Pesquisadores da Unesp desenvolvem modelo de inteligência artificial para mapear áreas de risco de deslizamento em São Sebastião

Realizado em parceria com o Cemaden, o estudo teve o objetivo de desenvolver uma ferramenta que pudesse ser aplicada para auxiliar na tomada de decisão, no planejamento urbano e na gestão de riscos. Além do mapa de zonas suscetíveis a deslizamentos, a pesquisa também identificou os principais fatores que impactam na estabilidade do solo.

Há pouco menos de um ano, em 19 de fevereiro de 2024, o litoral norte de São Paulo vivenciava o que foi considerado pelo Governo Estadual como uma das maiores tragédias da história do estado. Com chuvas que acumularam mais de 600mm em 24h, o temporal foi o maior acumulado de chuva que se tem registro no país e deixou um rastro de destruição, culminando em deslizamentos de terra que deixaram 65 mortos, casas destruídas e rodovias bloqueadas.

Dentre as 8 cidades afetadas, São Sebastião foi considerada o epicentro do desastre e a mais impactada, somando o maior número de mortos e desabrigados. Um ano após a tragédia, os moradores da região seguem sob ameaça de novos deslizamentos, o que levantou um debate sobre as potenciais áreas de risco e as ações de prevenção necessárias.

Os caminhos, entretanto, não são claros: enquanto a Procuradoria Geral do Estado ingressou com uma ação para autorizar a demolição de 893 imóveis da Vila Sahy, uma das áreas mais impactadas e de maior risco, o Ministério Público Federal (MPF), acionou engenheiros da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para prestarem esclarecimentos sobre a situação à Justiça Estadual, que decidiu pela permanência das moradias.

Confrontados com a catástrofe, pesquisadores da Unesp de São José dos Campos e do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) desenvolveram um estudo no qual utilizaram algoritmos de aprendizado de máquina para gerar mapas com as principais zonas de risco de deslizamentos de terra em São Sebastião. “A combinação de fatores naturais, como a presença da Serra do Mar, com pressões antrópicas, como a urbanização crescente, destacou a importância de métodos avançados de aprendizado de máquina para mapear e prever áreas suscetíveis a deslizamentos”, diz Enner Alcântara, docente do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp. 

No artigo, intitulado Machine learning approaches for mapping and predicting landslide-prone areas in São Sebastião (Southeast Brazil), o grupo de pesquisadores selecionou o algoritmo mais eficiente e com maior taxa de precisão na previsão de desastres. Além disso, também identificaram quais características ambientais e de ocupação têm maior impacto no risco de deslizamento.

Escolhendo o melhor algoritmo

Uma primeira etapa da pesquisa consistiu em testar cinco dos algoritmos mais utilizados em trabalhos de previsão de desastres para conseguir identificar aquele com a melhor precisão. Para isso, o grupo alimentou os modelos com informações de clima, tipo de solo, tipo de vegetação, relevos da região, acidentes anteriores e ocupação de terra. Com isso, o conjunto de algoritmos selecionados passaram por um treinamento, no qual aprenderam a identificar as combinações de fatores que levaram a deslizamentos, tendo como base eventos passados, para, por fim, serem testados realizando novas previsões de áreas de risco. 

Segundo os pesquisadores, o grupo decidiu trabalhar com modelos de aprendizado de máquina porque eles são particularmente bons para lidar com uma grande quantidade de dados, além de serem capazes de identificar padrões que são praticamente impossíveis de vislumbrar com outras técnicas ou mesmo com a análise humana.

“Atualmente, as técnicas tradicionais empregadas para previsão de deslizamentos de terra se baseiam principalmente em abordagens físicas e estatísticas”, explica Alcântara, que também é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais, criado em parceria entre Unesp e Cemaden. Segundo o pesquisador, alguns dos principais desafios enfrentados pelas técnicas tradicionais envolvem a necessidade de informações precisas e de dados de alta resolução, que nem sempre estão disponíveis. Além disso, elas tendem a não apresentar bom desempenho quando expostas a uma grande quantidade de dados, por exemplo, ao tentar fazer previsões em áreas extensas ou em regiões que apresentam uma grande variabilidade ambiental. É justamente nessas lacunas que as técnicas de aprendizado de máquina prosperam.

Nos testes comparativos, o modelo chamado de Gradient Boosting (GB) se destacou. Na escala AUC-ROC, utilizada para medir a performance geral dos algoritmos, o modelo GB alcançou uma performance de 0.963 – a pontuação máxima que pode ser atingida é 1. Além disso, o modelo chegou a 99,6% de precisão, enquanto o segundo colocado, chamado de Random Forest, obteve 90.2% no mesmo teste.

Mapeando áreas de risco

O mapa gerado pelo Gradient Boosting apresenta todo o território de São Sebastião, destacando, a partir de diferentes cores, o grau de risco de diferentes regiões. Como resultado, foi possível observar que a maior parte do município tem um risco baixo de deslizamento de terra, representado pela cor verde. Essa informação contrasta com as demais classificações, que têm poucas e esparsas aparições no mapa, identificando áreas de risco moderado, alto e muito alto de deslizamento.

“A predominância de áreas com baixa suscetibilidade, intercaladas com os pontos isolados de alta e muito alta suscetibilidade, sugere que, embora o risco geral seja manejável, existem zonas específicas que demandam atenção especial no planejamento do uso do solo e em estratégias de mitigação de riscos”, apontam os autores do estudo.

