Sim, a Química e a Física são duas áreas diferentes, mas o trabalho pioneiro de alguns pesquisadores permite estabelecer pontes e transitar entre os dois campos. O exemplo mais famoso é Marie Curie, que recebeu, em 1903, o Prêmio Nobel de Física e, em 1911, o de Química. Atualmente, um grupo de docentes e pesquisadores do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp conduz estudos que envolvem as áreas que receberam o Prêmio Nobel de Física e de Química em 2025.
Em 2025, o Nobel destacou, na Física, a descoberta do tunelamento quântico, fenômeno que abriu caminho para a computação quântica, e, na Química, a criação de estruturas metalorgânicas (MOFs), que representam uma promessa de novos materiais altamente versáteis. Apesar de esses estudos ocorrerem em níveis de grandeza diferentes, um grupo de pesquisadores, liderado pelo físico Carlos César Bof Bufon, investiga a possibilidade de que os MOFs possam conduzir eletricidade de forma quântica, um fenômeno comum no desenvolvimento de tecnologias quânticas de segunda geração, como a criação de sensores quânticos, sistemas de comunicação quântica e computação quântica.
Bufon explica que suas pesquisas estão na interseção entre a ciência básica e a engenharia. “Estudamos os novos materiais que surgem e analisamos suas propriedades e potencialidades de aplicação em dispositivos. Outra parte da pesquisa envolve demonstrar o que o material pode fazer, estabelecer regras de design e transmitir essas informações aos engenheiros”, afirma.
Estruturas versáteis
O que chamou a atenção de Bufon para os MOFs é, justamente, a versatilidade do material. De maneira simplificada, as estruturas metalorgânicas funcionam como peças de Lego e, assim como o brinquedo, podem assumir diferentes formas e funções. Elas são construídas a partir da combinação de dois elementos principais: íons metálicos, como cobre e zinco, e moléculas orgânicas à base de carbono, que conectam os íons. A partir desses dois “ingredientes” principais, são criados MOFs de diferentes tamanhos, formatos e composições e, ao variar cada uma dessas características, obtêm-se propriedades físicas e químicas diferentes para o material.
Algumas das pesquisas no campo, por exemplo, têm explorado o potencial dos MOFs para capturar vapor de água do ar; outras buscam formas de usar MOFs para remover poluentes e substâncias tóxicas da água; ou mesmo para absorver dióxido de carbono da atmosfera. Todas essas funções são possíveis graças a uma característica intrínseca desse tipo de estrutura: elas têm cavidades internas vazias, que podem ser preenchidas com o que se deseja capturar, sejam gases, poluentes ou, no caso das pesquisas de Bufon, elementos que possibilitam o controle do fluxo de íons e elétrons, para aplicações em dispositivos eletrônicos.
As MOFs são tão versáteis que, segundo a Chemical Abstracts Service (CAS), uma divisão da Sociedade Americana de Química, já foram criadas cerca de 90 mil estruturas metalorgânicas. Apesar disso, a tecnologia ainda não saiu das bancadas de laboratório, em grande parte devido ao alto custo de fabricação e à dificuldade de escalar sua produção. “Existe um campo chamado química de coordenação, que fornece as ferramentas para projetar e sintetizar os MOFs. A partir desse conhecimento, buscamos transformar esses materiais em dispositivos funcionais, que possam sair da academia, como sensores, sistemas de armazenamento e filtragem de gases ou mesmo memórias”, diz Bufon.
Os efeitos quânticos em MOFs
O foco das pesquisas do físico está em investigar as propriedades quânticas inerentes aos MOFs e explorar como esses efeitos podem ser utilizados no design de novos dispositivos eletrônicos. Uma das formas de fazer isso foi analisar os “defeitos” de algumas das estruturas mais comuns, como a HKUST-1, um MOF criado na Universidade de Hong Kong para absorção de gases.
Esse material apresenta alguns defeitos considerados estruturais, como espaços em que átomos de oxigênio são removidos e alta interação com moléculas de água — em geral, para que um MOF alcance seu maior potencial, é preciso que ele esteja completamente seco. Em artigo publicado em 2020 na revista Nano Letters, Bufon observou como essas propriedades, que até então eram consideradas indesejadas, poderiam desempenhar um papel no potencial de transporte eletrônico do material.

“Observamos como esses defeitos reagem a estímulos externos, como umidade, temperatura e campo elétrico, e mapeamos todas essas interações”, explica o físico. Com isso, foi possível perceber de que maneira o MOF responde a diferentes situações e, de certa forma, controlar a resposta esperada. Os resultados mostram que a presença de defeitos, em combinação com as moléculas de água presas nos poros do material, em vez de comprometer o desempenho, altera a forma como os elétrons se movem pelo MOF, criando estados eletrônicos que permitem controlar o fluxo de corrente elétrica.
O grupo percebeu que o MOF, uma vez sob a influência de um campo elétrico específico e na presença de alta umidade, passa a apresentar uma característica ambipolar, o que faz com que o dispositivo alterne entre estados de alta resistência e baixa resistência. “Para quem trabalha com MOFs, a umidade é um pesadelo. Mas demonstramos que é graças a ela que é possível estabilizar os defeitos da estrutura e gerar um estado eletrônico no material que viabiliza o transporte de cargas através do tunelamento quântico”, afirma Bufon.
O estado quântico, por sua vez, surge graças ao aparecimento da característica ambipolar do MOF. Ao alternar entre estados de alta e baixa resistência, o material muda a forma como seus elétrons se organizam e se movimentam internamente. Os cientistas descobriram que, graças às imperfeições na estrutura e às moléculas de água presas nos poros, surgem “atalhos” invisíveis que facilitam a passagem da corrente elétrica.
Esses atalhos aparecem porque os defeitos criam novos níveis de energia dentro do material, que servem como degraus intermediários para os elétrons se moverem. Essa reorganização é considerada um efeito quântico porque depende do comportamento das partículas em escalas muito pequenas, nas quais os elétrons deixam de se comportar como partículas e passam a agir como ondas.
Em filmes ultrafinos, como os que a equipe produziu com HKUST-1, esse efeito é ainda mais intenso: os elétrons podem atravessar pequenas barreiras de energia sem precisar “subir” por elas, realizando tunelamento quântico. “Uma das coisas que fazemos em nosso trabalho é gerar filmes de MOFs muito finos, abaixo de 50 nm (nanômetros) de espessura”, explica Bufon. Uma vez produzidos, esses filmes são integrados aos dispositivos eletrônicos e passam a ser responsáveis por gerar as propriedades eletrônicas desejadas. Apesar de efeitos quânticos serem observados em escalas ainda menores, em torno de 10 nm de espessura, alguns efeitos já podem ser registrados na escala em que a equipe de Bufon trabalha.
O tunelamento quântico tradicional envolve a probabilidade de um elétron ultrapassar uma barreira diretamente. É como se uma bola lançada em direção a uma parede, em vez de bater e ricochetear, aparecesse automaticamente do outro lado. Esse é um fenômeno bem conhecido, mas não é o único exemplo que se pode citar. Outro exemplo pode ser apontado no trabalho com o MOF HKUST-1, no qual ocorre um tipo de tunelamento quântico chamado ressonante. Esse tipo de tunelamento é caracterizado por um estado intermediário no meio da barreira, ou seja, em vez de passar diretamente de um lado para o outro, o elétron tem uma “pausa” no meio do caminho antes de sair.
“Esse estado intermediário é chamado ressonante e, dependendo do seu tamanho, ou seja, do quanto ele confina o elétron, ele pode gerar algumas interações, como emitir luz ou produzir calor”, explica Bufon. “Nós estudamos esse estado, tentando entender o que acontece quando trabalhamos com barreiras mais espessas”, completa.
Outro fenômeno quântico observado pela equipe de Bufon foi o de resistência negativa, conhecido como NDR. Nesse caso, quando se eleva a tensão aplicada a um material, a corrente elétrica diminui em vez de aumentar. Isso é o oposto do que ocorre em um condutor comum, que segue a Lei de Ohm, a qual dita que a corrente elétrica de um condutor é proporcional à tensão aplicada. Esse efeito também é resultado dos estados intermediários de energia, que permitem o tunelamento quântico. À medida que o campo elétrico aumenta, esses estados intermediários se preenchem e, depois que o elétron ultrapassa a barreira, eles voltam a se esvaziar. “Basicamente, o que ocorre é que a resistência de um material pode ser alta, depois cair quando o elétron consegue passar pela barreira no processo de tunelamento e, por fim, a resistência volta a subir”, explica o físico.
