Nas últimas décadas, o crescimento da atividade agropecuária colocou o Brasil entre os principais produtores de alimentos no mundo. Esse salto, entretanto, ocasionou certas consequências indesejadas, especialmente no que se refere aos impactos ambientais, como o avanço de culturas e pastagens sobre áreas protegidas e de floresta, ou a degradação dos solos.
A identificação precisa dos usos a que estão sendo destinadas nossas terras pode proporcionar informações valiosas que embasem políticas públicas benéficas tanto para o produtor rural quanto para o meio ambiente. Porém, dadas as proporções continentais do Brasil, essa não é uma tarefa fácil. Agora, uma nova tecnologia, desenvolvida no âmbito da Faculdade de Ciências e Engenharia da Unesp, câmpus de Tupã, está se mostrando promissora ao combinar imagens de satélite e técnicas de inteligência artificial para distinguir, com boa acurácia, o que está ocorrendo no solo do nosso país.
A nova tecnologia foi concebida por uma equipe de pesquisadores sob a liderança de Michel Eustáquio Dantas Chaves, professor da Faculdade de Ciências e Engenharia. Os estudiosos desenvolveram uma nova metodologia de inteligência geoespacial que combina duas técnicas emergentes para o gerenciamento de dados de sensoriamento remoto, a fim de recuperar informações sobre os usos do solo no estado do Mato Grosso: os cubos de dados, disponibilizados pelo projeto Brazil Data Cube, e a abordagem Geobia (do inglês Geographic Object-Based Image Analysis). Os resultados do estudo foram apresentados em um artigo publicado no início do ano na revista AgriEngineering.
Cubo organiza quatro fontes de informações
O Brazil Data Cube é uma iniciativa criada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e financiada pelo Fundo Amazônia para facilitar a disseminação, junto à comunidade de pesquisadores, da imensa quantidade de dados sobre o Brasil produzidos pelos satélites que orbitam e registram imagens da Terra. A ideia é que, no volume desses “cubos”, estejam reunidos dados de uma mesma área, produzidos ao longo de um determinado período de tempo e por meio de imagens de diferentes satélites.
“O cubo de dados é a forma mais palpável de unir as quatro resoluções da imagem de satélite: radiométrica, espectral, espacial e temporal”, diz Chaves, que realizou dois estágios de pós-doutorado no Inpe entre 2019 e 2023 e atuou no desenvolvimento do projeto. “No entanto, o cubo de dados serve muito mais para a análise temporal do que para uma análise espacial. Quando alguém constrói ou usa um cubo de dados, busca entender a dinâmica dos alvos situados na superfície terrestre”, explica o docente.
O cubo de dados pode ser importante para análises que tentem compreender, por exemplo, o crescimento vegetativo de determinada cultura agrícola, o período de colheita em uma área, o uso do sistema de rotação de culturas ou as atividades de plantio que ocorrem depois de um desmatamento.
Para aprofundar o aspecto espacial da análise do material dos cubos de dados, os pesquisadores empregaram a abordagem denominada Geobia. Esta metodologia apresenta, como ponto principal, a segmentação das imagens a partir de regiões homogêneas, o que leva à formação de diferentes objetos, dotados, porém, de características semelhantes. Assim, semelhanças na cor, nos valores espectrais, na topologia ou na textura de uma imagem ajudam a traçar limites no mapa que acabam representando elementos em terra, como áreas de cultivo, porções de água, ou fragmentos de floresta, por exemplo.
Essa segmentação foi feita a partir do treinamento do algoritmo de segmentação multiresolução (conhecido como MRS) das imagens do sensor MODIS, que está a bordo dos satélites norte-americanos TERRA e AQUA. “A identificação de padrões amostrais para cada classe de uso e cobertura da terra, e sua detecção no restante da imagem, são feitas por algoritmos de aprendizado de máquina. Mas quem ensina e treina esse algoritmo para reconhecer os padrões somos nós. Por isso, é fundamental coletar boas amostras para que o algoritmo diferencie bem os alvos”, explica Chaves.
Nas áreas de floresta, sucesso chegou a 100%
No artigo publicado na revista científica AgriEngineering, os pesquisadores testaram a estratégia do uso dos cubos de dados combinados à Geobia no mapeamento do uso da terra no estado do Mato Grosso, no ano agrícola 2016/2017.
Os resultados apontaram para uma taxa de precisão de 95% entre a avaliação feita pelo algoritmo e os elementos reais situados no terreno. No caso das florestas, a acurácia chegou a 100%. Segundo os pesquisadores, esse sucesso expressivo na classe de imagens de floresta mostra o potencial da técnica para o mapeamento de áreas protegidas. Já nas classes Cerrado e Pastagem, o índice de precisão alcançado foi de 88%, devido à diversidade do bioma e aos efeitos da forte sazonalidade na vegetação, que por vezes foi confundida com pastos naturais ou manejados nas análises.
