Em todo o Brasil, cerca de 1,7 milhão de pessoas se identificaram como indígenas no último Censo nacional, realizado em 2022. O termo “indígena”, porém, pode ser pouco transparente, sugerindo homogeneidade naquele que talvez seja o contingente mais diversificado do país: um verdadeiro mosaico formado por mais de 300 grupos diferentes que se comunicam em cerca de 160 línguas. Para que o povo brasileiro possa conhecer e valorizar esse rico repertório cultural, desde 2008, a Lei nº 11.645 tornou obrigatório o ensino de elementos de história e cultura indígena (e também afro-brasileira) no ensino fundamental e médio, em escolas públicas e privadas em todo o território nacional.
Porém, a plena efetivação dessa normativa ainda é uma realidade distante. Escolas e professores esbarram na ausência de formações específicas para docentes e de materiais didáticos adequados para a sala de aula. Mudar essa realidade foi um dos objetivos que levaram o antropólogo Edmundo Peggion a formular e coordenar um projeto, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que perdurou por dois anos e resultou em diversas formas de diálogos, colaborações e aproximações entre professores, estudantes, pesquisadores e indígenas.
Edmundo Peggion é docente do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, e há mais de três décadas estuda e convive com os povos nativos do nosso país. Ele pôde observar uma mudança na forma como esses grupos têm se organizado e lutado por seus direitos. “Aqui na academia, sempre tivemos uma relação com os povos indígenas a partir da universidade, como se eles fossem nossos objetos de estudo. E, nos últimos anos, o que temos visto é uma experiência de protagonismo deles”, diz. “Hoje os povos indígenas estão à frente das suas questões, das suas lutas.”
Foi com essa premissa, de dar voz e protagonismo aos indígenas, que Peggion concebeu e liderou o projeto “Diálogos Simétricos: educação, culturas e territorialidades”, entre 2023 e o início de 2025.
Bastante amplo e com diversas ramificações, o projeto contou com as participações de Paride Bollettin, professor da Universidade Masaryk, na República Tcheca; da antropóloga Amanda Danaga, ex-orientanda de doutorado de Peggion e, atualmente, docente na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul; e da professora Talita Catini, que leciona sociologia e filosofia na Escola Estadual Professor Joaquim Pinto Machado Júnior, em Araraquara. Os quatro ainda contaram com a colaboração dos professores e líderes indígenas guaranis Lenira Djatsy, da terra indígena Piaçaguara, em Peruíbe, no litoral sul paulista; e Cristiano Kiririndju, da terra indígena Renascer, em Ubatuba, no litoral norte do estado.

Catini diz que, “embora existam muitas boas exceções” em algumas redes públicas de ensino e, principalmente, em escolas particulares, a Lei nº 11.645 não vem sendo cumprida da forma como deveria. Quando acontece, o ensino de temas de história e de cultura afro-brasileira e indígena é quase sempre superficial ou balizado por vieses historiográficos ultrapassados. “A etnografia avançou muito. Não existe mais a premissa de achar que esses grupos são exóticos, primitivos ou algo do tipo. Na verdade, a questão é entender a diversidade. Aprender junto com eles, e não apenas estudá-los ou ensiná-los a partir do nosso suposto saber superior”, diz Peggion.
Um dos objetivos do projeto “Diálogos Simétricos” foi estabelecer uma troca de experiências entre alunos do ensino médio da escola Machado Júnior e os indígenas das duas comunidades parceiras. No entanto, como ressalta Danaga, foi uma troca “entre iguais, com equivalência de saberes, sem aquela postura de tratar os indígenas a partir daquela perspectiva de cima para baixo”. Essa troca ocorreu por meio de encontros virtuais, mas também por uma experiência direta de convivência.
Imersão no cotidiano de uma aldeia
Durante um fim de semana, os estudantes acamparam na aldeia Tapirema, que fica na Terra Indígena Piaçaguera, em Peruíbe. Nesses dois dias, entrevistaram Lenira, excursionaram pela aldeia e pela região e experimentaram uma imersão no cotidiano guarani, acompanhando as rotinas de bioconstruções, observando os plantios e cuidados com a roça, além de assistirem a danças e rituais.
