A história do futebol de alta performance, é marcada por inovações importantes que redefiniram o ritmo e a estratégia do esporte mais popular do planeta. As novidades abarcaram desde o aprimoramento da preparação física e a introdução da nutrição esportiva ao uso de coletes com GPS e a análise de dados por meio de IA para monitorar o desempenho dos jogadores. A bola, que já foi de couro costurado, hoje é feita com materiais sintéticos de alta precisão, e até o árbitro ganhou o auxílio do Video Assistant Referee (o famoso VAR). Porém, um aspecto do jogo cuja evolução costuma passar despercebida é o piso. Seja natural ou sintético, o gramado onde os jogos são disputados se tornou mais uma frente para desenvolvimento tecnológico – e, também, de polêmicas.
Este ano, grandes nomes do futebol brasileiro deram início a um movimento pedindo o banimento do gramado sintético dos nossos estádios. Neymar, do Santos, Lucas Moura, do São Paulo, e Thiago Silva, do Fluminense, iniciaram uma articulação nas redes sob o lema “futebol é natural, não sintético”, disparando publicações sincronizadas nas redes sociais. As postagens receberam o apoio de outros jogadores nacionais e internacionais. Entre as principais críticas levantadas, estava o fato de que, segundo eles, a chance de ocorrência de lesões graves é maior no gramado sintético.
O movimento contou com a adesão de jogadores de, pelo menos, 10 dos vinte clubes da série A, entre eles: Corinthians, São Paulo, Santos, Fluminense, Flamengo, Vasco, Cruzeiro, Inter, Juventude e Fortaleza. No último dia 26 de abril, Renato Gaúcho, atualmente técnico do Fluminense, se juntou às críticas ao responsabilizar o gramado sintético pela derrota do seu clube diante do Botafogo no sábado, dia 26.
No Brasil, são quatro estádios que contam com gramado sintético: o Allianz Parque e o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho (Pacaembu), em São Paulo, a Ligga Arena, em Curitiba e o Estádio Olímpico Nilton Santos (Engenhão), no Rio de Janeiro. Nos próximos meses o campo da Arena MRV, do Atlético-MG, também se juntará ao grupo. Frente à onda de críticas, o Palmeiras, que conta com grama artificial no Allianz Parque desde 2020, se posicionou em defesa da tecnologia. O clube afirma que o piso, que é certificado pela Fifa anualmente desde sua instalação, segue os parâmetros de um gramado natural, e diz que as críticas que apontam para uma maior incidência de lesões em gramados sintéticos não são científicas e dificultam o debate sério e responsável sobre o tema.
Falta de padronização dificulta debate
Porém, a possibilidade de empregar estudos científicos para embasar os debates é dificultada pela falta de dados padronizados sobre as lesões. “No caso das lesões, em termos científicos, existem vários trabalhos pouco conclusivos. Ou seja, não está bem definido se ocorrem mais lesões nos gramados naturais ou sintéticos”, diz o docente Leandro Jose Grava de Godoy, da Faculdade de Ciências Agrárias do Vale do Ribeira da Unesp, câmpus Registro. Godoy está à frente do Laboratório de Fertilidade do Solo e Nutrição Mineral de Plantas (LAFEN), e é um dos principais pesquisadores sobre gramados naturais em atividade no país.
Godoy explica que o caráter pouco conclusivo do debate está ligado ao fato de que os diferentes estudos falham em coletar de forma padronizada os dados sobre lesões e sobre a quantidade de jogos disputados em cada tipo de gramado. “Por exemplo, temos no Brasil apenas quatro campos com gramado sintético. Todos os demais são naturais, então qualquer comparação fica desigual”, diz ele, que pesquisa o tema de gramados esportivos e produção de gramas. As diferenças se estendem até mesmo no que cada pesquisa entende por “lesão”. Por exemplo, alguns estudos classificam como lesão qualquer evento que levou à interrupção de um treino ou partida. Para outros, a definição envolve a avaliação do atleta por profissionais de saúde. Uma terceira modalidade trata como lesão os eventos que levam o jogador a se ausentar de treinos ou partidas. Com tantas definições diferentes fica difícil a comparação das consequências dos jogos disputados em gramados diferentes, e a chegada a alguma conclusão mais abrangente.

