Performático, experimental e diversificado, Jards Macalé inscreveu seu nome na história da Música Popular Brasileira, ainda que muitos não o conhecessem

Cantor e compositor carioca participou de importantes momentos da cena musical brasileira, incluindo o espetáculo “Opinião” e os discos e shows de Gal Costa do início dos anos 1970. Mas sua obra passeou também pela bossa nova, samba de breque e até xaxado e forró. Artista morreu dia 17 de enfisema popular.

O cantor, compositor e ator carioca Jards Macalé morreu no último dia 17 de novembro, aos 82 anos, no Rio de Janeiro. Macalé, como era conhecido pelos fãs, estava internado em um hospital particular para tratar de um enfisema pulmonar. Após passar por uma cirurgia, sofreu uma parada cardíaca e não resistiu.

Jards Anet de Silva, mais conhecido como Jards Macalé, nasceu no bairro da Tijuca, em 3 de março de 1943, nas proximidades do Morro da Formiga. Iniciou sua trajetória cultural na década de 1960. Cresceu rodeado de música: seus vizinhos na rua eram os cantores Vicente Celestino e Gilda de Abreu, sua mãe tocava piano, seu pai, acordeão. Nos áureos tempos do rádio, ouvia a Rádio Nacional e os cantores de sucesso, como Sílvio Caldas, Francisco Alves , Cauby Peixoto e muitos outros.

Ainda jovem, mudou-se com a família para o bairro de Ipanema. Lá ganhou o apelido de Macalé, referência ao pior jogador de futebol que integrava então o elenco do Botafogo. Na adolescência, formou seu primeiro grupo musical, o duo Dois no Balanço. Mais tarde, veio o Conjunto Fantasia de Garoto, que tocava jazz, serenata e samba-canção. Durante sua carreira, Macalé pôde estudar com músicos importantes, incluindo piano e orquestração com o maestro Guerra Peixe, violoncelo com o docente da Unesp Peter Dauesberg, guitarra com Turíbio Santos e Jodacil Damasceno, e análise musical com Esther Scliar.

Músico era próximo do cinema

Sua carreira profissional começou em 1965 como violonista do Grupo Opinião. Foi diretor musical das primeiras apresentações de Maria Bethânia e teve composições gravadas por Elizeth Cardoso e Nara Leão, entre outros. Durante o período da ditadura, foi para Londres atendendo um chamado de seu amigo Caetano Veloso, que estava exilado por lá. Da colaboração com Caetano resultou o álbum Transa, um dos mais cultuados do baiano, produzido por Macalé, que também tocou guitarra e fez a direção musical. Participou, como ator e compositor, da trilha sonora dos filmes Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos. Também compôs para as trilhas sonoras de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, Antônio das Mortes, de Glauber Rocha, A Rainha Diaba, de Antonio Carlos Fontoura, e Se Segura, Malandro!, de Hugo Carvana.

Macalé é autor de músicas como Vapor Barato, Anjo Exterminado, Mal Secreto, Movimento dos Barcos, Gotham City, Rua Real Grandeza, Alteza, Hotel Estrela e Poema da Rosa. Dentre os intérpretes de suas canções estão Gal Costa, Maria Bethânia, Clara Nunes, Camisa de Vênus e O Rappa, entre outros.

Em 2019, seu álbum Besta Fera foi indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de MPB e considerado um dos 25 melhores álbuns brasileiros do primeiro semestre de 2019 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A mesma associação também escolheu seu álbum Coração Bifurcado como um dos 50 melhores álbuns brasileiros de 2023 e a colaboração Mascarada: Zé Kéti, com Sérgio Krakowski, como um dos 50 melhores álbuns de 2024.

A doutora em sociologia pela Unicamp, Sheyla Diniz, que é autora da tese Desbundados e Marginais: MPB e contracultura nos anos de chumbo (1969-1974), integra o Grupo de Estudos Culturais do câmpus da Unesp em Franca e do Departamento de História da FFLCH-USP. Em entrevista ao Podcast MPB, ela explica a contribuição da obra de Jards Macalé para a construção do que ficou conhecido como “MPB”, ainda que seus trabalhos tenham ficado um pouco pelas bordas, sem alcançar ampla visibilidade.

“A partir de 1968, com a edição do AI-5, que instituiu uma censura e uma repressão muito mais forte durante a ditadura, esses artistas se tornaram pilares de uma resistência e de uma provocação contracultural. Jards Macalé é um desses artistas”, diz a pesquisadora.

Macalé alcançou uma expressiva produtividade durante a década de 1970. Nos anos 1980, enfrentou um relativo ostracismo, em termos de público e de mídia, mesmo sem deixar de produzir. Na década seguinte, começou a se movimentar um pouco mais, mas sua descoberta pelas novas gerações veio no século 21. Ela ocorreu muito em função de parcerias que estabeleceu com novos músicos, como Kiko Dinucci, Lulu Santos, Rodrigo Campos e uma turma de São Paulo. “Essa redescoberta possibilitou que o trabalho de Jards Macalé alcançasse o reconhecimento merecido”, relata Sheyla.

A pesquisadora destaca a ampla formação musical de Macalé, que, além de ter estudado violão clássico e teoria musical, se interessava por bossa nova e samba. Ele se tornou violonista do espetáculo Opinião. Participou de Opinião quando Maria Bethânia substituiu Nara Leão como cantora da peça teatral. Vivia-se a formação da vertente mais politizada da MPB, na primeira metade dos anos 1960. Macalé participou desse ambiente politicamente efervescente, compartilhando os valores e ideais da esquerda de resistência à ditadura no plano da cultura e da arte, e, por consequência, no plano político.

