e liberdade de pensamento em uma época de extremos“. Como ele se relaciona às guerras culturais que se travam em torno das universidades?
Pablo Ortellado: Não acredito que exista uma “ciência progressista” em oposição a uma “anticiência conservadora”. O que acredito é que a ciência, sobretudo as humanidades, deveria incorporar o pluralismo, pois elas possuem um braço progressista e outro conservador. Promover um ambiente mais igualitário é uma forma de superar a ideia de que a universidade é predominantemente progressista e de evitar que isso gere agentes anti-universidade externos.
Qual a importância desse ambiente de pluralidade de ideias para a formação dos estudantes?
Pablo Ortellado: A diversidade de ideias contribui para formar melhores estudantes, porque essa mesma pluralidade existe no mundo fora da universidade. Se os alunos forem expostos, durante seu período de formação, a versões mais elaboradas dessas diferentes perspectivas, estarão mais preparados para atuar no mercado de trabalho, seja em empresas, órgãos públicos ou qualquer outro espaço profissional.
Imagem acima: Nathan Sampaio
