Especialistas em educação apontam problemas em novas leis que proíbem uso de celulares nas escolas

Legislação aprovada na Alesp e projeto de lei em discussão na Câmara de Deputados foram formuladas sem diálogo com pesquisadores da área. Propostas não detalham possibilidades para uso de recursos digitais em sala e falham em não estabelecer oferta de educação midiática, modelo adotado em países da Europa.

Esta semana, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou o projeto de lei 292/2024 que proíbe estudantes de escolas públicas e privadas de utilizarem celulares e outros dispositivos com acesso à internet durante o período de permanência escolar. A proposta foi aprovada por unanimidade, com votos de todos os lados do espectro ideológico, mas ainda precisa passar pela sanção do governador do estado. Se for sancionada, São Paulo será o primeiro estado a adotar tal medida, que já foi adotada no município do Rio de Janeiro. Na Câmara dos Deputados, tramita uma proposta semelhante. O PL 104/2015 foi aprovado no último dia 30 em votação na Comissão de Educação. O PL, formulado pelo deputado federal Alceu Moreira (MDB), também proíbe o uso de celulares em escolas públicas e particulares dos ensinos fundamental e médio. A proposta deve seguir para análise da Comissão de Constituição, da Justiça e da Cidadania (CCJ), e somente após esse parecer favorável será votada em plenário e, posteriormente, enviada ao Senado Federal. 

A população vê com simpatia essas iniciativas. Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha, 62% da população apoiam o banimento, e 76% acreditam que o celular traz mais prejuízos do que benefícios ao aprendizado. Estados como Roraima, Rio Grande do Sul, Maranhão e Tocantins, além do Distrito Federal, discutem legislações próprias que restringem o uso do dispositivo. No entanto, apesar do amplo suporte que as novas legislações têm recebido  os especialistas em educação ouvidos pelo Jornal da Unesp afirmam que elas contém limitações importantes e pontos problemáticos.

Falta diálogo com quem pesquisa o tema

Docente do Departamento de Educação do campus da Unesp de São José do Rio Preto e especialista nas áreas de educação, comunicação e psicologia, Claudia Maria de Lima critica o fato de que essas propostas estão sendo formuladas e aprovadas sem que os estudiosos da área sejam ouvidos. “Não houve consulta às universidades que pesquisam a temática, ou aos pesquisadores que discutem efetivamente essas questões”, diz. A própria Associação Brasileira de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação emitiu uma nota criticando a falta de envolvimento de pesquisadores, professores e outras entidades relacionadas ao ensino básico na elaboração do projeto de lei federal.

O texto do projeto aprovado pela Alesp estipula que o uso de dispositivos eletrônicos será permitido “quando houver necessidade pedagógica para utilização de conteúdos digitais ou ferramentas educacionais específicas”. O PL 104/2015, em debate na Câmara, também abre margem para que o professor utilize o aparelho em atividades didático-pedagógicas. Entretanto, a professora da Unesp explica que a legislação federal estipula que caberá às redes de ensino estabelecer as condições em que este uso didático poderá ocorrer. A depender de como estas condições serão estipuladas, alerta a docente da Unesp, o processo de utilização pedagógica do celular poderá se tornar burocrático.

 “Eu questiono como o professor poderá pedir autorização para uso. Com quanta antecedência ele deverá fazer o pedido, como deverá ser formalizado e quanto isso vai impactar a autonomia docente”, indaga. Tais indefinições poderiam ser amenizadas envolvendo-se no debate os pesquisadores em educação, que podem indicar o caminho mais adequado para o estabelecimento das normas para o seu uso.

A falta de respaldo científico também impede que o projeto seja mais robusto e discuta outros conteúdos importantes como, por exemplo, medidas para um uso mais consciente do celular. Afinal, o uso excessivo do aparelho, que pode resultar em prejuízos para a saúde mental do indivíduo, ocorre principalmente quando ele não está sentado nos bancos escolares.

O ambiente escolar é ideal para apresentar uma visão crítica das novas tecnologias e, com o suporte científico adequado, a discussão sobre os meios digitais poderia ser mais aprofundada e contribuir para a formação de pensamento crítico dos estudantes. “O único espaço em que se pode proporcionar uma formação crítica aos adolescentes, para que compreendam os problemas que surgem de permanecer horas demais navegando em redes sociais, no Tik Tok ou em jogos on-line, é a escola”, diz a docente.

Alunos de licenciatura da Unesp aprendem a usar ferramentas digitais em sala

O uso pedagógico de dispositivos móveis, aplicativos e softwares é objeto hoje de grande número de pesquisas e discussões nos estudos em educação. Isso reflete uma tendência da área. Afinal, os estudos empreendidos sobre  tecnologias anteriores que disponibilizavam recursos de áudio, vídeo e imagem resultaram em sua incorporação ao ferramental didático ao longo do século 21.

