Na primeira semana do ano de 2020, as autoridades chinesas alertaram a Organização Mundial da Saúde para a detecção de um vírus desconhecido, causando uma nova doença, na cidade de Wuhan, no centro do país. Finalmente, confirmavam relatos que já circulavam informalmente desde o final do ano interior, e que haviam chegado à própria OMS. Os esforços das autoridades chinesas para conter o vírus, que recebeu o nome de SARS-CoV2, falharam, e em 30 de janeiro a OMS classificou a disseminação da covid-19, a doença causada pelo novo vírus, como uma Emergência Internacional de Saúde Pública, de forma a facilitar uma resposta internacional coordenada. Tal medida se revelou insuficiente, e em 11 de março – há cinco anos, por tanto – o órgão multilateral alterou a classificação para o status de pandemia.
Naquela data, não havia como prever a escala da devastação que se seguiria à explosão da covid-19 pelo planeta. O número de mortos registrado ficou na faixa dos sete milhões, porém a OMS estima que o total real seja quase três vezes maior, na faixa dos 20 milhões, e algo como 70% da humanidade pode ter entrado em contato com o SARS-CoV-2. O Brasil ficou em sexto na lista dos países que mais registraram casos e em segundo no número de vítimas: mais de 700 mil. Foi apenas a partir do desenvolvimento das vacinas, no segundo ano da pandemia, que lentamente a vida no planeta começou a voltar aos eixos. No entanto, o processo foi extremamente turbulento por outras razões. Um tsunami de informações equivocadas e mentirosas tornou parte da população mundial avessa a importantes medidas de combate ao vírus, como o isolamento social, o lockdown, o uso de máscaras e até mesmo a vacina contra a covid-19,
Por ocasião do quinto aniversário da declaração da pandemia de covid-19, o Jornal da Unesp conversou com a microbiologista Paula Rahal, professora titular no Departamento de Ciências Biológicas do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, para lançar um olhar em perspectiva sobre aquele que foi o maior desafio de saúde pública enfrentado pela humanidade neste século 21. Leia abaixo a entrevista.
Passados cinco anos da declaração do estado de pandemia pela OMS para covid-19, podemos dizer que vencemos o vírus SAR-CoV-2? Ele deixou de representar ameaça em todos os cantos do planeta?
Paula Rahal: Permanece uma vigilância constante, é muito cedo para falar que não estamos mais preocupados. Tanto que continuam os estudos e a vigilância para que, caso surja alguma nova variante de preocupação, a gente possa adotar as medidas cabíveis o mais rápido possível.
Segundo estimativas da OMS, o total de pessoas que contraíram covid-19 pode ter chegado a 800 milhões de pessoas, e o de óbitos, a 20 milhões de mortos. À época, houve quem dissesse que as autoridades se mostraram despreparadas para lidar com uma emergência sanitária de escala global. Como você enxerga essa crítica? Houve despreparo?
Acho que existem medidas, sim, que poderiam ter sido adotadas. Por exemplo: as medidas que estamos adotando agora com o H5N1. Existe uma vigilância global em que os focos são identificados e a gente tenta isolá-los, para que não ocorra um espalhamento, não ocorra uma pandemia.
A questão [com a pandemia de covid-19] foi que, quando a China se manifestou, já era muito tarde. Seria preciso avisar logo a Organização Mundial da Saúde, porque há providências que podem evitar uma pandemia. É possível identificar se se trata de um vírus respiratório. E se for, pode-se examinar qual o grau de agressividade, as maneiras pelas quais ele pode se espalhar, e tomar medidas para impedir. Por exemplo, vemos que o H5 N1 infectou frangos e aves, e alguns animais estão sendo sacrificados para que não ocorra uma pandemia novamente.
