Assegurar a sobrevivência de espécies ameaçadas de extinção exige muita ciência. Múltiplas iniciativas são articuladas, abarcando desde ações diretamente nos habitats dos animais até trabalhos de conscientização voltados para comunidades humanas, a fim de evitar que a redução das populações deslize perigosamente para perto do ponto de não retorno. Mas, em situações particularmente críticas, os estudiosos de conservação podem recorrer a uma ferramenta que pode parecer inusitada: a criação de espécimes em cativeiro, ou no regime ex-situ, como os biólogos preferem chamar.
Desde 1973, esse tem sido um dos métodos empregados na busca pela preservação do mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus), espécie que só existe no estado de São Paulo e que, entre 1900 e 1970, era considerada extinta. Essa mesma abordagem ajudou a virar o jogo da conservação do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), cuja população saltou de apenas 200 indivíduos, por volta de 1970, para os 4.800 indivíduos registrados em 2023, no censo divulgado pela Associação Mico-Leão-Dourado (AMLD).
Porém, para que o regime ex-situ possa atuar de forma eficiente, é essencial o monitoramento da diversidade genética das populações mantidas em cativeiro. Os níveis de diversidade genética devem ser elevados o suficiente para garantir um potencial de adaptação a diferentes condições, o que assegura sua sobrevivência ao longo do tempo, frente a mudanças no meio ambiente. Para preservar esse equilíbrio genético, muitas vezes os pesquisadores e gestores promovem trocas de indivíduos entre instituições conservacionistas, ou optam até mesmo por trazer novos integrantes diretamente da vida livre.
Uma equipe de pesquisadores do Brasil e de outros países se dispôs a avaliar a diversidade genética de populações de mico-leão-preto, abrigadas no Brasil e no exterior, que, devido às trocas de indivíduos promovidas pelas instituições, acabam por formar uma mesma população espalhada em diferentes locais. Os resultados foram divulgados no artigo “Genetic monitoring in ex situ populations of the endangered primate Leontopithecus chrysopygus and integrative analyses with the wild founder population”, publicado na revista científica PLOS ONE.
O trabalho foi resultado do mestrado de Nathalia Bulhões Javarotti, sob orientação de Patrícia Domingues de Freitas, docente do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que liderou a pesquisa. Como parte dos estudos, os pesquisadores elaboraram projeções para a sobrevivência da espécie nos próximos 100 anos. O futuro é incerto: caso as populações em cativeiro sofram alguma redução, ou não recebam novos indivíduos vindos da natureza, a expectativa é que, nos próximos 20 anos, elas percam a diversidade genética necessária para a perpetuação da espécie.
Laurence Culot, pesquisadora do Instituto de Biociências da Unesp – câmpus de Rio Claro, que integrou a pesquisa, explica que a perda de diversidade genética é um importante fator de vulnerabilidade, porque os eventuais impactos que atingem a população afetam, de forma semelhante, todos os seus integrantes. “Uma população menos diversa geneticamente será mais sensível a qualquer fator externo. No caso de uma doença que se abata sobre eles, por exemplo, diminuem as chances de que existam indivíduos capazes de se mostrarem mais resistentes e sobreviverem”, explica. “Por isso, monitorar e manter a diversidade genética é de extrema importância para garantir a sobrevivência dos micos-leões-pretos.”
Dados como extintos
Em 1970, o biólogo Adelmar Faria Coimbra-Filho encontrou alguns micos-leões-pretos habitando a Reserva Estadual do Morro do Diabo, em São Paulo, surpreendendo os que já os consideravam extintos. O achado uniu pesquisadores e conservacionistas no esforço de desenvolver mecanismos para proteger e propagar a espécie. Um dos resultados foi a criação, em 1973, da primeira população ex-situ de micos-leões-pretos, com o envio de alguns indivíduos ao chamado Banco Biológico da Tijuca, atualmente nomeado Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ).
Desde então, outras duas instituições também passaram a manter populações em cativeiro: o Zoológico de São Paulo (FPZSP) e o Durrell Wildlife Conservation Trust (DWCT), em Jersey. “As populações em cativeiro são importantes porque funcionam como uma população de segurança para os grupos de vida livre”, diz Javarotti.
A doutoranda explica que, no caso de eventos inesperados que resultem em uma mortandade severa dos indivíduos de vida livre, os animais criados em regime ex-situ impedem que a espécie desapareça por completo. “Esses animais podem, eventualmente, ser reintroduzidos na natureza. Mas, para que a reintrodução dê certo, é preciso que haja diversidade genética no grupo e, também, que não tenham sofrido muitas adaptações ao cativeiro, a ponto de prejudicar sua sobrevivência fora dele”, diz Javarotti.
Uma das formas de cuidar dessa necessidade é manter um controle sobre quais casais procriam e incentivar que a reprodução envolva aqueles indivíduos com parentesco mais distante. Essa abordagem evita a endogamia, que ocorre quando animais com uma genética muito parecida acasalam, o que pode levar a deformidades, altas taxas de mortalidade e baixas taxas de fertilidade, impactando diretamente na perpetuação da população.
Esses problemas foram vivenciados pela população do DWCT, em Jersey, a partir de 2012. “Lá não existiam mais pares reprodutores, a população estava fadada à extinção”, lembra Freitas. Para evitar esse desfecho, cinco indivíduos foram transferidos do CPRJ e da FPZSP para Jersey em 2017, na expectativa de que pudessem impulsionar a reprodução e introduzir novos genes.