Estudos trazem resultados contraditórios
Em um estudo recente, publicado na revista científica eClinicalMedicine, que integra o conjunto de revistas de acesso aberto da The Lancet, um grupo de pesquisadores passou por 1447 pesquisas que abordaram a questão da lesão em jogos de futebol, buscando determinar se elas ocorriam com maior frequência e gravidade em um ou outro gramado. O resultado do levantamento mostrou que o número de lesões geralmente é menor em jogos que ocorrem em grama sintética, tanto no caso de equipes masculinas quanto femininas. O trabalho também identificou uma tendência a uma menor incidência a lesões em gramado sintético por parte de jogadores profissionais, enquanto os jogadores amadores tiveram uma incidência semelhante de lesões tanto em campos de grama natural quanto artificial.
Estes resultados contradizem a resistência dos profissionais ao gramado sintético, já que eles afirmam experimentar mais lesões. Talvez a origem desta resistência não esteja exatamente na experiência de jogo. Uma pesquisa que analisou a percepção de jogadores de futebol e rugby sobre o desempenho de gramados sintéticos e naturais identificou que a resistência ao uso de gramado sintético por parte dos atletas não está necessariamente relacionada ao desempenho técnico ou físico da superfície, mas sim a um viés cognitivo pré-existente, ou seja, uma percepção negativa construída previamente.
Por outro lado, há estudos que apontam para evidências de que gramados sintéticos aumentam o risco de lesões nos membros inferiores. Em especial, aquelas que derivam de manobras sem contato físico, como escorregões ou torções causadas pelo atrito com o solo. Isso parece reforçar a ideia de que o próprio material de que é feito o gramado artificial e sua estrutura possam contribuir, de forma biomecânica, para a ocorrência de lesões. “Se olharmos um pouco mais a fundo, é possível perceber que, no gramado sintético, a ocorrência de lesões ligamentares acaba sendo um pouco maior. Esse tipo está ligado a um tempo maior para o jogador se recuperar”, diz Godoy, que tende a concordar com os estudos que apontam para a existência de um maior número de machucados em campos sintéticos.
O pesquisador pondera que, embora a Fifa realize testes em gramados sintéticos para garantir que o campo atenda aos padrões de desempenho e segurança de jogo, faltam análises sobre a interação entre o jogador e o gramado. “No futebol, existem duas interações importantes: a superfície gramada com o jogador e a superfície gramada com a bola”, diz o pesquisador.
Para assegurar que a bola não venha a se deslocar mais rápido do que nos gramados naturais e não quique a uma altura maior, são feitos testes nos quais bolas são lançadas de escorregadores ou de uma altura de 2m, que servem para atestar o desempenho no gramado. A bola deve, então, chegar a uma velocidade máxima e quicar até uma determinada altura para que o gramado seja considerado apto para receber jogos oficiais. “Porém, existem poucos testes relacionados que simulem a interação entre a superfície e o jogador. Testes deste tipo auxiliam, inclusive, a entender as lesões”, diz Godoy.
Ele cita como exemplo de teste para a interação entre homem e piso um equipamento que simula a perna do jogador e o seu movimento de virada. “Na grama natural, quando uma força é aplicada, depois de algum tempo a grama vai se romper, porque é uma planta como qualquer outra. No gramado sintético, esse rompimento não ocorre”, explica o pesquisador. “Acredito que esse seja um dos motivos para a ocorrência de mais lesões na grama sintética, apesar de toda a evolução da tecnologia”, diz.
A escolha da grama e o impacto no meio ambiente
Além das preocupações com o desempenho e a segurança dos atletas, a escolha entre grama natural e sintética também esbarra em questões ambientais. Nesse sentido, apesar do gramado natural ser o favorito entre a grande maioria dos jogadores, por trás da grama verde e vistosa em cada jogo está o uso de pesticidas e fertilizantes, que podem contaminar a terra do subsolo e lençóis freáticos. Somado a isso, há o gasto de milhares de litros de água para manter o gramado vivo.