É difícil julgar se essa demora foi ingenuidade ou negligência. Mas, na hora em que [as autoridades chinesas] avisaram, já estava em um grau em que era muito difícil controlar. Por ser um vírus respiratório, ele se espalha muito mais fácil, e perde-se o controle muito rápido. Se tivessem avisado no primeiro mês, havia medidas que poderiam ser tomadas, como isolar a cidade para tentar minimizar o espalhamento daquele vírus, ou fazer um lockdown. Isso foi feito depois, quando a doença já tinha avançado.
Então, acho que demoraram um pouco para avisar a Organização Mundial de Saúde, e o CDC (Center for Diseases Control, órgão do governo dos EUA) e para tomar providências. E a própria OMS demorou a tomar providências. Faltaram providências em escala local e global.

Durante o primeiro ano da pandemia, houve um debate intenso sobre os meios mais adequados para controlar o vírus. À época, alguns médicos sustentaram que somente a imunidade coletiva, que foi chamada de imunidade de rebanho poderia realmente levar à superação da crise sanitária. Em retrospecto, qual papel a imunidade de rebanho desempenhou? Essas previsões se confirmaram?
Paula Rahal: Foi graças ao grande número de pessoas vacinadas que a gente teve imunidade de rebanho, e isso protegeu as pessoas que também não estavam vacinadas. Foi isso que nos tirou da pandemia.
Mas essas pessoas que ressaltavam a imunidade de rebanho não estavam defendendo a vacina à época.
Paula Rahal: Sem a vacina, seria preciso que uma quantidade enorme de pessoas pegasse a doença [para chegar à imunidade de rebanho]. Houve, sim, algumas ideias neste sentido, e isso levou a um número de mortes absurdo. O que aconteceu foi que muitas pessoas que se infectaram foram à morte, não era todo mundo que apresentava uma resposta imunológica efetiva para poder combater o vírus. Milhares de pessoas que pertenciam aos grupos de risco morreram.
A vacina proporcionou a imunidade de rebanho. Hoje vemos que o vírus circula mas, graças à imunidade, os sintomas são mais leves, correspondendo a uma gripe. Então, aquela ideia não estava correta, porque a ideia de que todos devessem ser contaminados para alcançar a imunidade de rebanho resultou em morte. A imunidade de rebanho veio com a vacinação.
Nos últimos anos tem havido um revisionismo com relação a medidas adotadas para combater a pandemia. Por exemplo, foram divulgados estudos que sustentam que o uso de máscara não fez diferença nenhuma. Como você vê estas críticas?
Paula Rahal: As máscaras evitaram sim a propagação do vírus SARS-CoV-2. A propagação dos vírus respiratórios se dá via respiração, tosse, por gotículas. A máscara então inibe a transmissão do vírus, não totalmente, mas diminui.
Essas medidas de proteção foram extremamente importantes antes que dispuséssemos da vacina. Máscaras como as N95 são muito eficientes. Nós trabalhamos a pandemia inteira em contato direto com o vírus, fazendo diagnósticos, e graças ao uso da N 95 ninguém foi infectado.
Acho que o negacionismo sempre ressurge, e esses debates vão continuar enquanto existirem as fake news que contestam as vacinas e as medidas protetivas.

E outra medida que tem sido intensamente criticada retrospectivamente foi o isolamento social e, especialmente, o lockdown.
Paula Rahal: Acho que, em algumas cidades no Brasil, perdemos o controle quando o vírus começou a se disseminar muito. Daí a necessidade de se adotar medidas como o isolamento social. Em alguns países isso não foi necessário, porque neles havia menos negacionismo. As pessoas usavam máscaras, não promoviam encontros clandestinos, não comemoravam carnaval. Toda medida preventiva é importante a fim de evitar que se chegue ao ponto de ter de fazer um lockdown. Alguns países não implementaram o lockdown, mas tinham adotado medidas extremamente rígidas.
