Os desafios de adaptação às mudanças climáticas têm forçado setores do agronegócio brasileiro a optarem por uma abordagem pragmática, mas um tanto ambígua. Em suas atividades cotidianas, integrantes desse segmento, assim como todos os produtores, precisam adaptar o manejo de sua produção conforme o cenário climático. Até para ter acesso a certos financiamentos, à contratação de alguns tipos de seguro rural ou à inserção em determinadas políticas públicas, o agricultor precisa se submeter a uma análise prévia dos riscos de eventos meteorológicos que possam afetar suas culturas.
Porém, quando se trata de convidar palestrantes e conferencistas para se apresentarem em eventos importantes do setor, ou encomendar análises meteorológicas que sirvam para orientar produtores no futuro próximo, alguns segmentos do agro dão preferência a estudiosos que sustentam que não há qualquer contribuição humana para as mudanças climáticas. Dentre estes, há quem sugira que o que estamos assistindo são etapas de um ciclo climático natural; não haveria motivos para se preocupar com fatores como o aumento de temperatura no longo prazo, uma vez que o clima se resolverá sem necessidade de ação humana.
Há bons motivos para uma abordagem pragmática quando se trata de clima e produção agrícola. Segundo dados da Confederação Nacional das Seguradoras (CNSeg), os impactos climáticos do El Niño, e as quebras de safra associadas a ele, estiveram entre as principais causas que levaram a uma alta de 19,1% no pagamento de indenizações do seguro rural no primeiro bimestre de 2024. Já em março deste ano, durante a divulgação do resultado do Produto Interno Bruto brasileiro para o ano passado, o IBGE mencionou as questões climáticas como determinantes para a queda de 3,2% do setor agropecuário, em relação a 2023. “Efeitos climáticos adversos impactaram várias culturas importantes, ocasionando quedas em suas estimativas anuais de produção, com destaque para a soja (-4,6%) e o milho (-12,5%)”, afirmava a nota apresentada pelo IBGE que divulgou os resultados.
Atentos a este quadro, gestores públicos de âmbito federal e estadual, além de empresas de financiamento e seguro, têm desenhado políticas públicas e ferramentas específicas, a fim de equipá-los para preservar sua produção diante da crescente imprevisibilidade do clima.
Zoneamento agrícola de risco climático
Atualmente, um dos principais instrumentos para apoiar o agricultor na mitigação do risco de eventos meteorológicos adversos é o Zarc (Zoneamento Agrícola de Risco Climático). Criado em 1996, o Zarc é um estudo agrometeorológico que cobre todo o território nacional e fornece informações que orientam o produtor sobre o melhor local e época do ano para plantio. Inicialmente projetado para a produção do trigo, o Zarc contempla hoje mais de 40 culturas, com indicação dos cultivares mais propícios para o plantio em cada município brasileiro.
Depois que o Zarc foi criado, o atendimento às suas orientações tornou-se um requisito obrigatório para que produtores possam aderir ao ProAgro (Programa de Garantia da Atividade Agropecuária), uma política que garante o pagamento de financiamento agrícola a pequenos e médios produtores que tenham sua produção prejudicada por eventos climáticos adversos, pragas ou doenças. A exigência revelou-se uma estratégia de sucesso: segundo a Embrapa, a obrigatoriedade do Zarc conseguiu reduzir as perdas do programa em 70%.
Com o passar do tempo, o Zarc tornou-se requisito para um número crescente de programas de aquisição de crédito, e para contratação e subvenção de seguro rural. Em 2004, quando foi criado o ProAgro Mais, um irmão do ProAgro voltado aos pequenos produtores, o Zarc também passou a ser exigido como pré-requisito para a adesão ao programa. “Inicialmente, o Zarc foi estabelecido pelo governo federal para garantir a oferta de alimentos. Mas, nos últimos 20 anos, esse instrumento começou a ganhar cada vez mais importância nas políticas públicas por conta da recorrência dos eventos climáticos adversos”, explica o agrônomo Marcelo Marques de Magalhães, docente da Faculdade de Ciências e Engenharia da Unesp, câmpus de Tupã, e especialista em economia agrária
Para o ano 2025/2026, o Plano Safra trouxe como uma das suas principais novidades a ampliação da exigência do Zarc para a assinatura de contratos de créditos de custeio superiores a R$ 200 mil. Até então, este condicionante estava restrito apenas a contratos inferiores a esse valor. Atualmente, a Embrapa dirige um projeto piloto entre produtores de soja no Paraná chamado Zarc Níveis de Manejo (Zarc NM), que pretende tornar o instrumento ainda mais sofisticado, incluindo práticas de manejo que melhorem o armazenamento, a recarga e a distribuição de água no solo, contribuindo na adaptação aos riscos climáticos.