Além do mapa, com o Gradient Boosting também foi possível identificar as principais características que influenciam na ocorrência de deslizamentos. A principal delas, e já esperada, é a inclinação do terreno: quanto mais inclinado o terreno, maiores as chances de um deslizamento. Já o segundo fator que mais influencia nesse tipo de risco é a umidade do solo. Esse resultado chamou a atenção dos pesquisadores porque esse é um dado pouco utilizado nesse tipo de estudo que, em geral, dá preferência a informações sobre o volume de chuva. Entretanto, os autores apontam no artigo que incorporar informações sobre a umidade do solo aumenta a precisão dos modelos já que esse fator está diretamente relacionado à ocorrência de deslizamentos.

Nesse sentido, a umidade do solo é um indicador que informa com mais certeza qual o grau de saturação que o solo se encontra. Ou seja, se o solo estiver pouco úmido, mesmo com muita chuva, as chances de deslizamento diminuem porque a terra consegue absorver mais água. Do contrário, um solo muito úmido e saturado pode ceder mesmo com chuvas menos intensas. “O destaque do índice de umidade do solo como um dos fatores mais relevantes identificados por nosso modelo para a ocorrência de deslizamentos de terra aponta que o monitoramento em tempo real dessa variável pode melhorar significativamente os sistemas de alerta precoce na região”, afirmam. 

Em terceiro lugar, o modelo apontou a dissecação do terreno, que indica o grau de fragmentação de uma paisagem por conta da erosão. Esse processo acaba criando irregularidades na região, o que afeta diretamente o escoamento da água e, por consequência, aumenta sua instabilidade.

O tipo de uso e cobertura do solo importa

No processo de compreender o que aumenta as chances de um deslizamento de terra, é importante também considerar os avanços da própria sociedade em diferentes regiões e terrenos. Diversas atividades humanas, como desmatamento, avanço imobiliário e empreendimentos agrícolas, têm sido apontadas como grandes responsáveis por alterar drasticamente a estabilidade dos terrenos. Pensando nisso e em busca de um panorama amplo para o cenário de São Sebastião, o grupo comparou a paisagem da cidade em 1985 com a de 2021. O objetivo foi identificar de que maneira o cenário mudou, especialmente quanto à ocupação e aos tipos de coberturas vegetais na área estudada, e como isso pode ter impactado nos processos de deslizamentos de terra. 

Entre os achados, os pesquisadores identificaram um aumento considerável tanto de área florestal, como de área urbana, acompanhado de uma diminuição das zonas de restinga e agricultura. O panorama não é de todo ruim, mas também não é completamente positivo.

Nas análises, 90,5% das áreas classificadas como “Baixa” suscetibilidade para deslizamentos são regiões florestadas. Isso indica uma relação já conhecida de que a presença de árvores e florestas tendem a auxiliar a estabilidade das encostas, diminuindo consideravelmente as chances de um deslizamento. Isso porque as raízes funcionam como um suporte para o solo, mantendo-o mais firme. Ao mesmo tempo, as raízes contribuem para reduzir a umidade do terreno que, como foi visto na pesquisa, é um dos principais fatores que impactam no risco de deslizamentos.

Por outro lado, os achados apontaram que as áreas urbanas apresentam uma suscetibilidade “Moderada” e “Muito Alta”, o que faz com que o aumento desse tipo de ocupação seja visto com preocupação. “A expansão urbana, especialmente em uma região costeira e montanhosa como São Sebastião, frequentemente envolve construções em encostas íngremes, alterações nos padrões naturais de drenagem e o aumento de superfícies impermeáveis, o que pode agravar o risco de deslizamentos”, explica Alcântara. Aliado à ocupação urbana, as pastagens também acenderam um alerta: elas representam cerca de 10% da cobertura vegetal de São Sebastião, tanto em 1985, como em 2021 e, em ambos os casos, estão localizadas próximas das áreas urbanas. A preocupação surge porque esse tipo de cobertura apareceu como a mais suscetível à deslizamentos, predominando na classe “Muito Alta”.

Equipe da Defesa Civil de São Paulo em atuação em São Sebastião, após os deslizamentos (Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil)

O pesquisador afirma que a análise das mudanças no uso e na cobertura do solo, aliada à informação sobre os fatores e regiões de risco podem fornecer informações valiosas para o planejamento urbano e para a gestão de risco. Pensando nisso, a equipe já está trabalhando em maneiras de aprimorar a utilização do modelo, e torná-lo acessível para que possa ser efetivamente usado para a previsão de novos desastres.

“Nós queremos explorar a aplicabilidade do modelo em outras regiões do Brasil, para ampliar o impacto do estudo. Além disso, estamos buscando formas de incorporar dados em tempo real no modelo, isso pode transformar o algoritmo em uma ferramenta de alerta precoce muito importante”, diz Alcântara. Segundo o pesquisador iniciativas como essa são reflexo de um compromisso em transformar a ciência em soluções práticas, porém, o sucesso dessas empreitadas não depende apenas do cientista, mas também de gestores e tomadores de decisão. “A utilidade do estudo depende de sua implementação prática, o que inclui transformar os resultados em políticas públicas eficazes e treinamentos para profissionais da área”, conclui.

Na imagem acima: Voluntários e Defesa Civil de São Paulo trabalham em meio a casas destruídas na Vila Sahy, em São Sebastião (Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil)