A maior chuva já registrada na história do Brasil; uma seca intensa que reduziu os rios amazônicos aos menores índices de que se tem notícia; uma sequência de temporais que levou o estado do Rio Grande do Sul a bater o recorde de vítimas fatais por enchentes e desabamentos — recorde que seria superado apenas um ano depois, na tragédia de 2024.
Tudo isso ocorreu em 2023, ano que despertou os brasileiros para a dura realidade de que as mudanças climáticas já chegaram, e que pagaremos com vidas humanas pelo nosso despreparo para enfrentá-las. Este ano, um estudo conduzido com a participação de pesquisadores da Unesp elucidou quais foram os fenômenos atmosféricos que contribuíram para ocasionar resultados tão avassaladores.
O estudo envolveu 19 cientistas, todos brasileiros, e apresentou seus resultados em um artigo publicado nos Anais da Academia de Ciências de Nova York. O texto teve como primeira autora Luana Pampuch, professora do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Unesp em São José dos Campos.
“Rios voadores” e Atlântico quente abasteceram tragédia no litoral paulista
A chuva que caiu sobre o litoral norte do estado de São Paulo na madrugada dos dias 18 e 19 de fevereiro de 2023 foi a maior da história do país em um intervalo de 24 horas; fez 65 vítimas fatais e 338 desabrigados. O município de Bertioga registrou o recorde nacional, com 682,8 mm de precipitação.
Naquela ocasião, uma massa de ar frio oriunda do Oceano Atlântico encontrou o ar quente sobre o litoral paulista. Massas com temperaturas e umidades diferentes se comportam um pouco como água e óleo, sem se misturar. Quando uma frente fria avança, ela ocupa a parte mais baixa da atmosfera por ser mais densa e empurra para cima o bolsão de ar mais quente.
Conforme o ar quente sobe, ele esfria. E, conforme esfria, perde capacidade de reter umidade — o que faz com que o vapor d’água condense e caia na forma de chuva. A Serra do Mar, que é um degrau íngreme no relevo, ajuda nesse processo, já que o vento não tem como fugir do paredão e só pode mesmo subir. Chuvas causadas por características do relevo são denominadas chuvas orográficas.
Esse é um fenômeno corriqueiro na geografia da região, mas acabou acentuado por condições anômalas no Oceano Atlântico, que estava algo entre 1 e 2 °C mais quente do que o habitual — o que significa mais água evaporando e servindo de combustível para as tempestades. O calor nas águas não é coincidência: em relação à média da era pré-industrial, a temperatura média da superfície dos oceanos já aumentou em 0,9 °C por causa das emissões de gases de efeito estufa. O resultado é que sempre haverá massas de ar mais quentes e mais vapor, o que se traduz em chuvas mais volumosas.
“Existe uma metodologia para atribuir um fenômeno climático extremo às mudanças climáticas de origem antropogênica; para identificar o quanto de um evento está associado à atividade humana”, diz Camila Carpenedo, líder do Núcleo de Estudos sobre Variabilidade e Mudanças Climáticas (Nuvem) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que também assina o artigo. “Não fizemos essas análises de atribuição neste artigo, mas o aumento na frequência e intensidade de eventos climáticos extremos é compatível com um planeta em aquecimento”, diz ela.
Outro fator que contribuiu para a intensidade das chuvas naquele ano foi o chamado jato de baixos níveis sul-americano, popularmente conhecido como rios voadores. O primeiro passo para entender os tais rios é a constatação de que os ventos que correm ao longo da linha do Equador, denominados ventos alísios, sempre sopram no sentido leste-oeste.
Essa via atmosférica de mão única é resultado de um mecanismo denominado efeito Coriolis, que empurra o ar que chega ao Equador na direção oposta à da rotação da Terra. Normalmente, os alísios tentam levar o ar úmido da Amazônia para o Pacífico, mas, no meio do caminho, deparam-se com a Cordilheira dos Andes. A Cordilheira deflete esses ventos para regiões mais ao sul, o que alimenta chuvas.

Mudanças climáticas pioram estiagem no Norte já esperada durante El Niño
A ocorrência das secas de primavera na Amazônia — como aquela que, em 2023, derrubou o nível do rio Amazonas de seus habituais 15,80 m para apenas 12,70 m na altura de Manaus — está diretamente ligada ao fenômeno El Niño. Trata-se de um fenômeno climático cíclico, registrado na literatura pela primeira vez em 1578, que causa disrupções bem conhecidas e estudadas em todo o planeta.
Sua ocorrência está ligada à dinâmica do Oceano Pacífico. Normalmente, as águas rasas aquecidas pelo sol na costa da América do Sul são sopradas pelos ventos alísios para o Oeste, em direção ao continente asiático. Conforme essa água quente se desloca, ela é substituída por água mais fria, que ascende de partes mais profundas do oceano.
O predomínio de água fria nos arredores da América do Sul também deixa o ar mais gelado, enquanto as águas quentes sopradas para as proximidades da Ásia aquecem a atmosfera naquela região. Como o vento sempre se move de zonas frias e secas (em que a pressão do ar é mais alta) para zonas quentes e com formação de chuvas (zonas de baixa pressão, em que o ar sobe), a diferença de temperatura reforça os próprios ventos Leste-Oeste, que foram responsáveis por gerá-la originalmente. É um processo cíclico, de retroalimentação, denominado célula de Walker. “Atmosfera e oceano estão conectados, a gente não sabe o que acontece primeiro. Mas há um acoplamento entre as duas coisas”, diz Luana Pampuch.

De forma geral, denomina-se La Niña à época em que os ventos alísios estão mais intensos que o normal e criam um gradiente quente-frio acentuado entre o leste e o oeste do Pacífico. O El Niño, por sua vez, ocorre quando os ventos alísios enfraquecem e um bocado de água quente permanece no litoral peruano. Esse pêndulo entre “Menino” e “Menina” é conhecido pela sigla ENOS: El Niño–Oscilação do Sul.
Em anos de La Niña ou anos neutros, a porção do Pacífico próxima ao litoral das Américas torna-se uma zona de pressão alta, com clima mais estável, águas mais frias e pouca chuva. As tempestades ocorrem preferencialmente a leste e oeste desse centro, ou seja, no litoral asiático e na atmosfera acima da Amazônia.
No infográfico abaixo, essas são as partes do planeta em que o ar quente sobe, carregando consigo o vapor de água e formando nuvens, em oposição às áreas de pressão alta, em que o ar frio desce e o céu é limpo.

Já nos anos de El Niño, não há vento para empurrar as águas quentes do Pacífico rumo à Ásia, de modo que o oceano permanece aquecido nas redondezas do litoral das Américas e gera ali uma zona de baixa pressão, propensa a chuvas. Vide, na ilustração abaixo, a formação de nuvens sobre a água, onde normalmente haveria uma zona de alta pressão.

O problema é que, quando essa área chuvosa de baixa pressão se desloca, ela sai de cima da Amazônia, que passa a ter uma atmosfera de pressão mais alta e umidade menor. A seta localizada sobre o norte do Brasil passa a apontar para baixo. Daí decorre o longo período de estiagem.
Todo esse processo é intensificado pelo aquecimento global, pois, quanto maior a temperatura média da Terra, mais as águas do Pacífico se aquecem e mais acentuada é a mudança subsequente nas setas da circulação de Walker. Niños e Niñas que geram variações muito bruscas em relação à fase neutra do Pacífico desencadeiam distorções exageradas no clima mundial, como estiagens mais duradouras nas regiões em que já se prevê secura ou, o oposto: chuvas ainda mais pesadas nos lugares em que o El Niño ou a La Niña normalmente já fariam chover.
A capacidade do El Niño de reverter os padrões do clima terrestre — fazendo chover onde normalmente é seco e causando secas onde normalmente chove — também tem uma parcela da culpa pela zona de alta pressão que se instalou sobre o centro do Brasil na mesma época das secas na Amazônia, e levou à mais alta temperatura já registrada no país: 44,8 °C em Araçuaí (MG), no dia 19 de novembro de 2023.
“O El Niño está associado a um aquecimento anômalo das águas do Oceano Pacífico. Se a água está mais quente, por condução ela esquenta a atmosfera adjacente. Esse ar quente sobe, ocupa o lugar do ar mais frio e perturba a troposfera [a camada da atmosfera mais próxima à superfície terrestre, que chega até 12 km de altura]”, explica Camila Carpenedo. “Essa perturbação gera ondas na atmosfera, ondas muito grandes, com um comprimento da ordem de 10.000 km. As cristas produzem áreas com alta pressão, ou vales, áreas de baixa pressão”, diz.
El Niño e águas quentes também acentuam ciclones no sul do país
Ao longo do inverno e da primavera de 2023, o Rio Grande do Sul e seus arredores foram afetados por quatro ciclones extratropicais notáveis, que atingiram seus picos nos dias 16 de junho, 12 de julho, 4 de setembro e 4 de outubro. Segundo os autores do artigo, todos ocorreram na época esperada: em linhas gerais, esses fenômenos se sucedem com mais frequência na primavera e no outono, são mais intensos (ainda que não necessariamente mais frequentes) no inverno e diminuem no verão.
O ciclone de junho derramou mais de 80% da precipitação esperada para o mês em uma área bastante restrita ao Nordeste do território gaúcho, próxima à Região Metropolitana de Porto Alegre. O resultado foi a morte de 16 pessoas e cerca de 10 mil desabrigados. O segundo, em julho, foi mais ameno: atingiu “só” 60% da média de chuvas para o período, desabrigou mil pessoas e causou uma morte.
O fenômeno de setembro também bateu a marca de 60%, fez 54 vítimas fatais e afetou 359 mil pessoas em 106 cidades, especialmente no Vale do Taquari — na época, a dimensão da tragédia pôs a tempestade na primeira página dos jornais. O ciclone de outubro, por sua vez, foi o mais fraco. A precipitação ficou entre 30% e 40% do esperado para o mês.
O clima na Região Sul, localizada em uma latitude mais alta que o resto do país, sofre grande influência de ciclones extratropicais porque se localiza perto da chamada frente polar, onde há condições ideais para a formação desses sistemas giratórios. Eles são uma parte corriqueira do clima entre os paralelos 30° e 60° — e não têm relação com seus primos mais famosos de águas quentes, os ciclones tropicais, batizados de “furacões” nos EUA e “tufões” no litoral chinês.
A frente é um paredão invisível entre o ar polar e o ar dos trópicos, em que ocorre uma mudança repentina de temperatura. No mapa abaixo, centrado sobre a Antártida, nota-se a transição brusca entre a área azul e roxa (mais fria) e a área verde (mais quente). No verão, a frente paira sobre a Patagônia. No inverno, porém, o bolsão de ar frio avança até as redondezas gaúchas, o que explica a vulnerabilidade do estado a esse tipo de fenômeno.

Essa é uma fronteira turbulenta, em constante mutação. O tempo todo, massas de ar frio penetram na região quente, enquanto massas de ar quente avançam sobre áreas frias. A semente de um ciclone extratropical, por sua vez, é uma área de baixa pressão nessa fronteira — baixa o suficiente para atrair o ar ao seu redor como se fosse um ralo. Acompanhe no GIF abaixo.

Em torno do núcleo de baixa pressão, uma frente fria e uma quente giram uma em torno da outra como uma dupla de cães ansiosos para se cumprimentar. Esse é o redemoinho de nuvens visível em imagens de satélite. O ar frio, via de regra, é mais rápido que o quente e completa a volta antes, isolando o centro da tempestade. As chuvas, por sua vez, ocorrem porque a frente fria empurra o ar quente, mais leve, para cima — fazendo com que o vapor de água esfrie, condense e caia.
A tendência é que, com o aquecimento global, “passe a ocorrer um número menor de ciclones, mas os que ocorrerem tendem a ser mais intensos”, explica Luiz Felippe Gozzo, professor assistente do curso de Meteorologia da Faculdade de Ciências (FC) da Unesp de Bauru, que não participou da elaboração do artigo. “O espaço de tempo entre um e outro vai ser maior, então a atmosfera acumula mais energia. Além disso, quando está mais quente, o ar consegue armazenar mais vapor de água. E aí ocorrem chuvas mais intensas.”
Desastres como os de 2023 serão tendência crescente ao longo do século 21
Quando pesquisadores discutem se vamos ultrapassar 1,5 °C ou 2 °C de temperatura acima dos níveis pré-industriais, o ponto de referência é o meio século entre 1850 e 1900 — quando já havia fábricas e outros emissores, mas não em quantidade suficiente para gerar um impacto perceptível no clima. A humanidade emitiu “só” 12 gigatoneladas (GtC) de carbono da Revolução Industrial até o ano de 1900, contra 380 GtC entre 1901 e 2013, de modo que o grosso do aquecimento aconteceu já durante o século 20.
Um aumento de “só” 1,5 °C na temperatura média da Terra em relação a essa época (e vale lembrar que o ano de 2024 já ultrapassou pontualmente essa marca, com 1,55 °C) já é suficiente para causar alterações significativas no clima mundial. Mas, no ritmo atual das emissões e das políticas públicas para mitigá-las, o mais provável é que o planeta alcance ou até ultrapasse 2 °C até 2100.
Nesse cenário, todos os fenômenos descritos na reportagem se tornarão mais frequentes, mais intensos ou ambas as coisas em um futuro próximo. Chuvas fortes se tornarão 1,7 vezes mais frequentes e 14% mais intensas, enquanto estiagens passarão a ser 2,4 vezes mais comuns. E os ciclones, conforme já mencionado alguns parágrafos atrás, podem até se tornar menos comuns, mas serão mais intensos.
A América do Sul “deve enfrentar eventos extremos mais intensos e contrastantes, com chuvas mais fortes em algumas regiões e secas mais longas e severas em outras, impactando diretamente a agricultura, os recursos hídricos, a biodiversidade e aumentando a vulnerabilidade social das populações”, resumem Luiz Gozzo e Luana Pampuch.
Nem todo evento extremo ocorre por causa do aquecimento global, e é um trabalho intelectual árduo determinar a parcela de responsabilidade do aumento das temperaturas ao analisar cada uma dessas ocorrências. Fenômenos atmosféricos se comportam como uma fileira de dominós: uma mudança sutil em um único parâmetro do funcionamento do planeta é capaz de gerar uma reação em cadeia catastrófica. Os meteorologistas fazem o possível para decifrar esse quebra-cabeça. Mas evitar que coisas piores aconteçam é papel de governos, empresas e todos os demais atores que, infelizmente, falham em enfrentar de forma adequada as mudanças climáticas.
Imagem acima: Foto divulgada pela Defesa Civil de Ubatuba (SP) mostra desabamento interditando a Rodovia Rio-Santos (BR-101) em trecho próximo à Praia da Lagoinha, no dia 19 de fevereiro de 2023. (Foto: Governo do Estado de São Paulo/Divulgação).