O avanço dos anos 1960 trouxe o Tropicalismo. Ainda que não tenha integrado o movimento diretamente, Macalé foi muito impactado. Constatou que novas influências estavam moldando a música brasileira. Seria preciso elaborar uma autocrítica em relação à música que vinha tocando, sem, no entanto, abandonar a sua formação. Seu primeiro parceiro nessa nova fase foi José Carlos Capinan, que participou do álbum Fa-Tal – Gal a Todo Vapor.

“Quando Macalé apareceu no Festival Internacional da Canção de 1969, quando Gil e Caetano estavam exilados, foi um impacto. Ele apareceu com uma túnica do Batman, de óculos e barba, cantando Gotham City. Ninguém esperava aquilo do Macalé. O festival era um espaço institucionalizado, e ele sacudiu os ânimos, desestabilizou esse espaço da canção institucionalizada e os padrões instituídos na canção brasileira naquele momento, na esteira daquilo que o Tropicalismo tinha proposto. A partir daí, ele incorporou à sua persona uma característica iconoclasta”, diz a pesquisadora.

Um artista “maldito”?

Durante a sua trajetória, Jards Macalé foi frequentemente descrito como um dos artistas malditos da MPB. Sheyla explica que o rótulo de “maldito” foi criado, em larga medida, pelas grandes gravadoras no início dos anos 1970. Servia para designar músicos aos quais se atribuía o fato de não venderem muitos discos devido a certas características pessoais, como falta de compromisso com horários, cumprimento de prazos, engajamento nos compromissos com a mídia e com as gravadoras. Por outro lado, esses músicos não atendiam a certos padrões estéticos esperados, fugindo do convencional e privilegiando linguagens mais experimentais. “Eles desafinavam o chamado “coro dos contentes”, como diz uma canção do próprio Macalé, escrita em parceria com Torquato Neto. A gravadora começou a disseminar essa ideia de músicos malditos”, diz Sheyla.

O termo tinha associação com a chamada “literatura maldita” produzida no século 19 por grandes autores como Charles Baudelaire, Fiódor Dostoiévski e Arthur Rimbaud. Todos eram artistas muito à frente de sua época, que falavam de temas muito polêmicos, adotavam posturas controversas e muitas vezes passavam pela vida artística incompreendidos. Na música, o rótulo foi aplicado, além de Macalé, a Luiz Melodia, Jorge Mautner e Itamar Assumpção. Os artistas lutaram para se desvincular desse epíteto. “Gosto muito de lembrar uma declaração de Zé Celso Martinez Corrêa, em um documentário, que diz que Macalé não é um maldito, mas sim um artista com a grandeza, por exemplo, de Maria Callas”, diz.


Um ativista na política e na cultura

Após a partida de Caetano e Gil para o exílio, em 1969, Macalé assumiu, junto com Waly Salomão, um protagonismo na cena musical, apoiando Gal Costa para que a cantora pudesse carregar a bandeira tropicalista no Brasil. Isso incluiu dirigir shows da cantora e também de Bethânia.

“Ele sempre foi um parceiro muito próximo de Gal Costa. Várias canções do Macalé e do Waly Salomão interpretadas por Gal se tornaram sucessos daquele momento. Falavam para uma juventude contracultural que era crítica da ditadura, que defendia “abaixo a repressão” e, ao mesmo tempo, “abaixo todos os tabus”, moralmente falando. Era uma juventude que lutava por liberdade sexual, por liberdade de expressão, que também queria se libertar de suas famílias burguesas. Valores da contracultura disseminados naquele momento encontraram muito eco nas canções do Macalé”, conta a pesquisadora. A mais famosa dessas canções é Vapor Barato, que se tornou um verdadeiro hino da juventude da Contracultura.

Apesar de nunca ter alcançado um sucesso expressivo, o músico carioca seguiu fazendo discos de qualidade. Sheyla destaca alguns. O LP Jards Macalé (1972), gravado com Tutti Moreno e Lanny Gordin, trouxe um som experimental interpretando canções de José Carlos Capinan, Torquato Neto e Waly Salomão. “É um álbum que consolida, ao longo do tempo, a base do seu trabalho, e para o qual Macalé geralmente retornava quando ia reinterpretar as suas canções”, diz. Outro destaque é Aprender a Nadar (1994), com Waly Salomão, que revisita um repertório de sambas-canções. Por fim, Besta Fera (2019) trouxe parcerias com músicos da cena contemporânea, como Kiko Dinucci, Lulu Santos e Rodrigo Campos. “Foi lançado no contexto de ascensão da extrema-direita e do bolsonarismo. É um álbum que dialoga muito com esse momento recente da história brasileira, sem ser panfletário. Reaviva essa característica política do Macalé, que estava presente desde o início de sua carreira”, afirma.

“A gente sempre via o Macalé com aquela voz muitas vezes áspera, rouca, cheia de rasuras. E aquilo dizia muito sobre a canção que ele produzia. Um cantor e intérprete extremamente versátil, que cantou e tocou repertórios diversos, desde a MPB no sentido mais clássico até samba, bossa nova, samba de breque, xaxado, forró. Era um músico sem preconceitos. Realmente, um espírito livre”, resume Sheyla.

Confira abaixo a entrevista completa ao Podcast MPB Unesp.