Outros legados do projeto incluíram a produção de materiais didáticos, de um artigo científico, de trabalhos de conclusão de curso de graduação e também de uma pesquisa de mestrado e de outra de doutorado. Um dos destaques é um material produzido em conjunto pelos alunos do ensino médio e pelos indígenas. Trata-se de um catálogo da flora e da fauna da Mata Atlântica da região onde está localizada a aldeia Renascer, em Ubatuba.
A escola pública que participou do projeto fica em uma área carente de Araraquara, com alunos oriundos de famílias com poucos recursos. O fato de que os jovens não haviam experimentado qualquer contato prévio com indígenas só tornou a experiência mais enriquecedora. “Ela proporcionou aos estudantes novas possibilidades para ver o mundo”, avalia Catini.

O compêndio era um desejo antigo dos indígenas da aldeia Renascer. Há anos, eles colaboram ativamente com o reflorestamento da Terra Indígena e, desde então, têm observado o ressurgimento de espécies animais que se julgava estarem extintas na região. “Buscamos construir um catálogo relacionando a ciência ocidental com a ciência indígena, incluindo os dois saberes e sem estabelecer uma hierarquia entre eles”, conta Catini. “E criamos na escola uma disciplina eletiva específica para trabalhar com esse material, que despertou bastante interesse entre os alunos inscritos.”
A lista de materiais didáticos criados ao longo do projeto incluiu um podcast sobre cultura guarani e uma série de gravações com indígenas idosos. “Em algum momento da nossa história, o nosso povo viveu no mato”, explica a professora indígena Lenira Djatsy, que trabalha na terra indígena Piaçaguera com educação de crianças e jovens guaranis há 20 anos. “Mas, como todo ser humano, também evoluímos, nos atualizamos e, hoje, temos um novo contexto de vida.” Essa nova forma de vida incorpora tanto os benefícios quanto os malefícios da civilização. Se, por um lado, os indígenas têm acesso a medicamentos, ferramentas e tecnologias, por outro, experimentam um processo de aculturação, diz Danaga.
Um dos reflexos desse processo é a diluição da forte tradição oral dos guaranis entre crianças e jovens, algo que se percebe nas aldeias. Por isso, junto com as gravações e registros dos saberes e histórias dos mais velhos, a equipe de pesquisadores participantes do projeto está elaborando uma série de minibiografias de algumas pessoas importantes nas comunidades indígenas.

“Pensamos nesses recursos como registro histórico e também como material didático”, diz Danaga. “Para as aldeias, é importante que as crianças conheçam as histórias dos mais velhos. E, para as escolas não indígenas, também é importante ter acesso a esse conhecimento ancestral. É um saber que merece ser compartilhado”, diz. As gravações já foram concluídas e estão, atualmente, em fase final de edição, assim como as minibiografias.
Visibilidade internacional
A busca por este olhar diverso se refletiu na própria escalação dos pesquisadores que colaboraram com o projeto “Diálogos Simétricos”. O olhar não brasileiro ficou por conta do pesquisador italiano Paride Bollettin, amigo de longa data de Peggion. Atualmente vinculado à Universidade de Masaryk, na República Tcheca, Bollettin se dedica ao estudo dos povos indígenas e fala português fluentemente. Sua participação colaborou para internacionalizar o projeto.
A perspectiva dos pesquisadores indígenas foi representada por dois nomes. O guarani Cristiano Kiririndju é cacique da aldeia Renascer, terra indígena com cerca de 25 famílias e mais de 100 pessoas. Ele é formado em Pedagogia pela USP e trabalha com educação. Já foi coordenador pedagógico de educação indígena da Secretaria de Estado da Educação e presidente do Conselho Estadual dos Povos Indígenas de São Paulo (CEPISP). Participou do projeto “Diálogos Simétricos” desde o início e manteve-se vinculado mesmo depois de ter sido nomeado para responder pela Coordenadoria de Políticas para os Povos Indígenas (CPPI) do Estado de São Paulo, vinculada à Secretaria de Justiça e Cidadania do Estado.

