Vespas operárias ganharam ascendência em certas espécies e são as responsáveis por decidir quem serão as rainhas

Experimento monitorou comportamento de insetos pertencentes à tribo Epiponini e constatou que indivíduos da casta mais baixa são capazes de experimentar modificações e desenvolver ovários para se candidatarem ao posto de rainha. Mas poder de escolha de quem ocupará o posto máximo no grupo também é exercido pelas operárias.

Ao contrário das abelhas, frequentemente retratadas de forma carismática no cinema e associadas a flores, polinização e mel, as vespas não desfrutam da mesma fama. Pouco se fala dos benefícios ecológicos que elas proporcionam, como o controle de pragas nas lavouras. Em geral, são mais lembradas pela dor que suas ferroadas podem causar, especialmente quando surgem em áreas urbanas ou dentro das casas.

Essa má reputação faz com que as vespas sejam menos estudadas do que outros insetos sociais. No entanto, seu modo de organização revela características únicas, sendo uma das mais notáveis a capacidade de adaptação da colônia após a morte da rainha, ou mesmo a convivência de múltiplas rainhas em uma mesma colônia. Na busca por entender melhor essa capacidade de adaptação, ou plasticidade, pesquisadores da Unesp, USP e da Universidade de Münster, Alemanha, realizaram experimentos em colônias de vespas para ver como os indivíduos se comportam quando a vespa rainha é removida.

“Algumas espécies de vespas encontradas nos trópicos apresentam uma característica muito intrigante: suas colônias podem abrigar várias vespas rainhas coexistindo, ao invés de apenas uma, como ocorre em outras espécies de vespas e com outros insetos sociais”, diz Fernando Barbosa Noll, docente do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp (Ibilce-Unesp), campus de São José do Rio Preto. Outro diferencial é que, dentre as espécies que apresentam essa característica, a maioria está localizada no Brasil, o que motivou os pesquisadores a se debruçar sobre esse comportamento incomum entre os insetos sociais. 

“Normalmente a rainha é uma espécie de comandante autoritária. Ela inibe a reprodução por parte de outros indivíduos da colônia, e para isso emprega até violência física”, diz Noll. “Porém, nessas colônias com mais de uma rainha, houve alguma alteração na história evolutiva desses insetos. Quem passou a assumir esse papel de agressividade e controle sobre quem iria exercer o papel reprodutivo foram as operárias.” O resultado é que as operárias passaram, de certa forma,  a controlar a colônia, já que elas determinam quais os indivíduos mais aptos a se reproduzirem.

Além de observar as dinâmicas de comportamento entre rainhas e operárias, os pesquisadores também procuraram compreender as maneiras pelas quais as colônias suprem a falta de uma rainha, quando esta morre ou é removida do ninho. O grupo constatou que, quando uma sociedade ficava sem a rainha, rapidamente outras vespas operárias passavam a produzir ovos e buscavam assumir o lugar da rainha faltante. Esta mudança buscava assegurar a sobrevivência da colônia. O estudo, realizado com grupos de vespas no Brasil e na Costa Rica, foi feito com insetos tropicais da família Vespidae, pertencentes à tribo Epiponini, abrangendo cinco espécies distintas. A pesquisa leva o título de Experimental queen removal stimulates caste flexibility of females in Neotropical social wasps (Vespidae Polistinae Epiponini) e foi publicada em junho deste ano, na revista Ethology Ecology & Evolution.

A organização social das vespas

À semelhança de outros insetos sociais, as vespas também se organizam em diferentes castas. Quando vivem em conjunto, normalmente contam com uma ou mais rainhas, responsáveis por colocar os ovos e garantir a perpetuação da comunidade, e com operárias, que não se reproduzem e são responsáveis pela proteção, organização, alimentação e defesa do ninho. Nesse tipo de sociedade, os insetos apresentam uma certa plasticidade, que é o termo utilizado para definir a capacidade para adaptarem suas funções de modo a suprir demandas específicas. Essa capacidade é o que permite às operárias produzir ovos e exibir comportamentos específicos a fim de substituir sua rainha, caso esta, por algum motivo, deixe a colônia.

Em um mesmo ninho muitas vespas podem apresentar essas mudanças fisiológicas e comportamentais. Porém, são as operárias que irão decidir quais são as mais aptas para assumir o papel de novas rainhas. “Mesmo com muitas vespas tentando reproduzir, nem todas são igualmente aptas. As operárias conseguem identificar os melhores indivíduos para essa função. E são esses indivíduos que elas irão validar como rainhas para dar continuidade à colônia”, conta Noll.

