No hype da polilaminina, imprensa insiste em velhos erros

Veículos de comunicação repetem padrão equivocado ao exaltarem eficácia da polilaminina, substância experimental que seria capaz de devolver movimentos a pessoas com lesão medular. É preciso esperar que o debate técnico seja travado antes de tomar um anúncio por um fato consumado.

Na mitologia grega, Sísifo foi condenado a empurrar uma pedra montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta ao ponto de partida sempre que chegava ao cume. O esforço eterno e repetitivo tornou-se símbolo do trabalho inútil. De maneira semelhante, a imprensa retorna aos mesmos erros, empolgando-se com anúncios extraordinários que ainda não passaram pelo escrutínio da comunidade científica. O exemplo mais recente é o da polilaminina, substância apresentada como capaz de devolver movimentos a pessoas com lesão medular.

Um dos equívocos mais recorrentes é a pressa em anunciar descobertas antes que a comunidade científica tenha tido tempo de avaliá-las. Em março de 1989, os químicos Martin Fleischmann e Stanley Pons publicaram um artigo em que alegavam ter obtido fusão nuclear em condições de temperatura ambiente, algo extraordinário que resolveria o problema energético da Humanidade. O artigo, com todos os problemas que depois viriam a ser expostos, foi publicado em uma revista científica, o que conferiu uma aparência inicial de legitimidade.

A imprensa, contudo, não aguardou que a comunidade de especialistas se pronunciasse sobre a plausibilidade do resultado. Poucos meses depois, ficou claro que a descoberta não se sustentava: os subprodutos esperados em reações de fusão não estavam presentes, os experimentos não eram reproduzíveis e a explicação proposta violava princípios básicos da física nuclear. Mas o estrago já estava feito: a sociedade havia sido levada a crer, por algum tempo, que uma solução mágica para a crise energética estava ao alcance.

Em 2022, houve o alarde em torno da fusão nuclear obtida no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, nos Estados Unidos, quando se anunciou pela primeira vez um “saldo positivo” de energia no experimento. A notícia correu o mundo com títulos que davam a esperança de uma fonte de energia “infinita” à disposição da Humanidade em breve. O que se omitiu foi o fato de que todo o resultado se baseava apenas em um comunicado à imprensa do Departamento de Energia norte-americano, sem artigo técnico publicado. O artigo científico, publicado somente em 2024, deixa claro que a definição adotada para o saldo positivo de energia é bem restrita. Considerando-se todas as etapas, o experimento consome muito mais energia do que produz – o resultado está longe de ser um “Santo Graal da energia limpa”.

O caso mais recente é o da polilaminina, uma substância experimental apresentada como capaz de devolver movimentos a pessoas com lesão medular. Os títulos na imprensa foram enfáticos: “Medicamento experimental brasileiro devolve mobilidade a pessoas tetraplégicas”, na Veja, ou “Medicamento inédito devolve movimento a pacientes com lesão na medula”, na CNN Brasil. É inegável que a perspectiva de um medicamento que ajude vítimas de lesões na medula espinhal desperta enorme interesse. O problema é que, até o momento, não existe nenhum artigo científico publicado que corrobore as afirmações. As informações vieram de entrevistas da pesquisadora responsável e de comunicados reproduzidos pela imprensa. O que se conhece são relatos de casos individuais, insuficientes para sustentar conclusões generalizadas.

O artigo mais recente da pesquisadora sobre este assunto, mencionado em algumas matérias, foi publicado na revista Frontiers in Veterinary Science, e descreve  estudos conduzidos em apenas seis cães, sem grupo placebo, o que torna impossível avaliar de forma robusta a eficácia da substância. Os próprios autores reconhecem explicitamente essa limitação. Em tradução livre: “No entanto, o pequeno e heterogêneo número de animais em nossa coorte limitou a nossa capacidade de distinguir as contribuições individuais da polilaminina (…). Além disso, a ausência de um grupo placebo impede conclusões definitivas sobre a eficácia do tratamento”.

O erro da imprensa de não esperar o debate técnico e transformar uma hipótese extraordinária em fato consumado gera expectativas desproporcionais à realidade. Famílias e pacientes que convivem com lesões medulares tendem a acreditar que uma solução está próxima, quando na realidade o caminho até um eventual medicamento aprovado e disponível é longo, passando por etapas rigorosas de testes clínicos, além da necessária aprovação regulatória pela Anvisa. Casos como esse, ainda que distintos, inevitavelmente evocam a lembrança do sensacionalismo em torno da fosfoetanolamina sintética e de outras drogas sem validação científica.

Não se trata de negar a importância de uma pesquisa que busque soluções para problemas graves. Pelo contrário, é justamente porque o assunto é relevante que merece ainda mais rigor na forma como é comunicado. A história da ciência mostra que avanços reais são confirmados por múltiplas camadas de evidência e publicados em periódicos de qualidade. É esse padrão que deveria orientar a divulgação pública das descobertas que se apresentam como extraordinárias.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

Publicado originalmente no site Questão de Ciência.