Conservar o meio ambiente ou apostar em grandes obras de infraestrutura, capazes de destravar gargalos logísticos que se arrastam há décadas e que vão aumentar a competitividade internacional da economia? Diversos projetos ambiciosos que estão sendo discutidos nos gabinetes dos ministérios em Brasília recolocam essas mesmas questões, adaptadas a diferentes contextos e regiões do país. E, até o final de fevereiro, todos os brasileiros podem participar de uma consulta virtual para opinar sobre uma das mais polêmicas iniciativas, a hidrovia do rio Paraguai.
O objetivo da consulta é aperfeiçoar a proposta de concessão à iniciativa privada de uma nova hidrovia a ser criada, que estará inserida nas bacias dos rios Cuiabá, Paraguai, Taquari, Negro e Miranda e se chamará hidrovia do rio Paraguai. Trata-se de um projeto pioneiro, que está sendo desenvolvido pelo Ministério de Portos e Aeroportos.
Do ponto de vista da navegação, o rio Paraguai possui duas partes com características distintas. No chamado tramo sul, que se estende da foz do rio Apa até Corumbá (MS), o rio é navegável por grande comboios comerciais. Já o tramo norte, que fica entre Corumbá e Cáceres (MT), apresenta ilhas fluviais, assoreamentos e excesso de sinuosidade, o que limita sua navegação a pequenas e médias embarcações.
No centro do problema está a discussão sobre o calado das embarcações, isto é, o volume do casco que fica abaixo da água, até a quilha. As obras demandadas pelo projeto da concessão se destinam a adaptar o volume de água dos rios para que possam ser navegados. Isso vai exigir que os rios sejam dragados, para que se tornem mais fundos. Esses sedimentos serão depositados na planície alagável, e isso pode afetar a singular dinâmica de períodos secos e alagados do pantanal.
A fase inicial do projeto da hidrovia se situa no tramo sul, abrangendo um trecho do rio com 600 km de extensão entre Corumbá e a região da foz do rio Apa, que fica no município de Pedro Murtinho (MS), cidade considerada como uma espécie de portal do Pantanal, e que faz fronteira com o Paraguai. O projeto prevê que a empresa que arrematar a concessão deverá investir estimados R$ 63 milhões em obras para assegurar a navegabilidade da hidrovia mesmo nos meses de seca. É aí que reside a preocupação.
Os possíveis impactos ambientais do projeto preocupam, e muito, pesquisadores de diversas áreas que atuam no Pantanal. Em fins do ano passado, um artigo assinado por 42 cientistas de Brasil, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos foi publicado na revista Science of the Total Environment. O extenso título do texto é um alerta direto. Na tradução para o português, lê-se: “O fim de todo um bioma? O Pantanal, a mais vasta terra alagável do mundo, está sendo ameaçada por um projeto de hidrovia cuja capacidade para suportar tráfego em larga escala de maneira sustentável é incerta”.
Áreas de alto valor ecológico
No artigo, os autores reforçam que a dragagem contínua, necessária devido aos sedimentos arenosos do rio, será um grande problema. Os trechos que exigem maior intervenção coincidem com áreas de alto valor ecológico, como Parques Nacionais, Patrimônios Mundiais da Unesco, Reservas da Biosfera, reservas indígenas e sítios de tipo Ramsar, uma categoria que identifica áreas úmidas protegidas por serem consideradas importantes para todo o planeta.
“A dragagem constante não apenas será cara como também reduzirá as áreas alagáveis, afetando os ecossistemas. Além disso, o destino dos sedimentos dragados – a planície de inundação – causará danos ambientais significativos”, alertam os pesquisadores no texto do artigo.
Pierre Girard, doutor em hidrologia pela Université du Québec, no Canadá, e professor da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), diz que a dragagem prevista no projeto funcionará como um autêntico dreno, acelerando o escoamento da água, contribuindo para a seca no Pantanal e ampliando os riscos de incêndios e danos à vegetação. “O rio Paraguai apresenta trechos com curvas fechadas e calado reduzido, especialmente no chamado tramo norte do projeto, o que dificulta a navegação e exige adaptações das embarcações”, explica. “A diminuição do nível de água, agravada por secas severas, compromete a navegabilidade e a funcionalidade do canal”, diz Girard.