Por sua experiência em educação, Cristiano foi o escolhido para apresentar o projeto e representar seu povo em eventos na República Tcheca, Itália e Áustria. “Nossa participação nessa missão foi extremamente importante para estabelecer diálogos que devem resultar em futuras parcerias com universidades e entidades internacionais interessadas na preservação dos povos indígenas do nosso país”, ressaltou Kiririndju.
Sua “parente” — termo usado pelos indígenas para se referir a qualquer outro indígena, independentemente da etnia — Lenira Djatsy também participou e apresentou trabalhos, de forma remota, nos eventos da Áustria e Itália.
Em outro desdobramento internacional, duas alunas tchecas de Bollettin vieram ao Brasil para colaborar com o projeto como voluntárias, sem vínculo institucional com a Fapesp. “Ambas estão escrevendo os trabalhos de conclusão de curso com base nas pesquisas que realizaram nas aldeias guarani”, diz Danaga. “Ao asseguramos o aspecto da internacionalização, conseguimos parcerias e visibilidade que não teriam sido possíveis se não contássemos com Bollettin no projeto.”
Políticas públicas
Outro dos objetivos propostos na iniciativa era a formulação de propostas de políticas públicas envolvendo a área de educação e os povos indígenas que residem no estado de São Paulo. “Pouca gente se dá conta de que temos aldeias por todo o estado, até mesmo na capital!”, diz Peggion. Para cumprir a Lei nº 11.645 e valorizar a cultura e a história dos povos originários, ele defende uma maior aproximação entre os indígenas e as escolas, com as universidades atuando como mediadoras e facilitadoras desse processo.
Atualmente, há 38 terras indígenas formalmente reconhecidas no estado de São Paulo. A maioria delas concentra-se no litoral, mas estão presentes também no interior paulista, em cidades como Avaí (próxima a Bauru, no centro do estado), Sete Barras (região do Vale do Ribeira) e Osasco (região metropolitana da capital). Dessas, somente sete ainda aguardam o processo de demarcação.
A proposta dos pesquisadores é a criação de um edital público para selecionar propostas de trabalho envolvendo escolas públicas, aldeias indígenas e universidades. “Há contextos regionais em que temos escolas indígenas e não indígenas funcionando muito próximas, mas uma praticamente ignora os saberes da outra. É preciso criar vínculos entre elas. A Unesp tem o privilégio de possuir um conjunto de polos espalhados pelo estado de São Paulo e poderia ajudar muito nessa aproximação”, detalha Peggion.
“Seria um edital que contemplasse um projeto amplo, abarcando a ideia do diálogo entre escolas indígenas e não indígenas”, diz Danaga. “Unindo universidades, escolas indígenas e escolas não indígenas poderíamos, de fato, criar conexões importantes para todos, com ótimas consequências na educação e na formação de jovens indígenas e não indígenas.” A sugestão do edital e da criação de uma política pública ampla e perene está presente no documento final sobre o projeto, que foi enviado à Fapesp.
“Tupi or not tupi, that’s the question.” O trocadilho presente no “Manifesto Antropófago”, publicado por Oswald de Andrade em 1928, está cada dia mais atual. Obras de autores indígenas, como Aílton Krenak e Davi Kopenawa, e estudos etnográficos de antropólogos como Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima — só para citar dois entre muitos outros influentes — estão ressignificando tanto nosso olhar sobre os povos originários quanto a produção de cultura sobre e por eles. “Finalmente, começamos a entender que o tipo de relação mais correta e mais honesta com essas culturas é uma troca mais simétrica. Nosso projeto conseguiu estabelecer uma relação de respeito mútuo e diálogo”, diz Peggion.
Imagem acima: Mapa Tátil do estado de São Paulo elaborado pelos estudantes, com a localização da escola e das Aldeias vinculadas ao projeto