Com cerca de 40 mil anos, a flauta de Divje Babe é tida como o mais antigo instrumento musical já descoberto. Produzida a partir do fêmur de um urso, essa relíquia pré-histórica, preservada em um museu na Eslovênia, na Europa, é um testemunho milenar do valor da música entre os grupos humanos, presente em práticas recreativas, rituais e até terapêuticas
A própria Organização Mundial da Saúde, aliás, reconhece que a música e as demais formas de arte são promotoras de bem-estar e saúde mental, tanto para quem cria quanto para quem consome produções artísticas.
As relações entre arte e saúde, especialmente a música, embasaram a criação do novo Centro Interdisciplinar para o Desenvolvimento da Pesquisa em Música (CiDPMus), sediado no Instituto de Artes (IA) da Unesp. Anunciado no final de setembro, o projeto é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e tem como objetivo investigar o potencial da música para impactar a saúde mental das pessoas, seja para quem a busca em momentos de lazer, seja para músicos profissionais.
A iniciativa integra o programa Centros de Ciência para o Desenvolvimento (CCDs), da Fapesp, que financia o desenvolvimento de soluções científicas para desafios sociais urgentes.
A pesquisa será desenvolvida sob uma perspectiva interdisciplinar, envolvendo as áreas de música, psicologia, neurociência, farmácia e estatística. O novo centro terá parcerias com o Projeto Guri, a Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp) Tom Jobim e a Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo.
Graziela Bortz, diretora do IA e coordenadora do CiDPMus, explica que a literatura científica já identificou a capacidade do aprendizado e da prática musical, mesmo em estágios iniciais, de promover a saúde mental. No entanto, paradoxalmente, é comum que músicos profissionais apresentem quadros de ansiedade e até depressão.
“Fazer música facilita a integração social: basta pensarmos, por exemplo, nas pessoas cantando juntas em um show ou nos vídeos que se tornaram comuns durante a pandemia, com pessoas cantando em grupo. Isso é benéfico para a saúde mental. Mas alguns músicos profissionais, ou em vias de se profissionalizar, apresentam sinais de deterioração da saúde mental, seja pelo estresse das apresentações públicas ou pela pressão das competições. O mercado de trabalho na área é desafiador, o que também pode contribuir para o adoecimento mental”, explica.
As parcerias são essenciais para que a pesquisa abranja os diferentes níveis de envolvimento com a música. Os alunos do Projeto Guri aprendem noções musicais sem o compromisso de seguir carreira, enquanto os estudantes da Emesp se preparam para abraçar uma trajetória profissional. Essa comparação permitirá investigar os impactos da atividade artística sobre a saúde mental de públicos diversos.
O estudo também incluirá recortes de gênero e orientação sexual. “Acreditamos que mulheres e pessoas da população LGBTQIA+ enfrentam níveis mais elevados de ansiedade e pressão no mercado de trabalho, especialmente em relação aos efeitos da competição”, comenta Graziela Bortz.
Outra linha de investigação será o uso de substâncias psicoativas como estratégia de enfrentamento ao adoecimento mental. “Há relatos de que músicos fazem uso de determinadas substâncias. Por exemplo, os betabloqueadores — medicamentos utilizados no tratamento de doenças cardíacas, que reduzem a frequência cardíaca e a pressão arterial — são amplamente utilizados por músicos clássicos”, explica a diretora.
As atividades de pesquisa envolverão profissionais de outras unidades da Unesp e também de instituições parceiras. Ao todo, serão cerca de 12 pesquisadores, além de bolsistas de iniciação científica até o pós-doutorado. “Participarão uma professora da área de Educação, do câmpus de Bauru; dois docentes da unidade de Presidente Prudente, especialistas em estatística; uma professora de Farmácia da UFSCar, em São Carlos; um docente em estatística da Noruega; e uma pesquisadora de Educação Musical da Universidade do Sul da Califórnia”, detalha a coordenadora. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) também colaborará com o projeto, realizando exames de ressonância magnética em parte dos jovens e adultos participantes, com o objetivo de verificar possíveis efeitos neurológicos da prática musical.
Como parte das equipes de pesquisadores atua no interior paulista, o novo centro aproveitará para investigar também os polos do Projeto Guri localizados fora da capital. A previsão é de que cerca de 4 mil jovens e adultos participem como sujeitos da pesquisa.
A primeira fase do trabalho será dedicada à organização das equipes e à coleta de dados. Em seguida, os pesquisadores realizarão a interpretação e análise comparativa dos resultados, com o objetivo de verificar a hipótese inicial sobre a relação entre a prática musical e o adoecimento mental. Os resultados finais deverão ser divulgados em cinco anos.
“A ideia é que a pesquisa seja difundida por meios acadêmicos, como artigos e outras publicações científicas, mas também por redes sociais e canais mais acessíveis à população em geral. Ao término do projeto, pretendemos apresentar os resultados por meio de uma animação”, explica Bortz. Além do CiDPMus, a Unesp também sediará mais três novos CCDs, com foco em alimentação, eventos climáticos extremos e veterinária.
Imagem acima: alunas durante aula no Instituto de Artes. Crédito: Eliete Correia Soares
