PL do Licenciamento Ambiental perde oportunidade de aperfeiçoar legislação do setor e pode gerar efeitos nocivos, analisa docente da Unesp

Denise Pizella reconhece morosidade do processo atual, mas cita riscos caso nova lei seja aprovada integralmente pelo poder executivo. Possíveis problemas incluem competição entre estados, aumento da judicialização e desmonte da estrutura de proteção ambiental.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem até a próxima sexta-feira, dia 8, para se posicionar de forma definitiva diante de uma das mais acirradas controvérsias que marcam esta sua terceira passagem pelo poder federal. Trata-se do Projeto de Lei nº 2159/21, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados literalmente “na calada da noite”, na madrugada do dia 17 de julho, pouco antes do início do recesso parlamentar. O texto estabelece novas regras para o licenciamento ambiental no Brasil e, há anos, é objeto de críticas intensas por parte de ambientalistas e representantes da comunidade científica. Lula deverá optar entre o veto total da proposta, o veto parcial, restrito a alguns trechos da nova lei, ou a sanção, sem alterações às deliberações dos congressistas.

Qualquer que seja a decisão, haverá uma forte insatisfação. O projeto conta com o apoio de entidades representativas do setor produtivo. Elas sustentam que a atual legislação é fragmentada e torna o processo de avaliação burocrático e permeado por inseguranças jurídicas, atrasando o andamento dos empreendimentos e prejudicando o desenvolvimento econômico do país. Entre os defensores estão entidades como a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), que enviou um ofício ao presidente pedindo a sanção sem vetos ao texto. Os deputados defensores do projeto destacaram a necessidade de se aprimorar e simplificar as normas de licenciamento ambiental no país.

Para os críticos, a aprovação do projeto de lei foi vista com imensa preocupação, por usar a necessidade de celeridade na implantação de projetos de interesse econômico do país para promover o desmonte de um dos principais instrumentos da política ambiental brasileira.

A bióloga Denise Gallo Pizella estuda a questão do licenciamento ambiental no país e defende um olhar mais detalhado para um tema altamente complexo. Docente do Departamento de Biologia e Zootecnia (DBZ) da Unesp, no câmpus de Ilha Solteira, foi vice-diretora do Setor Acadêmico da Associação Brasileira de Avaliação de Impactos (ABAI) entre 2021 e 2023.

Versão final ignorou sugestões dos especialistas

Pizella diz que o projeto aprovado na véspera do recesso parlamentar passou ao largo das sugestões apresentadas pelos especialistas da área. “Diversas associações e ONGs levaram suas contribuições aos deputados, mas elas não foram ouvidas”, diz. A própria entidade da qual Pizella faz parte — que reúne organizações públicas e privadas, entidades da sociedade civil, profissionais e estudantes da área — acompanhou a tramitação do texto, inclusive apresentando sugestões por meio de notas técnicas com análises e propostas para o texto. Embora a professora esteja no grupo que se opõe ao texto final aprovado na Câmara dos Deputados, ela concorda que o processo de licenciamento pode ser moroso em alguns casos e que é possível tornar as legislações mais homogêneas

Como exemplo de ponto importante da atual legislação que pode ser aperfeiçoado, ela cita a unificação de normas distintas que vigem em diferentes estados, de forma que empreendimentos comuns demandem os mesmos tipos de estudos de impacto, independentemente do local em que serão implementados. “Essa é uma questão que pesquisadores e acadêmicos debatem há algum tempo. É preciso cuidado, porque entendemos que os estados precisam ter uma certa independência em relação a esse ponto, de forma a considerar as particularidades ambientais de cada local”, diz. “Licenciar uma pequena central hidrelétrica (PCH) na Amazônia é diferente de licenciar uma PCH em São Paulo. Por isso, existe a dificuldade de caminhar com uma proposta fechada.”

Nesse sentido, Pizella critica a proposta aprovada na Câmara, porque o texto, em vez de mirar uma unificação da legislação, prefere dinamizar o processo de licenciamento por meio da isenção dos empreendimentos da necessidade de apresentar os devidos estudos de impacto e do autolicenciamento.

