Pesquisa pioneira com participação de docentes da Unesp pode explicar estranha estrutura de Mercúrio

Estudo publicado em Nature Astronomy mostrou que cenário de colisão entre corpos celestes é capaz de reproduzir características singulares do menor planeta do Sistema Solar.

Há 4,6 bilhões de anos, uma densa nuvem de gás e poeira era tudo o que existia onde hoje está o nosso Sistema Solar. Em algum momento, essa nuvem colapsou, provavelmente devido a uma onda de choque da explosão de uma estrela próxima e, quando isso ocorreu, formou-se uma nebulosa solar – um disco giratório e espiralado de material. Com as forças gravitacionais em jogo, o centro do disco atraiu e aglutinou cada vez mais material, originando o astro-rei: o Sol. A matéria que restou, agora orbitando o Sol, também passou a se aglutinar e a se chocar, formando outros objetos que compõem nossa vizinhança espacial: planetas, luas, asteroides, cometas e outros menos conhecidos.

Embora essa história principal já tenha sido desvendada, as especificidades que envolvem a formação de cada planeta ainda preservam mistérios. No caso dos quatro planetas que estão classificados na categoria dos rochosos – Mercúrio, Vênus, Terra e Marte –, é Mercúrio aquele cujo surgimento ainda é menos compreendido. O menor planeta do Sistema Solar, e também o mais próximo do Sol, apresenta características de composição química e estrutura interna singulares quando comparado aos demais rochosos.

Em especial, chama atenção o fato de que cerca de 70% de sua massa corresponde ao seu núcleo metálico. Nos demais rochosos, os núcleos equivalem a algo entre 30% e 50% da massa total. Isso significa que seu manto rochoso, que é a camada geológica que recobre o núcleo, é desproporcionalmente menor em relação ao que vemos na Terra ou em Marte. Mais do que isso, parece que parte desse manto simplesmente se perdeu em algum momento da sua história. O modo como isso aconteceu, entretanto, ainda é uma questão em aberto.

Em um estudo recente, publicado nesta sexta-feira (27) na revista científica Nature Astronomy, um grupo de pesquisadores da Unesp, do Observatório Nacional, da Universidade de Paris e da Universidade de Tübingen, na Alemanha, combinou um conjunto de técnicas de simulações para testar hipóteses sobre a formação do astro. E, na contramão das ideias mais difundidas, que estipulam que Mercúrio teria surgido a partir da colisão de dois objetos de tamanhos muito diferentes, o novo artigo, intitulado Formation of Mercury by a grazing giant collision involving similar-mass bodies, sustenta que sua formação pode ter decorrido da colisão de objetos de tamanho similar.

Após meses de simulações, os pesquisadores chegaram a uma hipótese capaz de propor respostas aos mistérios que envolvem Mercúrio: o pequeno planeta pode ter adquirido sua configuração atual após uma colisão lenta com outro corpo celeste. Nos momentos finais da formação planetária, este corpo teria passado de raspão por sua superfície e provocado a expulsão de boa parte do manto que envolvia seu núcleo. Segundo os autores, esse tipo de encontro era mais comum durante o período de formação do Sistema Solar. Além disso, o cenário proposto não depende de condições muito específicas — como órbitas extremamente excêntricas ou tamanhos exatos dos corpos envolvidos —, o que o torna mais plausível e com maiores chances de ter realmente ocorrido.

O problema de Mercúrio

Muitas são as hipóteses sobre a formação de Mercúrio. Em comum, todas postulam, no passado, uma configuração com características diferentes das que observamos hoje. “Os modelos indicam a possibilidade de que existisse anteriormente um proto-Mercúrio. Seria o Mercúrio original, com um manto maior e com proporções mais parecidas às dos demais planetas rochosos”, diz Rafael Sfair, um dos autores do artigo e docente da Faculdade de Engenharia e Ciências da Unesp, câmpus Guaratinguetá.

