Um observatório situado em ilha no rio Pará, no estado do Pará, vai receber o mais novo projeto de construção sustentável desenvolvido por docentes da Unesp. Elaborado em parceria com docentes da Universidade Federal do Pará (UFPA) e financiado por meio do Programa Integrado de Desenvolvimento Sustentável da Região Amazônica (Pró-Amazônia) do CNPq, o projeto se baseará em recursos naturais típicos da Amazônia para desenvolver um sistema de construção leve e resistente, de características modulares.
A iniciativa segue o rastro de outra experiência no campo da construção sustentável desenvolvida por docentes da Unesp, a Casa da Floresta. A Casa da Floresta possui uma estrutura geodésica construída com ripas de bambu e folhas da palmeira buçu. Além do uso de materiais regionais, a estrutura apresenta aberturas na altura do solo e uma claraboia que contribuem para a circulação do ar, o resfriamento do ambiente e o aproveitamento da luz natural.
A Casa da Floresta foi construída como resultado de uma parceria entre a Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Unesp e o Instituto Peabiru. Está localizada no município de Acará, na Grande Belém, e serve como um espaço aberto ao público que se dirige à cidade durante a realização da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30), articulando conhecimento científico, cultura e saberes tradicionais, promovendo a busca de soluções para conjugar o desenvolvimento social e a preservação da floresta.
A Casa da Floresta foi projetada pela arquiteta Juliana Cortez, docente da Faculdade de Ciências e Engenharia da Unesp, câmpus de Itapeva. Durante os preparativos para a construção, ela conheceu o professor da UFPA Cristiano Mendel, vice-diretor do Instituto de Geociências da UFPA. A UFPA atua na gestão e no desenvolvimento de pesquisas junto ao Observatório Magnético de Tatuoca. O nome designa uma ilha desabitada onde, desde 1957, funciona o observatório, distante 12 km de Belém.

A ilha vai receber o protótipo do novo sistema de construção. Ele será composto de módulos sustentáveis, de fácil transporte, que possam ser encaixados e fixados conforme o projeto do imóvel. A expectativa é que o conceito de estruturas modulares possa ajudar comunidades ribeirinhas da região, que muitas vezes enfrentam dificuldades logísticas na construção de seus imóveis.
“Diferentemente da Casa da Floresta, em que montamos um pavilhão geodésico, nesse projeto queremos criar peças modulares pré-fabricadas, que sejam leves e que possam ser colocadas em um barco e montadas no próprio local”, explica Cortez.
O Observatório Magnético de Tatuoca é vinculado ao Observatório Nacional, órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Ele produz medições contínuas do campo geomagnético terrestre, fornecendo dados para uma rede global com mais de 200 observatórios pelo mundo, chamada Intermagnet. No Brasil, apenas o município de Vassouras, no Rio de Janeiro, possui um observatório semelhante.
Sensibilidade a metal
A escolha por erigir o observatório em uma pequena ilha amazônica sem ocupação humana e com poucas construções é estratégica. A proximidade com o Equador geográfico e o Equador magnético da Terra faz de Tatuoca um local privilegiado para a captação de dados magnéticos. Já a ausência de moradores e outras atividades econômicas impede que outros elementos alterem a assinatura (as características) magnéticas da área e interfiram na sensibilidade dos instrumentos que analisam a variação do campo magnético. Segundo os pesquisadores que atuam no local, o movimento de um automóvel a cem metros de distância dos equipamentos já produz “ruídos” que alteram as medições. Na Ilha de Tatuoca, não existem automóveis.
Essa sensibilidade dos dispositivos do laboratório é mais um motivo para se investir em um projeto que aplique materiais naturais na construção e constitui a principal razão para escolher a Ilha de Tatuoca para receber o protótipo. “A presença de um material ferromagnético, como um vergalhão de aço ou mesmo um parafuso, pode criar uma fonte interferente e provocar variações na leitura dos dispositivos, contaminando os dados que são fornecidos para centros de todo o mundo”, explica Mendel.
Embora o uso de materiais construtivos naturais seja algo fundamental para o observatório, a ideia é que o projeto ofereça soluções para um público mais amplo. Os pesquisadores explicam que o contexto amazônico impõe algumas situações desafiadoras para a construção de casas e imóveis em geral. O transporte de materiais de construção, por exemplo, muitas vezes precisa ser feito por canoas que entram nos rios e igarapés e depois são carregadas à mão até o local da obra, o que pode encarecer ou mesmo inviabilizar o projeto. O uso de barcos ou máquinas maiores, por outro lado, tem o potencial de causar danos à vegetação e ao ambiente local.
“É dessa forma que sempre foi feito pelas populações ribeirinhas e tradicionais na Amazônia. Respeitar esse contexto é fundamental. Surge, então, a necessidade de uma arquitetura adaptada à realidade amazônica, que é a chave do projeto. A aplicação no observatório da ilha de Tatuoca será um teste de prova, porque, se funcionar ali, funcionará em qualquer lugar na Amazônia”, afirma Cortez.

A coordenação do projeto ficará a cargo do professor Carlos Emmerson Ferreira da Costa, docente da UFPA e responsável pelo Laboratório de Óleos da Amazônia, localizado no Parque de Ciência e Tecnologia Guamá, em Belém. Costa lidera uma equipe de mais de 200 pesquisadores, de perfil multidisciplinar, que se dedicam ao estudo e prospecção de insumos da Amazônia para setores de alimentos, cosméticos e bioprocessos. O conhecimento acumulado pelo grupo sobre as características, funcionalidades e aplicações desses produtos locais é uma das chaves do projeto.
Recentemente, o grupo desenvolveu um bioplástico a partir do óleo extraído da castanha da andiroba, uma planta nativa da região amazônica já conhecida pelas suas propriedades anti-inflamatórias e uso na indústria de cosméticos.
Esse é apenas um exemplo da atuação do laboratório na região, mas ilustra bem como o projeto pode se conectar com atividades já existentes. “Temos na Amazônia comunidades que já fazem um trabalho extrativista e de beneficiamento das sementes. Podemos usar os subprodutos desse processo e assim fortalecer uma cadeia produtiva que vai favorecer a viabilidade comercial”, explica o pesquisador. “Uma coisa que consideramos importante para este projeto é que ele seja viável economicamente, por isso a importância de fortalecer as cadeias que já existem”, aponta o coordenador.
O Pró-Amazônia busca fomentar o estabelecimento de redes de pesquisa e promover a ampliação da pesquisa e do desenvolvimento científico na Amazônia. Além da Unesp, da UFPA e do Observatório Nacional, também participam da rede o Instituto de Investigaciones de la Amazonía Peruana (IIAP), no Peru, que possui expertise em bioarquitetura e materiais amazônicos.
O novo projeto está dividido em três partes. A primeira parte envolve a seleção e caracterização dos principais materiais, considerando suas funcionalidades. Dessa forma, fibras de miriti, tucumã, murumuru, bambu e outras espécies nativas amazônicas serão estudadas para pesquisa de seus potenciais como isolantes térmicos, impermeabilização, resistência mecânica, além do breu branco e da borracha como ligantes naturais. Ensaios no laboratório da UFPA avaliarão essas funcionalidades, enquanto a estrutura da Unesp, no câmpus de Itapeva, realizará ensaios físicos e mecânicos dos componentes construtivos.
Na segunda etapa serão desenvolvidos os painéis modulares de montagem simples a partir de técnicas como prensagem a frio e moldagem a vácuo. A prototipagem será feita no câmpus de Itapeva em testes de escala real. A terceira etapa consiste na validação do sistema construtivo junto a comunidades tradicionais da Amazônia, por meio de parcerias com associações de comunidades ribeirinhas e indígenas. Ao mesmo tempo, um protótipo será instalado na Ilha de Tatuoca, após testes preliminares que vão analisar se a interferência dos materiais é, de fato, desprezível.
Na avaliação dos pesquisadores, essa solução poderá ser a primeira do Brasil a unir sustentabilidade amazônica, com uso de materiais locais e técnicas de baixo impacto, à compatibilidade magnética cientificamente validada, tornando-se uma opção adequada para aplicações em pesquisas científicas de precisão em comunidades tradicionais.
Sistema anterior de construção não pode ser repetido
O último prédio do observatório foi feito com madeira de ipê tratada em autoclave, uma técnica que proporciona maior resistência às intempéries. “Essa estrutura durou 50 anos, mas hoje é praticamente inviável reconstruí-la dessa forma por conta do preço da madeira e da quantidade necessária”, diz Mendel.
O professor explica que o novo projeto pode representar uma mudança de paradigma na forma de pensar essas construções. “Em geral, essas são estruturas feitas para durar muito tempo. Quando estragam, uma nova é construída. Nossa proposta é que este seja um projeto modular. Quando sofrer avarias, rapidamente poderemos desmontá-la e remontá-la. Isso vai interromper a leitura por uma semana ou, no máximo, duas, sem impactar profundamente a série temporal de aquisição de dados”, diz.
Para o coordenador Carlos Emmerson da Costa, a proposta pode colaborar para viabilizar a atividade extrativista. Além do fortalecimento das cadeias produtivas, é possível pensar em estruturas para o estoque dos produtos coletados ou para guardar materiais e ferramentas usados nesse trabalho. Trata-se de viabilizar renda e qualidade de vida para quem sempre viveu e cuidou da floresta. “Se não conseguirmos dar condições para que os povos da Amazônia consigam se sustentar da floresta e na floresta, não temos como falar em preservação”, afirma.
Imagem acima: vista da Ilha de Tapuoca. Crédito: divulgação.
