O Brasil vem atravessando um período de contradições profundas, marcado pela tentativa de golpe no início de 2023. Essa experiência nos convida a olhar mais longe, para além de nossas fronteiras, a fim de compreender o que está acontecendo em todo o continente que partilha conosco tantas feridas históricas.
Com frequência, o Brasil tem se comportado como uma ilha em relação a seus vizinhos. Isso não deixa de ser uma herança colonial, que ainda orienta parte da política externa brasileira. No entanto, é importante compreender os processos regionais para, assim, perceber como as engrenagens do poder global continuam operando sobre nós, e de que modo os povos latino-americanos podem se reorganizar para responder, juntos, a essas dinâmicas e reinventar a própria história, se necessário.
O caso do Peru, cuja então presidenta, Dina Boluarte, foi destituída por impeachment no último dia 10, é um exemplo atual de como práticas políticas regionais podem afetar a estabilidade interna dos países latino-americanos.
O impeachment de Dina Boluarte ocorreu menos de três anos após o presidente anterior, Pedro Castillo, ter sido removido e levado à prisão em 7 de dezembro de 2022. As imagens de Castillo sendo preso foram transmitidas em tempo real e provocaram grande perplexidade entre a população. Em poucas horas, as ruas de várias regiões do país se encheram de manifestantes que exigiam novas eleições, a saída da vice de Castillo, Dina Boluarte (que assumiu o poder após a deposição do cabeça de chapa), o fechamento do Congresso e uma reforma profunda na Constituição. Mais do que um levante político, esses atos simbolizaram o grito de uma população cansada de séculos de exclusão e da permanente sensação de que o poder nunca lhe pertenceu de verdade.
País é refém do Congresso
A instabilidade política é um peso que aquele país carrega há anos, sob uma crise institucional que parece não ter fim. Nenhum presidente conseguiu concluir o mandato desde Ollanta Humala (2011 – 2016). Escândalos, renúncias e destituições se sucedem com tamanha frequência que já não causam surpresa. O Peru se tornou refém de um Congresso que age como poder absoluto, decidindo quem governa e por quanto tempo. Muitos de seus membros têm pouco preparo, acumulam acusações de corrupção e agem de acordo com seus próprios interesses. Não é exagero dizer que o Parlamento se transformou em uma espécie de ditadura disfarçada de democracia, e o fujimorismo, herança dos anos 1990, segue como sombra persistente sobre o país.
Pedro Castillo, um professor rural e sindicalista, chegou ao poder cercado de expectativas, pois representava a possibilidade de um governo verdadeiramente popular para grande parte dos peruanos. O problema é que ele se deparou com um terreno instável. O Perú Libre, partido pelo qual se elegeu, tinha uma base heterogênea e pouco coesa. Suas hostes eram formadas por políticos de trajetórias distintas, muitos dos quais se orientavam apenas por interesses pessoais, carecendo de identidade, coerência e fidelidade programática. No Congresso peruano, cada grupo seguia conforme a conveniência do momento, principalmente quando estavam em jogo os contratos de mineração, energia e infraestrutura.
Desde o início, as elites econômicas e políticas observaram Castillo com desconfiança. O ex-professor falava de soberania nacional, de revisão de acordos internacionais e de valorização das comunidades andinas. Suas propostas soavam ameaçadoras a um sistema acostumado a se proteger. A reação foi orquestrada pela imprensa tradicional, que o tachou de comunista; pelos setores empresariais, que o trataram como um risco à nação; e pelo Congresso, que iniciou uma longa sequência de sabotagens e não permitiu que qualquer iniciativa do então presidente prosperasse.
Diante desse quadro, Castillo tentou dissolver o Congresso e convocar novas eleições. Foi acusado de tentar um autogolpe e preso. Essa situação está carregada de grande simbolismo, pois um homem simples, professor de escola pública, foi cercado e vencido por instituições que sempre serviram às elites. Sua queda revelou que, no Peru, o poder real não está no Executivo, mas nas mãos de um Congresso que age como dono da República.
Protestos foram tachados de vandalismo
Com a prisão de Castillo, Dina Boluarte assumiu o poder em meio a um país dividido e cansado. A legitimidade de seu governo foi questionada desde o primeiro instante, por meio de manifestações que persistiram. Mas, ao contrário do que prometera durante a campanha, Boluarte se distanciou das bases populares e aproximou-se das forças conservadoras que dominavam o Congresso. Pragmática e oportunista, sem identidade política definida, ela se aliou aos grupos que garantiriam sua permanência no cargo.
