Brasil tem possibilidades reais de zerar balanço de emissões até 2050, analisa pesquisador da Unesp

Estudos sugerem que cessação do desmatamento, combinada com produção agrícola sustentável e que promova reflorestamento de áreas, poderá reduzir liberação de gases de efeito estufa e impulsionar sequestro de carbono. Brasil se comprometeu a alcançar neutralidade climática em conformidade com Acordo de Paris.

O termo “neutralidade climática indica um quadro em que as emissões de gases de efeito estufa (GEE) de uma nação são totalmente compensadas pelas ações de remoção desses mesmos gases da atmosfera, seja por meios naturais ou por intervenções humanas. Alcançar a neutralidade climática até 2050 é uma das metas do Acordo de Paris, firmado em 2015, e um objetivo publicamente enunciado pelo governo brasileiro. Durante a COP 29, em novembro passado, o governo anunciou uma nova Contribuição Nacionalmente Determinada, em que nos comprometemos a alcançar, até 2035, uma redução de até 67% em nossas emissões, em comparação com os números de 2005. Cumprir esta meta abriria caminho para alcançarmos a neutralidade climática até 2050. Mas será que esse objetivo é realmente factível em uma realidade ambiental complexa como a brasileira?

O físico Newton La Scala diz que há bons motivos para pensar que sim, é possível. Docente da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, no câmpus de Jaboticabal, há quase três décadas investiga a dinâmica do carbono entre o solo, a biomassa e a atmosfera terrestre. O tema é de grande importância nas Ciências Agrárias por se relacionar com aspectos essenciais da produção agrícola, como a fertilidade do solo e sua capacidade de reter água. Nos últimos tempos, entretanto, o entendimento do ciclo do carbono vem ganhando transversalidade entre diversas áreas do conhecimento, principalmente pela capacidade do dióxido de carbono (CO₂) de aquecer a atmosfera terrestre, colaborando, em última instância, para as mudanças climáticas.

No último ano, La Scala passou a cuidar também da organização do Escritório de Sustentabilidade da Unesp, uma estrutura inédita que, entre suas primeiras iniciativas, planeja realizar o primeiro inventário de gases de efeito estufa da Universidade. Nesta entrevista para o Jornal da Unesp, o pesquisador analisa o perfil das emissões dos GEE do Brasil e discute os caminhos possíveis para que o país consiga cumprir suas metas de redução e zere o balanço de emissões até 2050.

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No final do ano passado, o Brasil se comprometeu com a redução de suas emissões líquidas de gases de efeito estufa entre 59% e 67% até 2035. O que é preciso fazer para alcançar essa meta?

Newton La Scala: A medida número um é zerar o desmatamento por completo, para reduzir nossas emissões pela metade, e promover o reflorestamento do Brasil. Com essas medidas, tentaremos, pelo menos, mitigar uma boa parte dessas emissões. Lógico que é desejável evoluirmos no aspecto da eficiência energética, mas as duas coisas devem acontecer em conjunto. Quando analisamos o perfil das emissões do Brasil, fica claro que é fundamental, em primeiro lugar, reduzir o desmatamento. Essa é a lição de casa que temos que fazer.

Cessar o desmatamento por completo não soa utópico?

Newton La Scala: Já ocorreu no passado uma grande diminuição do desmatamento. Entre 2005 e 2012, o Brasil reduziu enormemente as emissões associadas ao desmatamento. Houve um esforço do Governo Federal, que envolveu instituições como o INPE, em ações de monitoramento e de policiamento, além de acordos com os maiores distribuidores de carne do Brasil. Eles pararam de comprar carne produzida em certas áreas em que o desmatamento era considerado crítico. No ano de 2010, nossas emissões por mudança no uso da terra, ou seja, por desmatamento, equivaliam à metade do que foi medido em 2022. O modo como o Brasil reduziu o desmatamento na Amazônia naquela época é um caso conhecido no mundo todo. Esse esforço precisa ser articulado novamente.

O modo como o Brasil reduziu o desmatamento na Amazônia naquela época é um caso conhecido no mundo todo. Esse esforço precisa ser articulado novamente.

Qual é o perfil das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, em comparação com o resto do mundo? E quais são os desafios do país para caminhar em direção ao balanço neutro de emissões?

Newton La Scala: As emissões mundiais estão próximas de 62 bilhões de toneladas de gás carbônico equivalente (tCO₂e) ao ano. Dividindo-se esse total por 8 bilhões, que é aproximadamente a população do planeta, chegamos a cerca de 7,5 tCO₂e per capita por ano. Três quartos dessa emissão no mundo estão relacionadas à queima de combustíveis fósseis e ao uso de carvão e petróleo, principalmente.

Aproximadamente metade desses 62 bilhões tCO₂e fica acumulada na atmosfera. A outra metade é absorvida pelos oceanos e pela vegetação terrestre, com alguma variação de ano para ano. Isso quer dizer que não existe área disponível para plantio na Terra que consiga absorver esse volume adicionado anualmente à atmosfera, ou que se encaminha para os oceanos. O que precisamos é reduzir drasticamente a queima de combustível fóssil.

No Brasil, as emissões em 2023 ficaram entre 2,5 bilhões e 3 bilhões tCO₂e, a depender da base do inventário consultado. Metade desse total é causada pelo desmatamento. Neste ano, observamos uma queda de 30% no desmatamento. Isso é uma notícia ótima: se o desmatamento responde por metade das emissões do país, uma queda de 30% corresponde a uma diminuição de cerca de 300 milhões tCO₂e. Esse é um número bastante significativo e deve causar uma variação no próximo inventário nacional.

Além disso, um quarto das nossas emissões está associado à atividade agropecuária, a fatores como a fermentação entérica dos bois, o uso de fertilizantes sintéticos nitrogenados e à calagem (aplicação de calcário ao solo para corrigir a acidez). Depois, temos os demais setores, como o setor de energia, que inclui toda a parte de eletricidade e de transportes. E lembremos que nossa matriz energética é uma das mais limpas do mundo, nossos carros apresentam a enorme vantagem de usar o etanol, ou uma mistura de etanol com gasolina. Essa já é uma contribuição que a agricultura presta para a redução das emissões, por meio da cana-de-açúcar e do etanol, mas que é contabilizada no segmento de energia.

O que a agricultura pode fazer para mudar esse quadro?

Newton La Scala: A agricultura é um setor-chave nessa discussão, pois exerce pressão para expandir-se para novas áreas, o que, consequentemente, resulta em desmatamento. Por outro lado, ela pode fazer uma importante contribuição para o sequestro de carbono, no solo e na biomassa, se houver iniciativas de reflorestamento em fazendas. O desmatamento, por sua vez, entra no setor de mudanças no uso da terra, que é o outro setor que mais contribui para as emissões brasileiras.

O Brasil produz uma excelente ciência nesse campo, com grandes pesquisadores e grupos de pesquisa trabalhando na caracterização das emissões de Gases de Efeito Estufa e em questões relacionadas à mudança no uso da terra, ao desmatamento e ao mapeamento do uso da terra. Estou falando, em especial, das universidades públicas, da Embrapa, do INPE, e gostaria de destacar a grande contribuição dessas instituições para a formação de recursos humanos nessas áreas.

Por exemplo, temos vários ex-alunos da Unesp trabalhando em empresas que estão se dedicando àquilo que é chamado hoje de agricultura de baixo carbono ou agricultura regenerativa. Há alguns anos, esses termos nem mesmo existiam.

O desafio da agricultura é, em primeiro lugar, reduzir suas emissões e, em segundo lugar, acumular carbono no solo a partir das boas práticas de manejo. São várias alternativas que já são utilizadas no Brasil e cada vez mais aplicadas. Essas medidas visam usar menos fertilizante sintético e menos óleo diesel, que é contabilizado pelos inventários como parte da fase agrícola da produção. Outra medida é o uso do sistema de plantio direto e de outras estratégias para acumular carbono no solo, como a aplicação de plantas de cobertura. A mitigação envolve a redução das emissões, mas também o sequestro de carbono no solo. Então, medidas como estas ajudam a equilibrar o balanço de emissões do setor.

O desafio da agricultura é, em primeiro lugar, reduzir suas emissões e, em segundo lugar, acumular carbono no solo a partir das boas práticas de manejo.

Mas a agricultura enfrenta o desafio de se manter competitiva…

Newton La Scala: E tudo isso envolve a questão do aumento da produtividade e da intensificação da produção agrícola em áreas menores. A possibilidade de aumentar a produção de uma dada área, ou até de produzir o mesmo em uma área menor, diminui a necessidade de expansão da fronteira agrícola e, logo, se traduz em um desmatamento menor. Isso pode ser alcançado integrando diferentes sistemas produtivos na mesma área, como acontece nos chamados sistemas de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF). Esses sistemas geram, inclusive, alguns ganhos, como maior acúmulo de carbono no solo ou o sombreamento e conforto térmico para os animais, o que pode aumentar a produtividade do leite.

O Brasil tem uma área total de 850 milhões de hectares. O equivalente a quase um terço dessa área, aproximadamente 300 milhões de hectares, é ocupada pela agropecuária. As pastagens ocupam 165 milhões de hectares. Dessas áreas, quase 70 milhões de hectares são pastagens degradadas. Essa área de pastagem degradada já é muito grande, quase igual à área plantada de soja e milho no Brasil hoje.

Seria preciso uma estratégia para recuperar essas áreas degradadas e torná-las terras produtivas, empregando agricultura de baixo carbono, possivelmente de forma integrada com o plantio de florestas. Um manejo inteligente que aumente a produtividade e expanda o estoque de carbono, no solo e na biomassa permitirá aumentar a produção de alimentos sem que seja necessário desmatar áreas naturais, que também prestam serviços importantes, como produção de água, manutenção da biodiversidade e regulação do clima.

Um manejo inteligente que aumente a produtividade e expanda o estoque de carbono, no solo e na biomassa permitirá aumentar a produção de alimentos sem que seja necessário desmatar áreas naturais,

O senhor está à frente da criação de um escritório de sustentabilidade para a Unesp e, recentemente, proferiu a palestra de abertura de um evento que apresentou as perspectivas da Universidade para a COP30. De que forma esses temas dialogam com sua atuação acadêmica e de pesquisa na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) da Unesp, no câmpus de Jaboticabal?

Newton La Scala: A ciência das mudanças climáticas é dividida em três grandes grupos: um que estuda as bases físicas das Mudanças Climáticas, outro grupo que trabalha com impacto e adaptações às mudanças climáticas e um terceiro grupo de mitigações. A mitigação e redução de emissões, que inclui a remoção e sequestro do CO2 da atmosfera, é o grande grupo em que me insiro.

Há 28 anos, iniciei meus estudos sobre caracterização da emissão do CO2 no solo. Ou seja, investigar como as atividades e o manejo agrícola interferem na perda de carbono do solo, via CO2, para a atmosfera. Faz cerca de 15 anos, comecei outra linha de pesquisa que envolve o cálculo de inventário de emissões a partir de metodologias disponibilizadas pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) e de satélites que monitoram a concentração de CO2 na atmosfera. Ou seja, iniciei no micro e agora estou no macro, uma trajetória que me parece natural.

Hoje, ferramentas como satélites e mapeamentos de superfície nos possibilitam realizar estudos macroscópicos mais amplos. Inclusive para encontrar fontes de CO2 e sumidouros, que é o que mais me interessa nesse momento. Tenho tentado entender onde ocorrem as remoções de CO2 no Brasil: quais ambientes estão removendo mais carbono, como essas remoções se relacionam com as precipitações, como isso se distribui nos biomas brasileiros e como esses dados podem entrar no inventário brasileiro, que até pouco tempo atrás era focado apenas nas emissões de CO2.

Em nosso artigo publicado na Science of the Total Environment, no início do ano, discutimos muito a questão dos sumidouros de carbono. A pesquisa mostra que as precipitações explicam boa parte das remoções observadas no Brasil, relacionando esse fenômeno ao aumento das taxas fotossintéticas das plantas e identificando que, em alguns anos, o bioma Caatinga pode desempenhar um papel importante nessas remoções. Nossas estimativas mostram que, para que o balanço de gases de efeito estufa do nosso país atinja valores próximos de zero em um futuro próximo, será fundamental zerar o desmatamento no Brasil.

Imagem acima: fogo na Floresta amazônica na Comunidade de Campo Novo Tefé, no estado do Amazonas. Foto: Ricardo Stuckert