Por exemplo, em relação à chegada de pessoas via transporte aéreo. Toda pessoa que chegava àqueles países tinha que apresentar um laudo negativo. Daí, ficava isolada por 7 dias e repetia-se o exame. Uma vez que o exame desse negativo, ela poderia entrar naquele país. Infelizmente, não adotamos medidas preventivas assim. Chegou-se a um ponto em que não havia mais controle, e aí o lockdown ocorreu. São medidas radicais, mas às vezes são necessárias porque não foram adotadas outras, preventivas. As pessoas entravam sem diagnóstico, o aeroporto de Guarulhos ficou como uma porteira aberta.
Mas aqui foram adotadas medidas como o uso de máscaras e o distanciamento. Você acha, então, que faltou adesão por parte da população?
Se a população realmente aderisse, as coisas não teriam chegado ao ponto a que chegaram. Nós vimos as normativas, como os lugares marcados para formar as filas, lugares marcados no elevador, a recomendação a evitar aglomerações. Mas não houve adesão de 100%, de toda a população. Houve aglomeração, festas, as pessoas indo para a praia. É verdade que alguns estados aderiram mais, e tiveram resultados melhores. Outros aderiram menos.
E em São Paulo?
Paula Rahal: Acho que, no final, [o controle da pandemia] ficou muito a cargo das prefeituras.
Então, podemos pensar que esse número alto de óbitos que vimos no Brasil se relaciona a essa adesão mais frouxa a essas medidas?
Paula Rahal: E a uma lentidão dos estados em agir. Eles poderiam ter antecipadamente implementado políticas, e buscado uma adesão maior por parte da população. Mas as fake news circulavam, parte da população acreditava nas fake news e ficava contra as políticas que se estava buscando implementar. Então, ficamos nesse jogo e quem saiu perdendo foi a população.

Que pesquisas você tem desenvolvido com relação ao vírus SARS-CoV-2?
Paula Rahal: Eu trabalho com os antivirais. Também colaboro com a vigilância dos SARS-CoV-2, e dos demais vírus respiratórios que afetam a população como um todo. Estamos em busca de novos antivirais para o combater o SARS-CoV-2. Existem alguns já aprovados no mercado. Porém, estamos fazendo testes com todas as variantes, em busca de um antiviral de amplo espectro.
Desenhamos peptídeos específicos e depois fazemos os testes para ver se conseguimos impedir a replicação do vírus, em todas as suas variantes. Já temos algumas moléculas promissoras, o trabalho está pronto para publicação.
Hoje existem alguns medicamentos aprovados. Eles destinados aos grupos de risco e às pessoas que apresentam sintomas mais graves. Ainda é uma medicação muito cara.
Qual o legado deixado pelo combate à covid-19? Somos mais capazes de enfrentar uma nova ameaça de saúde em escala global?
Paula Rahal: Acho que estamos observando uma possibilidade de ameaça em escala global, que é o H5N1. Ela se espalhou nas aves, mas já houve alguns casos em humanos e em outros animais. E tem havido um trabalho de vigilância muito grande, mundial, para que não ocorra uma nova pandemia.
O legado… Tivemos aprendizados. Por exemplo, a maioria das pessoas mudou hábitos, ou adotou hábitos novos. Coisas como lavar as mãos, usar álcool em gel, usar máscaras. Hoje, quando uma pessoa fica gripada, ela já usa máscara. E isso trouxe benefícios, não só para evitar pandemias, mas para lidar com os vírus respiratórios como um todo. Tivemos um amadurecimento, e uma modificação de condutas para a prevenção dos vírus respiratórios como um todo.
E, com a pandemia, aprendemos a importância da vacinação. A vacinação vai continuar toda vez que aparecer uma nova variante. Vamos nos adaptar para incluir as novas variantes porque, se a gente se descuidar, podem se tornar uma preocupação novamente.
Imagem acima: Vacinação na aldeia indígena Umariaçu, próximo a Tabatinga, AM, em 19/01/2021 . Marcelo Camargo/Agência Brasil.