Durante seu governo, as denúncias de corrupção e de abuso de poder se multiplicaram. As forças de segurança reagiram com violência aos protestos, e o número de mortos aumentou a cada nova onda de mobilização. O país mergulhou em um clima de medo e desconfiança. O Congresso, ao invés de buscar equilibrar a situação, tornou-se cúmplice dessas atrocidades. Dentro desse quadro de desmandos, o governo ainda aprovou reformas judiciais para proteger os poderosos e limitar o alcance da justiça. Uma dessas medidas retirou dos advogados das vítimas o direito de interrogar os réus, concedendo essa prerrogativa apenas ao Ministério Público. A lei foi duramente criticada por organizações de direitos humanos, que a viram como um retrocesso e uma tentativa de garantir impunidade.
Ao mesmo tempo, a imprensa tradicional seguia reforçando o discurso oficial, segundo o qual os protestos foram retratados como focos de violência e vandalismo, e a opinião pública foi levada a crer que os manifestantes eram inimigos da ordem. Ou seja, seguiu-se o mesmo roteiro de sempre: primeiro suscitando o medo, para depois justificar a repressão.
A situação chegou ao limite em 10 de outubro, quando o Congresso decidiu destituir Dina Boluarte por “incapacidade moral permanente”. Essa decisão não refletiu qualquer mudança ética, mas sim o esgotamento de um pacto entre as elites políticas. A crise instaurada deixou de ser conveniente, e foi necessário trocar o rosto no comando para preservar o sistema. José Jerí, então presidente do Congresso, assumiu a presidência do Peru até julho de 2026.
Jerí, em seu discurso de posse, prometeu restaurar a ordem, combater o crime e enfrentar a insegurança. A população o recebeu com desconfiança, pois ele próprio responde a acusações de corrupção e assédio, o que o torna um símbolo perfeito de um sistema que se retroalimenta do descrédito.
Vazio institucional e ressentimento
O Peru está cada vez mais polarizado, e a população vê o revezamento de líderes como algo corriqueiro, que não resulta em mudanças reais. As pessoas querem soluções para a crise econômica, para o aumento da violência e para a corrupção, que parece interminável. Mas, ao que tudo indica, só a dissolução do Congresso poderia acabar com a instabilidade política peruana.
O problema vai muito além da governabilidade. Trata-se de uma crise de legitimidade, de sentido. Quando os partidos não têm ideologia, as alianças se fazem por conveniência e o Congresso age como ditador, nenhuma democracia resiste. O vazio institucional alimenta o ressentimento social, e do ressentimento nascem discursos autoritários, travestidos de soluções fáceis.
Desde o início, o contexto internacional tem agravado a situação. O Peru, rico em minérios estratégicos como o cobre e o lítio, tornou-se peça importante nas disputas entre potências. A China mantém forte presença por meio de investimentos e do controle de grandes obras de infraestrutura, enquanto os Estados Unidos buscam retomar influência política e militar na região. Entre esses dois polos, o Peru perde autonomia e se converte em território de disputa, o que reproduz um velho padrão de dependência.
Controle de finanças e narrativas
A persistência das estruturas de poder e a repetição de promessas não cumpridas não são novidades na política peruana. O imperialismo contemporâneo já não impõe sua força militar, mas controla as finanças, as narrativas e as instituições. Cada presidente que cai, cada protesto reprimido, cada lei feita sob medida para as elites reforça o roteiro da subordinação. O povo peruano, como tantos outros na América Latina, segue pagando o preço por um sistema que o exclui e o silencia.
O que está em jogo vai além das figuras de Castillo, Boluarte ou Jerí. Trata-se de decidir se o Peru continuará refém de uma oligarquia travestida de democracia ou se conseguirá construir uma representação verdadeiramente popular. A população almeja justiça, dignidade e mudança, mas, a cada passo, se depara com a resistência das mesmas estruturas que escolhem o caos para não perder seus privilégios.
O Peru, como o Brasil e outros países latino-americanos, vive o dilema entre um passado persistente e um futuro que exige muita luta. A democracia, para florescer, precisa de mais do que eleições. São necessárias instituições limpas, memória, ética e coragem coletiva. Hoje, a realidade peruana retrata uma América Latina cansada de golpes e promessas, mas ainda movida pela esperança de transformação. Talvez seja desse cansaço que surja uma nova consciência: a de que a verdadeira independência não se conquista nas urnas, mas na lucidez dos povos que se reconhecem e se libertam da colonialidade estrutural.
Ana Raquel Portugal é professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp