Conhecida por suas canções politizadas e engajadas, marcadas por letras ácidas, a banda Garotos Podres celebra quatro décadas do lançamento do seu primeiro e emblemático álbum, Mais Podres do Que Nunca. O disco preserva o espírito do punk brasileiro tal como foi destilado pelo grupo, que desde o seu surgimento no ABC paulista, em 1982, é liderado pelo vocalista Mao.
A banda desde então construiu se consolidou como um dos principais nomes do punk rock brasileiro, com uma trajetória marcada por resistência, ativismo social e a defesa dos direitos da classe trabalhadora. A comemoração dos 40 anos do álbum de estreia inclui o relançamento do disco em vinil e um show especial no Sesc Belenzinho em São Paulo, no dia 27/9. A apresentação, muito aguardada pelos fãs, reforça a relevância do grupo na história do rock nacional.
Desde a sua criação, o Garotos Podres se destacou por sua postura combativa, enfrentando a ditadura militar e apoiando a luta de movimentos sociais. O vocalista Mao, principal compositor do grupo, que também atuou por tempos como docente acadêmico de história política, sempre foi uma figura central nesse ativismo, levando para a música as pautas que ecoavam nas ruas e fábricas.
Mao conta que seu contato com o punk rock ocorreu dentro do contexto político que o Brasil atravessava no fim dos anos 1970, que era o da ditadura militar e de desemprego. No ABC, em especial, o quadro das greves dos metalúrgicos destacava-se entre outras ações políticas que sacudiam o país em um período agitado.
“Montei minha primeira banda em 1981, que se chamava Submundo. Depois, em 1982, foi criado o grupo Garotos Podres. A primeira apresentação pública ocorreu em um festival organizado pelo Fundo de Greve do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, no Paço Municipal de Santo André. Temos um grande orgulho de que nossa primeira apresentação pública tenha ocorrido em um evento classista”, diz.
Ele explica que os Fundos de greve eram importantes à época porque os sindicatos estavam sujeitos a intervenção do Ministério do Trabalho. Havia o Estatuto Padrão, que permitia ao presidente do sindicato mandar e desmandar. “O Ministério do Trabalho podia intervir e afastar o presidente, e nomear um interventor controlado pelo ministério. Isso aconteceu quando prenderam o Lula. Se isso ocorresse em meio a uma greve, ainda existiria uma organização paralela ao sindicato, o Fundo de Greve, não sujeito à intervenção golpista. Acho que o contexto musical dos Garotos Podres e o contexto político que se vivia na época são indissociáveis”, relata.
O professor de história analisa o quadro histórico da época. Vivia-se o enfraquecimento da ditadura, a ascensão dos movimentos sociais, o surgimento do PT e da CUT. No campo da cultura, ganhava força o rock nacional, que se projetou principalmente a partir da Nova República.
“A Nova República tinha que mostrar que a ditadura havia acabado, e que pegava mal ficar batendo em estudante”, conta. No rastro desse novo momento veio uma abertura para o rock nas rádios, abertura da qual se aproveitaram até as bandas punks. “Conseguimos até mesmo tocar nosso som punk em rádios, algumas poucas, que eram consideradas rádios de rock”, diz.
Álbum trouxe clássicos do gênero
Entre as faixas de Mais Podres do Que Nunca que se projetaram estão Papai Noel, Velho Batuta e Anarquia Oi!, que até hoje fazem pular as novas gerações de fãs. Mao narra os bastidores das gravações.
“A gente não sabia tocar direito, e nossos equipamentos eram bem precários. Isso só reforçava o espírito ‘faça você mesmo’ do movimento. Entramos em estúdio para gravar o que seria inicialmente uma demo-tape. Todas as faixas foram gravadas e mixadas em 12 horas, num estúdio de oito canais. O resultado nos surpreendeu. Foi considerado tão bom, para os padrões da época, que a demo acabou se tornando o primeiro álbum da banda, como lançamento independente. Chegou a vender 50 mil cópias, um recorde de vendagem de discos independentes na época. Isso tudo chamou muito a atenção”, conta.