O grupo de Freitas, que desde 2014 realiza o monitoramento genético das populações ex-situ, já contava com as análises genéticas dos indivíduos que haviam sido transferidos para o DWCT antes da movimentação. Com esses dados em mãos e, após a integração dos animais na população do outro lado do oceano, o grupo decidiu refazer as análises genéticas dos indivíduos das três instituições, para confirmar se a estratégia havia sido eficaz.
“O estudo mostrou que a chegada dos cinco micos-leões-pretos oriundos de instituições brasileiras evitou o aumento da endogamia naquela população. Isso serve para evidenciar que, mesmo a transferência de poucos indivíduos, já surte um grande efeito nas populações”, explica Culot.
A inserção de novos indivíduos nas populações ex-situ, para além da transferência de animais de uma instituição para outra, ocorreu de maneira esporádica. Desde a criação desses grupos de reserva, não houve a remoção de animais saudáveis do ambiente natural para preservá-los no cativeiro. “Hoje, a introdução de animais ocorre de forma oportunista, em circunstâncias nas quais um animal não tem possibilidade de voltar ou sobreviver na natureza”, conta Javarotti.
Ou seja, a inserção de novos integrantes acontece apenas quando algum mico-leão-preto está gravemente ferido ou doente e é resgatado. Sua recuperação é realizada dentro dos centros e, após ser reabilitado, ele passa a integrar as populações ex-situ. Apesar de essa ser considerada a forma de manejo mais desejada, a ausência de novos indivíduos coloca em risco a manutenção da diversidade genética.
Para orientar as estratégias de manejo futuras, o grupo realizou uma projeção para os próximos 100 anos. A partir dos dados genéticos das populações mantidas em cativeiro e da população de vida livre do Morro do Diabo — origem dos primeiros micos-leões-pretos levados para o ex-situ —, os pesquisadores avaliaram se a diversidade genética atual se manteria ao longo do tempo.

A previsão não é das melhores. Em cenários em que ocorra algum evento crítico, como uma doença responsável por diminuir a população, a expectativa é que os grupos conseguirão manter a diversidade genética por mais 10 a 15 anos. Já no caso de nenhum evento extremo ocorrer, as previsões apontam que boa parte da diversidade genética será perdida após 20 anos.
Para as pesquisadoras, isso representa um quadro que demanda o planejamento de medidas de manejo com o objetivo de evitar que esse futuro se concretize. A principal forma, apontada por Culot, Freitas e Nathalia, seria por meio da inserção de micos-leões-pretos que vivem na natureza. “Geralmente nós não queremos tirar um indivíduo de vida livre para colocar no cativeiro, mas, quando isso ocorre, é ‘sangue novo’, é um indivíduo que pode ter um material genético diferente dos outros que estão ali, e pode trazer uma diversidade maior”, explica Culot.
Por outro lado, ao realizar as previsões para a população de vida livre do Morro do Diabo, o grupo identificou que, caso não ocorra nenhum evento que leve à redução da população, a perspectiva é que ela seja capaz de manter a diversidade genética pelos próximos 100 anos. O grupo do Morro do Diabo representa a maior concentração de micos-leões-pretos do mundo. Estima-se que, ao todo, existam cerca de 1.800 representantes do pequeno primata, sendo que 80% desses animais estão concentrados nessa área, localizada no Pontal do Paranapanema.
Isso indica que, apesar de a perspectiva ser positiva para o grupo do Morro do Diabo, ela não é válida para todas as outras populações de vida livre, que são muito menores. “Outros levantamentos mostram que as populações que vivem em fragmentos menores e têm menos indivíduos também têm sua diversidade genética ameaçada, mesmo com a morte de poucos indivíduos”, destaca Culot.
Os resultados também indicam que a sobrevivência de um grupo não depende apenas da diversidade genética que ele apresenta, mas também de seu tamanho. “Mesmo que a diversidade genética em um determinado grupo não seja tão alta, o fato de que uma população possui vários indivíduos confere fôlego para que, ao longo dos próximos anos, a reprodução seja aleatória e a população se mantenha viável”, explica Freitas.
Novos indivíduos são necessários
Diante desse quadro, as pesquisadoras evocam a possibilidade de que um grupo de micos-leões-pretos de vida livre seja inserido nas populações ex-situ. Segundo Freitas, isso garantiria um maior fôlego para os grupos em cativeiro neste momento, em especial com a formação de novos pares reprodutores e a ocorrência de nascimentos. Isso resultaria no aumento populacional sem a adaptação ao cativeiro, o que beneficiaria a manutenção da espécie no momento da reintrodução desses animais na natureza, se necessário.
É importante destacar que, apesar da recomendação, a decisão final de manejo é tomada a partir do debate entre especialistas das instituições que abrigam os animais e dos órgãos responsáveis pela conservação e proteção da espécie, como o Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), que também integrou a pesquisa, e o Programa de Conservação do Mico-Leão-Preto.
Para dar sequência ao projeto de monitoramento, os próximos passos envolvem analisar até que ponto as populações ex-situ apresentam adaptações específicas ao cativeiro e se elas ainda mantêm as similaridades genéticas necessárias com as populações de vida livre.
“É muito provável que ocorra a seleção de certos perfis genéticos em cativeiro, como ocorre na natureza, que tende a selecionar indivíduos com determinados perfis”, explica Culot. “Isso é algo com o qual temos que tomar cuidado, porque a seleção de características que são boas para o cativeiro não necessariamente será positiva para a vida livre”, diz. Segundo a pesquisadora, esse é mais um motivo que reforça a importância de renovar os perfis genéticos e integrar indivíduos de vida livre às populações ex-situ.
Imagem acima: Mico-leão-preto comendo fruto.Crédito: Mariana Breziski