Para se ter uma ideia, um campo de futebol com dimensões oficiais da Fifa, por exemplo, exige entre 178 mil e 357 mil litros de água por semana durante a estação de crescimento da grama natural, que dura cerca de três meses em algumas regiões. A nível de comparação, segundo o Ministério das Cidades, uma pessoa consome, em média, 1.055 litros de água por semana e, segundo o Plano Nacional de Insegurança Hídrica, em 2017 foram identificadas 60,9 milhões de pessoas que vivem em cidades com menor garantia de abastecimento de água.
Para lidar com a situação, alguns estádios como o Mané Garrincha, o Allianz Parque e a Arena do Grêmio instalaram cisternas conectadas ao sistema de drenagem, o que permite a captação e reutilização da água da chuva. Por outro lado, o gramado sintético, apesar de demandar irrigação para limpeza da grama – motivo que levou a casa do Palmeiras a aderir às cisternas -, apresenta um gasto hídrico muito menor.
A versão plástica, entretanto, não é livre de problemáticas ambientais. A principal delas é, justamente, a composição do sintético que é baseada em fibras de polipropileno e polietileno, dois tipos de plástico. Além disso, um item essencial em todos os campos sintéticos de última geração são pequenas pelotas de borracha, que são espalhadas na grama e têm a função de amortecimento. Com o tempo e o uso, tanto as pelotas como as gramas se desprendem do gramado e são levadas para o ambiente – seja por conta das chuvas, seja nos equipamentos dos jogadores e profissionais que ficam em campo. Um estudo espanhol, chegou a identificar que cerca de 20.000 fibras por dia escoavam para o rio Guadalquivir, em Andaluzia, e até 213.200 fibras por quilômetro quadrado foram encontradas flutuando no mar Mediterrâneo, próximo à costa catalã.
Segundo Godoy, atualmente os gramados sintéticos estão substituindo as pelotas de borracha por outras, feitas de cortiça, que oferecem menos danos ao meio ambiente. As fibras que compõem a grama sintética, entretanto, permanecem pouco atraentes. “É preciso lembrar, também, que o gramado natural pode fornecer uma série de serviços ecossistêmicos, como o sequestro de carbono, a liberação de oxigênio, redução de temperatura, redução de ruído e a questão visual. O sintético, por outro lado, além de causar um estranhamento visual, e de possuir todos os problemas associados ao plástico, também gera ilhas de calor, por se tratar de um material que aquece mais do que a grama natural, independentemente da tecnologia usada em sua confecção”, explica Godoy.
Grama implica em custo mais alto
Na visão do pesquisador, é o alto custo associado à manutenção do gramado natural, e não os dados científicos, que tem levado os administradores de estádio a optarem pelo gramado sintético.
O aspecto econômico ganha centralidade especialmente em tempos nos quais o número de jogos é elevado e os estádios recorrem à realização de shows para arrecadar fundos. “Existem várias questões que acabam encarecendo a manutenção dos gramados naturais”, diz Godoy. Uma delas é a tendência crescente de construção de arenas fechadas, que proporcionam maior conforto ao público. “A realização de shows nessas arenas e o alto número de partidas disputadas nelas contribuem para desgastar o gramado. O simples fato de os estádios serem fechados já afeta as condições de luminosidade e de circulação de ar. Já os eventos promovem o pisoteio e, muitas vezes, a colocação de pesos elevados sobre os gramados para a instalação de palcos e estruturas. Tudo isso degrada a grama natural e leva os administradores de estádio a optar pela opção mais resistente, que é o gramado sintético”, diz.
Ainda não é possível bater o martelo sobre qual tipo de gramado é melhor: provavelmente a resposta dependerá das condições ambientais e econômicas de cada região. A Fifa, no entanto, dá preferência aos gramados naturais, que são obrigatórios nos estádios onde são disputadas as partidas das Copas do Mundo. Essa exigência representa um desafio aos Estados Unidos, que, junto com Canadá e México, vão sediar a Copa do Mundo de 2026. Os organizadores norte-americanos estão envidando esforços para adaptar seus campos que, em sua maioria, são de grama sintética, com particular atenção para cinco estádios que são completamente cobertos. “Para mim, o gramado sintético tem suas funções em relação a shows. Mas, no eu diz respeito à prática do futebol e de outros esportes, a grama natural é melhor”, diz Godoy.
Imagem acima: Estádio do Allianz Parque, que conta com gramado sintético. Crédito: Rodrigo Prieto