Em algum momento após a formação do proto-Mercúrio, algum evento resultou na perda de boa parte do seu manto, resultando na configuração atual. O mistério está justamente em determinar o tipo de evento que causou a mudança. Algumas hipóteses apontam para a possibilidade de um choque, em alta velocidade, entre o proto-Mercúrio e outro objeto muito maior. “A possibilidade de um evento assim mostrou-se rara e exigiria condições extremas, pouco prováveis”, afirma o primeiro autor do artigo, Patrick Franco, que cursou a graduação e o mestrado na Unesp e atualmente realiza seu pós-doutorado no Instituto de Física do Globo de Paris, na França.

Outra hipótese é a de que múltiplas colisões seriam necessárias para que o planeta chegasse à composição atual. Por fim, uma terceira via apontava para uma colisão entre o proto-Mercúrio e um objeto de tamanho parecido. “Consideramos esse cenário mais plausível porque modelos de formação do Sistema Solar mostram que havia maior probabilidade de existirem corpos de tamanho similar colidindo. Quisemos verificar se isso seria possível para Mercúrio”, explica Sfair.

Métodos computacionais para descobrir a história do planeta

Para avaliar a hipótese, o grupo combinou duas técnicas de simulação distintas. A primeira, conhecida como N-corpos (ou N-body, em inglês), é amplamente utilizada na astrofísica porque permite simular o comportamento de objetos espaciais que estão sob influência de forças físicas, como a gravidade, ao longo de bilhões de anos. Para isso, a simulação trata os objetos estudados como partículas, ou seja, meros pontos no espaço, e calcula, ao longo do tempo, o modo como seu comportamento e movimentação são afetados e alterados pelas forças que interagem sobre eles.

“Esse tipo de simulação funciona muito bem porque permite observar o comportamento de vários corpos do Sistema Solar por um longo período de tempo”, explica Sfair. Por outro lado, para possibilitar o processamento de tantas informações, ao longo de períodos tão extensos, as simulações de N-corpos simplificam os objetos e desconsideram aspectos como a composição dos planetas e asteroides simulados. Essa abordagem limita o tipo de informação obtida: é possível saber quando a colisão pode ter ocorrido, mas não o possível resultado de tal impacto.

“Vamos supor que a colisão envolva dois planetas. Existem diferenças se acontece um impacto entre um planeta de gelo e um planeta gasoso, ou entre um planeta de gelo e um planeta rochoso”, diz Sfair. “Se o material é de gelo, por exemplo, ele vai derreter, compactar. Nas simulações de N-corpos, nada disso é levado em consideração”, explica.

Para lidar com essa brecha de informação, os pesquisadores também utilizaram outro método computacional, chamado Hidrodinâmica de Partículas Suavizadas (do inglês, Smoothed Particles Hydrodynamics, ou SPH). Ao contrário das simulações de N-corpos, que lidam com muitos objetos ao longo de um longo intervalo de tempo, o SPH considera a interação entre menos objetos e durante um período mais curto — geralmente, apenas algumas horas. Porém, o método leva em conta as propriedades dos objetos simulados e permite descobrir qual foi o resultado dos impactos. “Com este método, podemos considerar se o material é poroso, se ele vai compactar, se vai expandir, se vai voltar a ser esférico… Tudo isso é levado em conta”, diz Sfair.

O esforço computacional envolvido no estudo não foi simples. Além da combinação dos dois métodos, que demandam equações específicas para cada um, o processamento dessas informações é extremamente pesado. Algumas das simulações executadas pelo grupo levaram até seis meses para serem concluídas, desde o momento da inserção das variáveis iniciais até que o modelo estivesse pronto em mãos.

Um encontro lento

Em resumo, o que o grupo buscava responder era se uma única colisão entre o proto-Mercúrio e outro corpo de proporções semelhantes seria suficiente para eliminar grande parte de seu manto, resultando na configuração atual do planeta. Para testar a hipótese, nas simulações os pesquisadores variaram a velocidade dos planetas, o ângulo do impacto e a massa do objeto que iria colidir com o proto-Mercúrio. Seria preciso um impacto rápido? O choque ocorreria frontalmente entre os dois corpos ou seria de raspão? Os cientistas sabiam que o proto-Mercúrio deveria ser maior do que o Mercúrio atual — mas quanto?