Sob os efeitos das mudanças climáticas, esses processos podem se tornar ainda mais catastróficos em um bioma que atua como uma “caixa d’água” para parte da América do Sul. “Essas alterações ecológicas também podem afetar o turismo sustentável, um setor econômico relevante na região”, ressalta Girard. Para ele, a questão não é ser contra ou a favor do projeto, mas assegurar que os cuidados técnicos e ambientais sejam rigorosamente considerados durante o planejamento e a execução da obra.
“A viabilidade econômica e o custo-benefício precisam ser avaliados com critério, especialmente porque envolvem recursos públicos”, argumenta o pesquisador. Ele alerta que modelagens científicas indicam que a navegação durante os 12 meses do ano é inviável devido à variação climática. “Na época de seca, que pode durar meses, as embarcações não conseguirão navegar”, destaca o hidrólogo.
Uma das referências em estudos sobre o Pantanal é o geólogo Mário Luis Assine, que entre 1997 e 2019 foi professor do Instituto de Geologia e Ciências Exatas (IGCE) da Unesp, câmpus de Rio Claro, e que atua hoje como professor voluntário no Programa de Pós-graduação em Geociências e Meio Ambiente do IGCE. Ele é o segundo autor do artigo.
Riscos de erosão, rompimentos e mudanças de curso
“Este trecho inicial, entre Corumbá e a foz do rio Apa, é o menos problemático” , explica Assine. “Desde os anos 1990, ele já é usado para transporte fluvial de minério de ferro, por exemplo. O trecho mais crítico do projeto da hidrovia é o norte, que fica entre Cáceres e a Serra do Amolar. Essa área tem extensas regiões inundáveis e um canal sinuoso e raso. A deposição de sedimentos dragados do rio impactará significativamente a planície de inundação. Além disso, a dragagem pode causar erosão nas margens, rompimento de diques e mudanças no curso do canal por avulsão fluvial”, detalha Assine.
Os dois tramos, sul e norte, irão totalizar 700 km. A expectativa é que a hidrovia permita o escoamento da produção de soja, açúcar, milho, cimento, ferro e manganês, desde áreas produtivas situadas no Brasil, no Paraguai e na Bolívia, até os portos oceânicos do rio da Prata.
Ainda assim, há pontos positivos que merecem ser destacados, segundo Assine. “O projeto não prevê explosões de maciços rochosos em pontos críticos nem retificação de meandros para encurtar o canal. Contudo, alterações podem ser incluídas durante a execução, o que preocupa.”
Com as mudanças climáticas aceleradas, os períodos de estiagem devem se tornar ainda mais frequentes. Entre 2019 e 2021, por exemplo, mesmo os trechos já dragados entre Corumbá e Assunção ficaram intransitáveis por longos períodos, mostrando que a questão climática já se faz presente. “Apesar de grandes investimentos, o sucesso do projeto é incerto, enquanto os impactos ambientais, culturais e sociais são significativos. Alternativas como ferrovias seriam menos prejudiciais”, sugerem os cientistas no texto do artigo.
As análises dos cientistas mostram que os riscos não se limitam à questão hidrológica. As alterações previstas para o bioma terão consequências integrais importantes sobre uma das maiores áreas úmidas do planeta, que constitui um bioma único. As alterações no canal do rio tendem a desconectar o leito do rio da sua planície de inundação, reduzindo o período de alagamento e diminuindo a área alagada, resultando em uma grave degradação da excepcional diversidade biológica e cultural do Pantanal, avaliam os pesquisadores.
Melhor adaptar os barcos à região
Outro desdobramento que está no horizonte é a perda de capacidade de amortecimento das inundações por parte do Pantanal, o que também pode gerar um acúmulo de inundações na junção dos rios Paraguai e Paraná. Esse processo tende a interferir, inclusive, em pontos alagáveis na Argentina e no Paraguai.
“O projeto deve seguir condicionantes rigorosas, embasadas em estudos técnicos e ambientais. Além disso, é fundamental reavaliar as estratégias e priorizar soluções de longo prazo”, defende Pierre Girard. “As embarcações precisam ser adaptadas ao contexto ecológico, talvez menores ou diferentes das atuais. Considerar a sazonalidade da navegação, operando apenas seis meses por ano em vez de existir uma navegação contínua, é crucial. É necessário equilibrar os interesses das empresas de transporte com os da sociedade e do Pantanal”, sustenta o pesquisador da UFMT.
Imagem acima: rio Paraguai visto na região de Corumbá (MS). Crédito: Alceu Mauro Denes/Wikimedia