Ele relembra que, no contexto da ditadura, era obrigatório enviar cópias das letras das músicas para aprovação pelo Departamento de Censura Federal. Para driblar a censura, compositores costumavam fazer alterações nos textos das letras. “Uma das letras que foram alteradas propositalmente foi a de Papai Noel, Velho Batuta. E conseguimos! Então, hoje estamos celebrando esta obra”, diz.
Banda levou punk brasileiro para o mundo
Em 1988, lançam o seu segundo álbum, Pior que Antes pela gravadora Continental, e uma de suas músicas, Batman, teve sua execução pelos meios de comunicação proibida pela censura. Ficaram sem novos lançamentos até 1993, quando saiu Canções para Ninar editado pelo selo Radical Records. O trabalho trouxe como destaques as faixas Oi! Tudo bem? e Rock de Subúrbio, esta o material para o primeiro videoclipe da banda.
Com este álbum, realizaram shows na Europa e Estados Unidos. A popularidade do grupo já havia ultrapassado os limites nacionais, e graças a contatos com selos da Europa, principalmente Portugal e Alemanha, vários dos seus trabalhos foram lançados nestes países, e também na França e nos EUA.
Em 1997 saiu o seu quarto álbum, Com a Corda Toda, pela gravadora Paradoxx Music. A música O Mundo não pára de Girar foi uma das mais executadas na rádio rock 89FM. Em 1999 lançaram no Brasil seu primeiro álbum ao vivo , intitulado Rock de Subúrbio – Live!. O registro de um show em um bar na cidade de Mauá já havia saído em Portugal em 1995. O segundo ao vivo, Live in Rio, foi editado pela própria banda em 2001.
Em 2002 saiu Tributo Garotos Podres – 20 anos de Podridão, coletânea lançada pelo selo independente Rotten Records em comemoração aos 20 anos da banda. Participaram do projeto 23 bandas de diferentes estilos e nacionalidades, incluindo Inocentes, Ratos de Porão, Ultraje a Rigor e Tihuana, além dos Acromaniacos, de Portugal, e Muerte Lenta, da Argentina. No ano seguinte saiu o último trabalho utilizando o nome Garotos Podres: Garotozil de Podrezepam – 100mg, que rendeu shows em Portugal e Espanha.
A banda se separaria em julho de 2012, devido a questões políticas e ideológicas, e a separação resultou em disputas legais. Enquanto a questão jurídica não se resolvia, o líder da banda montou, em 2014, a banda O Satânico Dr. Mao e os Espiões Secretos. A partir de 2016, Mao começou a retomar suas atividades nos Garotos Podres. Em abril de 2018, lançaram um compacto no formato digital, intitulado Canções de Resistência com duas músicas: Grândola, Vila Morena e Aos Fuzilados da CSN, cujos videoclipes estão disponibilizados na internet.
Mao, punk e professor
José Rodrigues Mao Júnior, mais conhecido como Mao, nasceu em 26 de março de 1963, na cidade de São Paulo. Posteriormente, se mudou para o município de Mauá, que depois se tornou parte do Grande ABC Paulista.
“Acho que a música sempre esteve presente desde a minha infância, muito pelo entorno em que eu vivia. Na esquina de casa tinha uma banda que ensaiava na garagem. No finzinho dos anos 1960, e nos anos 1970, o rock era um gênero muito popular no ABC. Esse universo das bandas de garagem sempre foi algo bastante familiar. E, quando criança, peguei um período em que o rock tinha grande projeção, a época dos Beatles, dos Stones, gostava muito, Na transição para o ensino médio me deparei com o punk, e tudo aquilo foi fundamental para a minha vida”, diz.
Mao é graduado em História pela Universidade de São Paulo e possui mestrado e doutorado pela mesma instituição. Atuou no sindicato dos professores do ABC, lecionou em diferentes níveis da educação e se aposentou como docente pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Desde a sua aposentadoria como docente, Mao ampliou ainda mais sua agenda musical ao lado dos Garotos Podres, realizando shows dentro e fora do Brasil.
“Na década de 1980, o espaço para shows de bandas punk era muito limitado. Todo mundo conhecia nossa banda, tocávamos em rádio, mas havia muita dificuldade para fazer shows. Acredito que as coisas só melhoraram a partir do final da década de 1990, quando a internet começa a se popularizar. Depois, surgiram as redes sociais, o que facilitou mais ainda. Hoje, a banda faz muito mais shows graças à Internet”.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.