Esse fenômeno também foi observado em estudos com filmes ultrafinos de MOF HKUST-1. Em um artigo publicado em 2021, a equipe criou um inversor ternário, um circuito capaz de representar três estados lógicos (“0”, “1” e “2”), em vez dos dois estados tradicionais (o sistema binário de “0” e “1”). Isso demonstra que a NDR em MOFs pode servir de base para uma nova geração de dispositivos eletrônicos.
Sustentabilidade e Inteligência Artificial
Para além dos efeitos quânticos, outra característica que atrai a atenção de Bufon para o trabalho com MOFs na eletrônica é a possibilidade de criação de dispositivos mais sustentáveis. “As estruturas metalorgânicas são um playground muito interessante, porque permitem combinar diferentes componentes para gerar propriedades específicas, conforme a nossa necessidade”, diz o físico. E um dos campos que vale a pena explorar nesse playground pode ser, justamente, a sustentabilidade.
Uma forma de fazer isso é buscar criar MOFs que tenham também propriedades de decomposição ou características que facilitem a reciclagem. “A ideia é pensar nessa etapa como parte da criação do material e não como algo que será resolvido depois”, diz Bufon. O pesquisador cita como exemplo os painéis solares e as baterias de lítio, que surgiram como promessas de tecnologias verdes, mas cuja reciclagem representa um grande desafio. “Então, a questão da reciclagem e recuperação entra nos parâmetros de engenharia, não como uma questão que se considera depois”, afirma.
Segundo o físico, isso é possível graças à versatilidade de criação dos MOFs. No momento da produção, a equipe pode optar por algumas características que deseja alcançar, como, por exemplo, uma condutividade elétrica, estrutura eletrônica e resistência a gás específicas e, dentro dessa lista, a forma de decomposição do MOF também pode ser uma das características desejadas. “Evidentemente, não é algo trivial, mas é possível. Torná-lo factível é o nosso trabalho”, afirma o pesquisador.
Um aliado em potencial que vem sendo explorado é o uso de Inteligência Artificial na concepção de “receitas de MOFs”. O grupo de Bufon vem alimentando algoritmos de aprendizado de máquina (machine learning) com dados de características da estrutura cristalina, rugosidade, espessura, condutividade elétrica de diferentes MOFs. Assim, a máquina aprende quais combinações de íons e moléculas orgânicas geram quais resultados. Os algoritmos passam, então, a identificar padrões entre as variáveis e, depois de treinados, conseguem prever quais combinações de condições e elementos resultam nas propriedades desejadas.
Com isso, a IA passa a funcionar como uma espécie de assistente de design de materiais, capaz de propor “receitas” para alcançar objetivos específicos — por exemplo, um MOF com determinada condutividade e que se degrade em condições específicas, favorecendo sua reciclagem. O uso dessa tecnologia foi testado recentemente pelo grupo em parceria com uma universidade na Alemanha, em artigo publicado neste ano na revista Materials Horizons.
No trabalho, o grupo divulgou a primeira evidência experimental de condutividade metálica verdadeira em um filme fino de MOF, algo que até então era apenas previsto teoricamente. Com o uso combinado de aprendizado de máquina e inteligência artificial — o que o grupo chamou de “laboratório autônomo” —, os pesquisadores conseguiram definir as condições ideais para a criação de um filme com o MOF Cu₃(HHTP)₂, conhecido por ter uma estrutura semelhante à do grafeno. Os resultados mostraram que o material atinge condutividade elétrica de 240 S/m à temperatura ambiente e 300 S/m a 100 K, valores considerados altos para um MOF. Antes desse estudo, a maioria dos MOFs apresentava condutividade entre 0,000001 e 0,01 S/m, e apenas alguns poucos atingiam dezenas ou centenas de unidades. A título de comparação, metais verdadeiros como o alumínio e a prata apresentam condutividades na faixa de 35.000.000 a 63.000.000 S/m, respectivamente.
O físico reconhece que o caminho da eletrônica de MOFs apresenta muitos desafios a serem superados antes que o material chegue à fase de comercialização. Mas a pesquisa tem se revelado instigante por si mesma. “Se, por um lado, nós enfrentamos dificuldades para entender como controlar e gerar os efeitos desejados, por outro, observamos resultados bem interessantes”, diz.