Ninho de vespas da espécie Chartergellus communis. Elas ocorrem na América do Sul e Central e fazem parte do grupo de insetos sociais. O grupo observou o comportamento dessas vespas em Pedregulho, no Brasil. Crédito: Eric Fischer Rempe

O entomólogo diz que essa seleção ocorre por dois caminhos. O primeiro envolve a liberação de feromônios e a presença de hidrocarbonetos, que são moléculas de carbono e hidrogênio responsáveis por identificar a posição de cada indivíduo na colônia e as funções fisiológicas que ele está desempenhando. Embora esse “caminho químico” seja relevante, não é suficiente para encerrar o processo de seleção. O segundo mecanismo envolve as expressões comportamentais que as vespas passam a ter, e esta via foi objeto do estudo.

“Observando o repertório comportamental, vimos que a candidata a rainha precisa sinalizar, por meio da linguagem corporal, o nível de aptidão que ela tem”, diz Noll. O docente conta que, durante esse processo, as operárias ficam constantemente se aproximando das candidatas e, quando ocorre um contato, a futura rainha deve apresentar uma determinada postura, chamada de “bending display”, ou comportamento de curvatura. Essa é uma resposta a outro comportamento, chamado de “dança das operárias”, no qual as vespas buscam posições e comportamentos específicos das candidatas.

“Esses comportamentos são quase como uma dança ritualizada que demanda por respostas. Quando uma candidata não responde a esses atos rituais, muito provavelmente ela não tem o potencial desejado”, afirma o docente. Uma vez que a candidata é aprovada no “exame seletivo” das operárias, ela pode assumir efetivamente o papel de rainha; aquelas que não foram classificadas na avaliação tem como destino a exclusão da colônia.

Evolução diminuiu violência nas colônias

O grupo observou esses comportamentos em cinco  espécies distintas de vespas Epiponini: Metapolybia miltoni, Chartergellus communis, Chartergellus golfitensi e Metapolybia servilis e Protopolybia picteti.

Ao contrário dos trabalhos com abelhas, que podem ser facilmente realizados em laboratório ou em espaços controlados, as vespas apresentam um desafio maior porque elas são intolerantes a alterações, o que impede os pesquisadores de transportarem o ninho para outros lugares. Por conta disso, foi necessário identificar potenciais ninhos em campo e trabalhar com eles em seu local original.

Para acompanhar o comportamento daquelas sociedades, após a seleção dos ninhos, o grupo cortou pequenas janelas que permitiram observar o interior da estrutura. Ao longo de semanas, os pesquisadores acompanharam o cotidiano de cada ninho e, a partir do comportamento apresentado por cada indivíduo, conseguiram identificar aqueles que eram as rainhas.

Uma vez feita a identificação, o grupo extraiu as rainhas do ninho e passou a analisar os novos comportamentos que emergiram na comunidade. Os ninhos mais acessíveis foram observados ao longo de quatro meses, duas vezes por semana, durante quatro horas. Aqueles de mais difícil acesso seguiram o padrão de observação semanal, porém no período de um mês.

“Observamos que nas espécies situadas nos ramos mais antigos na árvore evolutiva há uma importância maior da agressividade como fator para definir quem merece o status de reprodutor”, conta Noll. Isso não foi observado em espécies de ramos mais “recentes”. O entomólogo acredita que isso se deva a um refinamento nos comportamentos e nas sinalizações das candidatas a rainha, desenvolvido evolutivamente para aumentar as chances de sobrevivência.

“Do ponto de vista biológico isso é bastante interessante. Primeiro porque denota um aperfeiçoamento do repertório comportamental. Segundo, isso diminui um pouco o nível de agressividade dentro da colônia, tornando o ambiente mais coordenado e resultando em uma economia maior de energia”, explica Noll.

No artigo, o grupo também apresenta uma hipótese para explicar o motivo para que essas espécies de vespas tenham desenvolvido a presença de mais de uma rainha e a decorrente agressividade das operárias. Segundo os autores, em algum momento da história evolutiva, as rainhas passaram a ser mais tolerantes com a existência de outros indivíduos que se reproduziam. “Não se sabe o motivo exato, mas pode ter ocorrido por um aumento de espaço ou de alimento, o que diminuiu a competitividade dentro da colônia”, conta Noll.

Porém, a diminuição da agressividade entre as rainhas criou um novo problema: muitos indivíduos passaram a tentar reproduzir, porém nem todos eram aptos para isso. Assim, a fim de garantir a perpetuação não só da espécie, mas da colônia, as operárias desenvolveram as danças e os ritos comportamentais que são utilizados ainda hoje para conseguir filtrar e selecionar apenas aqueles indivíduos mais promissores.

“O que nós mostramos é que quando vários indivíduos têm a possibilidade de atingir um status de rainha, não necessariamente todos serão rainhas verdadeiras. Então esse comportamento agressivo que a gente observa nas operárias é para identificar e eliminar as rainhas falsas”, explica Noll.

O grupo agora está conduzindo análises para compreender melhor de que maneira ocorre a sinalização química entre as diferentes castas, com o objetivo de decifrar mais um capítulo da história evolutiva ainda pouco compreendida desses insetos.

Imagem acima: Chartergellus golfitensis. Crédito: Karl Kroeker.