Para Magalhães, que é professor do Departamento de Gestão, Desenvolvimento e Tecnologia, o Zarc surgiu como um recurso para ajudar a proteger o pequeno produtor, mas acabou evoluindo junto com o agronegócio brasileiro, e colaborando de forma efetiva para o seu sucesso. “Hoje, o Zarc parece começar a desempenhar um papel mais interessante, e a incluir entre as suas atribuições o fomento a atividades que atuem na mitigação de riscos climáticos”, diz.
Seguros privados indenizam falta de chuva sem burocracia
O atendimento ao Zarc também é requisito para a participação no Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR), política criada em 2005 em que o governo arca com parte do custo das apólices, tornando a contratação de seguro mais acessível ao produtor. “Podemos dizer que o Zarc é uma espécie de passaporte. Sem ele, você não consegue o seguro rural”, diz o economista Omar Sabbag, que é docente da Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira (FEIS), e especialista em agronegócio.
Sabbag explica que o setor de seguros privados voltados ao agronegócio já está buscando se adaptar às mudanças no clima. Entre as tendências está o crescimento do seguro paramétrico, uma modalidade de seguro privado em que o pagamento da indenização ocorre imediatamente quando determinada métrica meteorológica previamente estabelecida em contrato é atingida.
Segundo o economista, essa opção tem crescido entre produtores de commodities como soja, milho e cana, e costuma ser baseado principalmente em dados pluviométricos do local no qual uma cultura é produzida. Ou seja, se em determinada região a chuva fica abaixo da média histórica, o produtor é imediatamente indenizado, sem precisar de vistas de peritos, vistorias e outras burocracias para receber o dinheiro.
Para o produtor, o seguro paramétrico pode ser conveniente porque agiliza o processo e ajuda a evitar perdas ainda maiores até a chegada de um perito à fazenda. “Imagina um produtor que sofre com uma enchente ter que esperar 48 horas a chegada da vistoria antes de tentar salvar o restante da sua produção”, destaca o docente do câmpus da Unesp em Ilha Solteira. “Do ponto de vista da seguradora, esse tipo de tecnologia está sendo incorporada porque reduz o capital humano e diminui os custos do processo”, aponta Sabbag, que é especialista na análise de investimentos e riscos de empreendimentos no agronegócio.
Em comparação com outros países, diz o docente, a produção agrícola brasileira ainda é pouco segurada.Entre os motivos estão a falta de acesso à informação e as dificuldades em acessar instrumentos de crédito, principalmente pelos pequenos produtores. “Alguns produtores com mais recursos conhecem a série histórica do clima da sua região e sabem que seu maior risco é a disponibilidade hídrica, então optam por fazer um investimento em um bom sistema de irrigação ao invés de contratar um seguro”, diz Sabbag.
Programas apoiam irrigação contra escassez de água
Embora a estiagem não seja o único evento climático extremo que oferece risco à produção agrícola, episódios recentes parecem ter despertado a atenção dos gestores públicos para essa ameaça. Um indicativo dessa percepção é a criação, nos últimos meses, de políticas públicas em âmbito federal e estadual que oferecem incentivos para o desenvolvimento de projetos de irrigação. O Plano Safra 2025/2026 voltado para a agricultura familiar oferece linhas de crédito a juros abaixo do mercado dentro do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), para o desenvolvimento de projetos de irrigação por energia solar e práticas de adaptação às mudanças climáticas.
Os extremos climáticos também foram mencionados pelo secretário de Agricultura do Estado de São Paulo, Guilherme Piai, que lançou, no final do ano passado, o programa Irriga + SP, outra iniciativa que busca fomentar a irrigação sustentável por meio da oferta de juros baixos. “Os efeitos das mudanças climáticas estão cada vez mais fortes, e São Paulo passou por uma seca muito forte. Mas quem tem sua lavoura irrigada, tem sua produção garantida”, destacou Piai durante o lançamento do programa.
Agrônomo e especialista na área de irrigação e drenagem, Fernando Tangerino explica que a intensidade e a duração da estiagem, somadas ao calor acima do normal observado no interior do estado durante 2024, foram extremamente prejudiciais para o campo. “A região do noroeste paulista bateu o recorde de seca e de queimadas no estado. Alguns municípios ficaram mais de 200 dias sem chuva”, diz Tangerino, que é docente da Faculdade de Engenharia da Unesp, câmpus de Ilha Solteira.
Apesar do clima desafiador observado no ano passado, Tangerino destaca que a média de 1.200 mm de chuva anual no estado deveria ser suficiente para abastecer a produção rural paulista. “A questão é que é necessário armazenar essa água. Precisamos represar esse volume na bacia hidrográfica para podermos usar a água no período em que não chove. Se a chuva fosse distribuída de forma uniforme ao longo do ano, não teríamos problemas, mas ela se concentra, principalmente, no período entre novembro e fevereiro”, diz o docente.
O estado de São Paulo, ainda que esteja entre os principais atores da produção agropecuária brasileira, possui apenas 6% de sua área agrícola irrigada. Tangerino explica que, dessa porcentagem, aproximadamente 250 mil hectares são abastecidos com estruturas de pivôs centrais. Outros 200 mil hectares empregam diferentes sistemas, como gotejamento ou microaspersão. A meta do governo paulista com o programa é ampliar a área irrigada para 15% até 2030.
A distribuição irregular das chuvas ao longo do ano, somada aos crescentes episódios de extremos climáticos que colaboram na evapotranspiração — como estiagens e ondas de calor — reforça a importância de políticas de estímulo ao desenvolvimento de projetos de irrigação. “O tripé capacitação, planejamento e investimento é o que vai trazer ao produtor resiliência aos extremos climáticos”, diz Tangerino.
Discursos negacionistas ainda encontram aceitação
A posição de que há um processo de mudança climática, e que as atividades humanas contribuem diretamente para esse quadro, é dominante. Um levantamento publicado em 2009 na revista PNAS, com mais de 1.300 climatologistas, já mostrava que, à época, essa perspectiva era sustentada por 98% dos entrevistados. Apesar do acúmulo de evidências, em anos recentes, de que os extremos climáticos estão se tornando mais frequentes e de que a temperatura global está se elevando, alguns setores do agronegócio ainda privilegiam visões e narrativas que relativizam ou simplesmente negam esse processo.
Uma presença frequente em palestras e eventos organizados por entidades do agronegócio é a do meteorologista aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Luiz Carlos Molion. Entre previsões meteorológicas e orientações aos produtores, Molion afirma que o aquecimento global é uma grande mentira, não é causado pelo homem e que o Brasil deve ser contra o Acordo de Paris, que propõe a redução das emissões de CO₂. Outro nome recorrente em conteúdos que contestam o efeito humano sobre a alteração do clima é o meteorologista Ricardo Felício, ex-professor da USP. Sob o argumento de apresentar uma visão divergente ou de “levar um contraponto” ao consenso científico, Felício tornou-se fonte de informações para veículos focados em notícias do setor agropecuário. Em 2023, o professor foi desligado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, à qual era vinculado, por ter se recusado a dar aulas durante a pandemia, que afirmava ser uma farsa.
A postura negacionista de setores do agronegócio em relação ao aquecimento global também tem se manifestado de forma incisiva na representação política do setor. Em abril de 2024, por exemplo, o deputado federal Giovani Cherini (RS), membro da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), sugeriu, em fala durante a sessão da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, o convite de “especialistas que podem contribuir muito para esclarecer qual o interesse que há por trás de terremotos, vendavais e essa farsa chamada aquecimento global”.
Outros segmentos do agronegócio, porém, estão apoiando e investindo em pesquisas e adotando novas estratégias de manejo para tornar a produção mais resiliente, diante da nova realidade climática. Nos laboratórios, universidades e centros de pesquisa, cientistas investigam, por exemplo, o desenvolvimento de cultivares que sejam mais resistentes ao estresse hídrico, bem como o uso de microrganismos que promovam o crescimento das raízes que vão ajudar a planta a enfrentar períodos de seca e projetam cenários climáticos futuros com o uso de ferramentas de inteligência artificial. No campo, a adoção do plantio direto, a cobertura do solo com palhada e adoção de sistemas de irrigação são alguns exemplos de práticas de manejo que ajudam a promover e reter umidade no solo. Além disso, a rotação de culturas e a integração lavoura-pecuária-floresta são outros exemplos de práticas que ajudam na redução da emissão de carbono na agricultura e pecuária.
Em entrevista ao podcast Prato do Dia, da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp, Omar Sabbag enumerou algumas destas iniciativas, e fez questão de ressaltar a busca de segmentos do agronegócio por práticas e modelos de produção que sejam mais sustentáveis.
“O agro está em constante evolução e não é perfeito. Mas nenhum setor produtivo é”, disse durante a entrevista. “Problemas existem sim, mas é preciso acabar com alguns mitos sobre o agronegócio.”