A professora cita, por exemplo, a criação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), um sistema em que o próprio empreendedor fornece as informações e obtém a licença, utilizando-se de um termo de autocompromisso. Da mesma forma, o PL delega a municípios e estados o licenciamento de pequenos e médios empreendimentos, o que amplia a fragmentação das normas. Anteriormente, essa isenção estava restrita aos pequenos projetos. Barragens de rejeitos da mineração, por exemplo, costumam ser enquadradas como empreendimentos de médio impacto.

Risco de acirrar competição entre estados

Com atuação acadêmica na área de avaliação de impactos ambientais e democratização da gestão ambiental, Pizella entende que delegar a estados e municípios a definição sobre o que é um empreendimento de pequeno e médio porte pode trazer outros efeitos nocivos. “Os estados podem flexibilizar as normas ambientais no âmbito local como forma de estimular a atração de empreendimentos e investimentos, gerando uma concorrência”, afirma a professora. Uma forma parecida de competição entre estados já ocorre em relação à cobrança de impostos, situação que costuma ser chamada de “guerra fiscal”.

Outro ponto de consonância entre apoiadores e críticos do PL nº 2159/21 diz respeito à demora no processo de licenciamento ambiental. De fato, existe uma lista de grandes empreendimentos obrigatoriamente sujeitos ao Estudo de Impacto Ambiental e ao Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), e que, segundo a docente da Unesp, demandam uma avaliação aprofundada em virtude de sua complexidade e potencial de dano. Entretanto, Pizella afirma que, muitas vezes, o estudo apresentado é mal feito ou incompleto, o que implica na devolução do processo ao empreendedor para correção e acréscimo de informações, resultando em ainda mais demora no licenciamento.

Ainda assim, o principal problema apontado pelos especialistas para a morosidade do processo de licenciamento é o baixo número de analistas nos órgãos para a crescente demanda por licenciamentos. Um levantamento recente do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que desde 2015, a quantidade de pedidos de licenciamento feitos ao Ibama triplicou (de 1.295 para 4.140 processos), enquanto o número de analistas responsáveis pela avaliação dos estudos reduziu em um terço (de 453 para 297). Entre os principais motivos para a queda de funcionários está a aposentadoria e falta de reposição dos servidores inativos.

Segundo a professora do câmpus de Ilha Solteira, o cenário de falta de profissionais é ainda pior nos órgãos estaduais. Atualmente, Pizella orienta um projeto de pesquisa que trata da municipalização do licenciamento ambiental no Mato Grosso do Sul e um dos pontos levantados nas entrevistas é a dificuldade de fiscalização de empreendimentos tendo em vista a equipe reduzida. “Claro que quando falamos de licenciamento ambiental, estamos falando principalmente de analistas que vão avaliar os estudos, mas não deixa de ser revelador do quanto esses órgãos precisam ampliar os seus quadros”, afirma.

Uma preocupação levantada pela professora de Ilha Solteira envolve o modo como a aprovação do PL 2159/21 pode afetar outras leis que de alguma forma estão imbricadas à legislação do licenciamento ambiental, como a Lei de Crimes Ambientais ou a Lei das Águas, que estabelece a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). “Hoje em dia, um empreendimento precisa de licença ambiental para ter a outorga para o uso da água. Como ficaria a partir de agora? O licenciamento é uma proteção maior e serve de base para outras legislações”, questiona.

Pizella se opõe à ideia, propagada por representantes políticos, de que o instrumento do licenciamento ambiental atrapalhe o desenvolvimento do país. Desde que as primeiras medidas foram criadas nos Estados Unidos, ainda nos anos 1960, a ideia norteadora foi a de conciliar o desenvolvimento econômico com a proteção do meio ambiente e da saúde humana. “Nos queixamos da burocracia, e algumas vezes com razão. Mas, muitas vezes esquecemos que é essa burocracia que nos protege. É por ela que temos nossos direitos na constituição atendidos, por exemplo”, diz.

Imagem acima: construção da usina Hidrelétrica Belo Monte, em Altamira (PA), foi intensamente criticada pelos impactos ambientais na região. Crédito: Wikipedia.