Um ponto de destaque nos resultados do artigo foi a precisão na identificação de cultivos duplos, nos quais ocorre a produção de duas culturas em um mesmo local, durante diferentes safras que ocorrem sucessivamente em um mesmo ano agrícola. Esse revezamento tem sido amplamente utilizado pelos produtores brasileiros, que rotacionam, por exemplo, a soja e o milho.
“Até pouco tempo, esse tipo de análise era feito com uma imagem do final e outra do começo da safra, calculando a diferença ou comparando imagens de anos diferentes”, diz Chaves. “O problema dessa abordagem é que se perde o meio da safra. E é nesse intervalo que alguma variação sutil no estado da vegetação costuma ocorrer. Não podemos abrir mão de dados que favoreçam o monitoramento, especialmente nestes tempos de mudanças climáticas.” Atualmente, dependendo do satélite escolhido para o fornecimento das imagens, é possível obter registros de uma mesma área em períodos de dois dias, por exemplo.
Ao analisar as áreas de cultivo por uma perspectiva espacial, os pesquisadores constataram uma concentração de culturas nas regiões Central e Leste do estado do Mato Grosso, que correspondem ao bioma Cerrado. Ao mesmo tempo, afirmam os pesquisadores, nota-se incursões relevantes ao Norte, onde predominam áreas florestais, o que pode indicar regiões de desmatamento. Esse padrão também é observado no ano agrícola corrente, diz o pesquisador.
O Mato Grosso tem no agronegócio sua principal atividade econômica. O estado é líder na produção de grãos no país, respondendo por pouco mais de 31% da safra brasileira. Seus 905 mil km² abrigam três biomas distintos: o Cerrado (47% do território), a Amazônia (40%) e o Pantanal (7%). Esse perfil diversificado foi um dos principais motivos para que Chaves e sua equipe o escolhessem como campo de testes para a metodologia. “Para testarmos nossa abordagem, precisávamos de uma área heterogênea que possuísse agricultura, floresta, pasto, rios e áreas urbanas, além de soja e cana em grande quantidade. Também seria interessante trabalhar com uma área de expansão da fronteira agrícola. O Mato Grosso possuía todas essas características”, diz.

Outra vantagem foi a possibilidade de validar a informação dos satélites com dados de campo. O Mato Grosso foi objeto do projeto de doutorado de Chaves, defendido por ele em 2018 na Universidade Federal de Lavras (UFLA), em Minas Gerais. “Nosso resultado se baseia nos dados do ano agrícola de 2016/2017. Naquele ano, houve duas safras relevantes, mas os níveis de desmatamento também se mostraram alarmantes. Os dados de campo coletados no meu doutorado ajudaram na coleta de amostras e na validação”, diz.
Metodologia pode ser adaptada a outros cenários
A metodologia pode ser facilmente replicada por outros grupos e instituições de pesquisa e empregada em outros cenários, uma vez que usa parte das informações disponibilizadas gratuitamente pelo Inpe, em combinação com algoritmos de acesso livre, que podem receber o treino necessário. Dependendo de qual venha a ser a aplicação, será preciso alterar alguns parâmetros. A análise de áreas onde predominam grandes propriedades, por exemplo, pode não exigir uma resolução muito alta, ao passo que culturas de ciclo curto podem necessitar de um satélite capaz de produzir mais registros de um mesmo local em um determinado intervalo de tempo.
Após a publicação deste e de outros artigos que serviram como provas de conceito, Chaves está ampliando a análise para outras regiões e biomas do Brasil e procurando diversificar o perfil das culturas observadas. Em Tupã, seus orientandos de iniciação científica, mestrado e doutorado estão trabalhando em projetos de monitoramento agrícola com o objetivo de gerar mapas em nível nacional, estadual e de bioma para diferentes culturas de interesse.
“Nesse tipo de análise, o Brasil se destaca internacionalmente. Em Tupã, estamos fazendo nossa contribuição por meio da integração de técnicas. Atualmente, focamos a análise dos grãos das commodities, mas o intuito é diversificar o mapeamento. Queremos incluir hortaliças e outros alimentos da agricultura familiar que estão no prato do brasileiro para ajudar a reduzir incertezas em estimativas”, diz Chaves.
Porém, os alimentos presentes no “prato do brasileiro” muitas vezes são cultivados em propriedades menores. Isso traz desafios para que se alcance os mesmos altos níveis de previsão obtidos com as grandes lavouras do Mato Grosso. Chaves, no entanto, acredita que o ritmo acelerado do desenvolvimento da tecnologia pode facilitar a resolução desses problemas. “Logo teremos à disposição conjuntos de imagens com resoluções muito melhores que as atuais. Acredito que não vai demorar cinco anos para isso acontecer”, diz.
Imagem acima: fragmento de floresta entre plantios de milho no município de Campo Verde, MT. Crédito: Rafael Marques/ Secom/MT