“Quando surgiram os computadores, muitas pessoas questionaram se eles iriam eventualmente substituir a figura do professor”, explica Renata Rinaldi, docente no Departamento de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação do campus da Unesp de Presidente Prudente. “Por isso, é preciso proceder a uma análise de cada novo recurso, examinar como os resultados que eles proporcionam podem ou não ser úteis. Assim se pode enxergar o que ele tem de bom a oferecer, e também construir a crítica necessária para a formação das gerações futuras.”

Rinaldi, que é especializada na área de formação de professores, conduz atividades de extensão em escolas nas quais propõe que tanto os professores em formação quanto aqueles que já atuam nas respectivas áreas aprendam a utilizar novas tecnologias em suas disciplinas. O objetivo da inciativa é integrar ferramentas do cotidiano dos alunos ao processo de formação escolar.

Ela diz que incentiva seus alunos de licenciatura a aprenderem a utilizar dispositivos e ferramentas digitais para aprimorar o processo de ensino-aprendizagem. “Usamos um protocolo que analisa se determinado conteúdo ou dispositivo se destina a informação, ao entretenimento ou se caracteriza como conteúdo científico. A partir disso, questionamos como podemos trabalhar com essa linguagem de forma que seja acessível aos jovens estudantes, a faixa etária em que esse recurso pode ser empregado, se as crianças sabem utilizá-lo e como vamos ensinar”, explica. A proposta é que as novas gerações de docentes utilizem um método científico para saber como e quando incorporar as novas tecnologias dentro da sala de aula, seja para discutir suas implicações ou para propor atividades práticas.

Embora as pesquisadoras ressaltem a importância do uso pedagógico do celular na sala de aula, explicam que o dispositivo não pode substituir práticas de ensino mais tradicionais, como escrita e leitura. Segundo as docentes, atividades como escrever, ler, debater temas e outras tarefas manuais e intelectuais são essenciais para a formação crítica do aluno, que é o objetivo principal da escola.

A garantia de uso pedagógico dentro das escolas é importante. Porém, a inclusão de uma política de educação digital e midiática no currículo escolar que acompanhe o projeto de lei poderia ampliar o debate sobre essa tecnologia com os alunos da educação básica. Abordar o tema permitiria que estudantes desenvolvessem uma visão crítica, compreendendo os prejuízos que o uso excessivo do aparelho pode causar. Há jovens que já admitem ter uma relação conturbada com o dispositivo; de acordo com um relatório da Common Sense Media, 36% dos entrevistados relatam dificuldade em parar de usar o celular ou a internet assim que começam, e muitos admitem que as notificações constantes os distraem de outras atividades.

É preciso debater a tecnologia em sala de aula

Além do vício, o celular expõe os jovens a conteúdos violentos e preconceituosos. Segundo a pesquisa TIC Kids Online, feita com crianças, adolescentes e pais ou responsáveis, 61% dos participantes afirmaram presenciar discriminação na internet mais de uma vez por dia. Uma em cada três meninas já foi tratada de forma ofensiva na internet, e o índice entre os meninos é de 24%.

Diante desses problemas, o pesquisador Raul Alves de Souza, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral da Unesp e Unicamp, sugere que a solução para essas questões está no debate em sala de aula. “Quando os alunos são envolvidos nessa discussão, eles passam a ter mais repertório para lidar com situações desafiadoras. Quanto mais repertório o estudante tem, maior é a possibilidade de que possa fazer escolhas ou ações mais positivas”, diz. O especialista em educação acrescenta que discutir temas como segurança online e uso de dados também pode favorecer o aluno no futuro. “Se eu nunca fui inserido numa discussão sobre crimes financeiros na internet, maior é a propensão que eu tenho de cair num golpe.”

As novas legislações em discussão no Brasil estão inseridas em uma tendência internacional. Segundo relatório da Unesco sobre o uso de tecnologias na educação, um em cada quatro países associados à instituição já proíbe o uso do celular dentro da sala de aula. A lista inclui países como Alemanha, Austrália, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália e Portugal, muitos deles famosos pela excelência do seu sistema de educação. No entanto, Lima explica que tais leis foram elaboradas tendo como fundamento pesquisas sobre o aprendizado e as particularidades do ensino adotado em cada região. Além disso, no cenário internacional, a proibição foi acompanhada de medidas de educação digital para crianças e adolescentes, algo desconsiderado no texto brasileiro.

“A Finlândia, por exemplo, tem um programa de educação midiática e de formação para leitura crítica das mídias que é incrível”, diz Lima. “Eles não estão proibindo o uso pedagógico do celular nem as discussões sobre o uso do aparelho. Eles proibiram as crianças de utilizarem o celular em sala de aula com outras finalidades que não a pedagógica”, diz.

Imagem acima: Deposit Photos.