Cada uma dessas questões criou situações de teste diferentes, voltadas a simular a combinação de características que tornasse possível o cenário de formação que os pesquisadores buscavam. Ou, até mesmo, a constatação de que um choque entre dois corpos de tamanhos similares não explicaria a constituição de Mercúrio. Porém, após meses de trabalho computacional e modelos considerando diferentes valores, os pesquisadores conseguiram encontrar um cenário no qual isso seria possível.

“Conseguimos demonstrar que uma colisão do tipo hit-and-run, ou seja, de raspão, entre dois protoplanetas com massas semelhantes resulta em um planeta com características similares às de Mercúrio hoje”, diz Franco. O cenário em que isso ocorre envolve um impacto de raspão suave, com velocidade de 22,3 quilômetros por segundo. “Isso está alinhado com outros modelos de formação do Sistema Solar, que demonstram que colisões rápidas eram eventos muito raros”, diz Sfair.

O encontro teria ocorrido entre o proto-Mercúrio — que, na época, possuía cerca de 13% da massa da Terra (ou 0,13 massas terrestres) — e outro protoplaneta, com aproximadamente 0,2 massas terrestres. Esse corpo maior teria passado de raspão pelo proto-Mercúrio, em uma colisão lenta, removendo grande parte de seu manto ao longo de 35 horas. Parte do material ejetado foi perdido, enquanto uma fração das partículas restantes acabou sendo reabsorvida por Mercúrio. Após esse evento, o planeta passou a apresentar a estrutura que conhecemos atualmente.

“O estudo também permitiu estimar que essa colisão ocorreu, provavelmente, nas primeiras dezenas de milhões de anos da fase final da formação planetária, e a uma distância do Sol estimada entre 0,5 e 1,0 unidade astronômica”, diz Franco. Atualmente, Mercúrio dista apenas 0,39 UA da nossa estrela, o equivalente a 58 milhões de quilômetros.

Naquele período e naquela região do Sistema Solar — aproximadamente a mesma em que a Terra se encontra hoje — os planetas ainda estavam em processo de formação. O disco de matéria que gravitava ao redor do Sol abrigava diversos tipos de objetos e “embriões” de planetas. Esse cenário permitia que colisões entre esses corpos fossem algo relativamente comum.

Segundo Franco, a partir dos resultados obtidos por esta primeira investigação, o grupo pretende aprofundar o estudo e descobrir o que pode ter acontecido após o possível impacto — tanto com Mercúrio quanto com o material que foi arrancado de seu manto.

A pesquisa surge em um momento em que os estudos sobre a formação do Sistema Solar ganham novo fôlego, dadas as descobertas de outros sistemas planetários completamente diferentes. Um exemplo são sistemas que contam com gigantes gasosos (como Júpiter, Urano e Netuno) muito próximos de sua estrela — algo que, por muito tempo, foi considerado impossível.

“Estamos em uma etapa de revisão de todas as teorias de formação planetária. A descoberta de alguns exoplanetas nos mostrou que ainda há muito para ser estudado. Se ainda não entendemos profundamente o processo de formação do nosso próprio sistema, como vamos explicar outros completamente diferentes?”, questiona Sfair. “Estudar o que acontece com Mercúrio também traz mais informações para entendermos como a Terra se formou, como se deu a formação da Lua e também para entendermos outros sistemas de exoplanetas”, diz.

Imagem acima: Composição com uma imagem das cores reais de Mercúrio (esquerda) com uma fotografia registrada pela missão MESSENGER da Nasa (direita), na qual diferentes cores foram combinadas para distinguir os minerais na superfície do planeta. CréditoNASA/Johns Hopkins University Applied Physics Laboratory/Carnegie Institution of Washington