“Os Brics deixaram de ser considerados uma piada e passaram a ser vistos como uma ameaça”

Especialista em relações internacionais, Marcos Cordeiro analisa os desafios que vão marcar a próxima reunião do bloco, que se inicia amanhã, na Rússia. Temas em evidência incluem incorporação de novos integrantes e desejo por criação de sistema próprio de pagamentos, a fim de reduzir dependência do dólar. O candidato à presidência dos EUA Donald Trump já ameaçou publicamente instaurar sobretaxas comerciais sobre produtos de países que deixem de fazer transações exclusivamente na moeda americana.

O presidente Lula sofreu uma queda durante o fim de semana e não viajará para a  16a Cúpula dos Brics, que se inicia amanhã na cidade de Kazan, na Rússia, e se estenderá até o dia 24. A inesperada ausência do líder brasileiro traz um elemento extra de inesperado para uma pauta de debates que se anuncia polêmica. Será a primeira reunião do bloco desde a inclusão de novos membros plenos, em 2023. Além de Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, ingressaram no grupo o Irã, a Arábia Saudita, o Egito, a Etiópia e os Emirados Árabes Unidos.

Um dos temas que serão tratados pelos chefes de Estado presentes no encontro, do qual Lula participará por videoconferência, será a definição de critérios para a inclusão de novos membros. A defesa da reforma do Conselho de Segurança da ONU, o repúdio à aplicação de sanções econômicas sem o aval da entidade e a relação amigável com os atuais membros são alguns dos critérios já estabelecidos.

Outro ponto de destaque na agenda da Cúpula será a discussão sobre formas de diminuir a dependência do dólar nas transações entre os países que integram o bloco. Criado em 2006, os Brics concentram hoje mais de 40% da população e 36% do Produto Interno Bruto (PIB) global, superando inclusive o G7, grupo que reúne as maiores economias do mundo.

Na perspectiva do professor Marcos Cordeiro Pires, este movimento de desdolarização em debate pelos Brics surge da percepção de que a moeda norte-americana tem sido cada vez mais usada como arma política, como foi visto nas retaliações impostas à Rússia e ao Irã, recentemente. Embora os avanços nesta agenda ainda sejam tímidos, a inclusão no bloco de países superavitários, como Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, pode dar um impulso ao projeto.

Atuando como cocoordenador do Grupo de Pesquisa dos Brics, locado na Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, no campus de Marília, e pesquisador do INCT para Estudos sobre os Estados Unidos, Cordeiro avalia que as posições do bloco contestando a hegemonia do dólar têm colaborado para percepção por parte dos EUA de que os Brics se tornaram uma ameaça. Um exemplo dessa preocupação apareceu nas recentes declarações do candidato à presidência Donald Trump, que ameaçou taxar agressivamente países que deixassem de usar a moeda. “ Na perspectiva dele, se os EUA perdem o privilégio que eles têm em relação ao dólar, é como se eles perdessem uma guerra revolucionária”, afirma.

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Essa é a primeira reunião dos Brics desde a expansão de membros ocorrida no ano passado. Quais os temas mais importantes que estão na mesa de discussão? E quais os temas de maior interesse para o Brasil na reunião?

Marcos Cordeiro: Essa Cúpula dos Brics é importante e desafiadora por muitos motivos. Primeiro, o próprio contexto internacional é difícil, considerando o conflito na Ucrânia, o conflito entre Israel e os palestinos e agora os libaneses. Além de ser um momento em que aumenta a competição entre EUA e China em diversos campos e com muitas sanções em vigor, por exemplo, contra a Rússia, ou mesmo o próprio Irã, que está ingressando nos Brics agora.

Do ponto de vista da temática da Cúpula, as questões econômicas vão nortear a maior parte dos debates. Os Brics são um agrupamento que não é homogêneo. Há diferenças políticas entre os próprios membros. Portanto, avanços em termos de declarações sobre segurança ou sobre os atuais conflitos serão retirados. O que eu vislumbro como interessante é a questão econômica. Especificamente a questão monetária.

Nessa questão monetária, um dos temas já colocados nesta Cúpula diz respeito à busca por alternativas ao uso do dólar como moeda para transações comerciais entre os países. O que estará em discussão neste encontro?

Marcos Cordeiro: É importante a gente antes entender por que essa desdolarização está em discussão. A gente observa que há inúmeras sanções que envolvem todo o sistema financeiro baseado no dólar. No Brasil tivemos problemas bastante sérios com navios iranianos que vieram buscar milho no porto de Paranaguá, em 2019, e com o chanceler russo Sergei Lavrov, que veio para uma reunião do G20 e não tinha autonomia de voo para chegar a Brasília. Em ambos os casos, a Petrobras não ofereceu combustível, por receio das sanções.

Esse é um tipo de constrangimento que não só o Brasil mas também outros países têm enfrentado, porque cada vez mais o dólar é utilizado como arma política. Nesse contexto, surge a discussão de se encontrar alternativas para essa situação porque hoje é com a Rússia, mas amanhã pode ser comigo. Isso pode implicar não só o Irã, que já está sob sanção, mas os Emirados Árabes, o Egito ou qualquer outro país. Então os chineses e indianos hoje estão comprando petróleo da Rússia com yuans e rupias.

Cada vez mais o dólar é utilizado como arma política. Nesse contexto, surge a discussão de se encontrar alternativas para essa situação porque hoje é com a Rússia, mas amanhã pode ser comigo.

Quando você pega um ativo coletivo importante como o dólar, que é a principal moeda utilizada em negociações, e você cria a possibilidade de estrangulamento do sistema internacional, surge a necessidade de esses países discutirem não a criação de uma moeda, mas a criação de mecanismos intra Brics para viabilizar as trocas entre os países do bloco e outros países.

Outro ponto é o papel do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o Banco dos Brics. Ele também trabalha com esse princípio: quando ele empresta dinheiro, ele faz questão de criar um mecanismo de garantias, chamado hedge, para que os países paguem os empréstimos  com suas próprias moedas. Isso evita que um país tome dinheiro em dólar e, se depois ele enfrenta uma crise com desvalorização da moeda, ele não tenha um acréscimo no pagamento do empréstimo por conta da do dólar. O NBD tem criado esse tipo de cooperação para que esses empréstimos não pressionem o balanço de pagamento. Esse ponto monetário e financeiro é muito importante na discussão dos Brics.

A discussão da desdolarização já esteve presente na última Cúpula. Como esse tema caminhou do ano passado para cá?

Marcos Cordeiro: Falou-se na criação de uma moeda dos Brics, mas isso não é viável. Existem entre os países-membros situações diferentes de ritmos de crescimento, níveis de inflação e de dívida. Mesmo a Europa sofreu muito, incluindo países mais fracos debaixo do euro.

O que tem avançado, e se deve considerar, é a participação nas discussões de um grande país superavitário, que são os Emirados Árabes Unidos. A Arábia Saudita também está participando da Cúpula, mas ela não ingressou plenamente nos Brics. Pode parecer pouco, mas a Arábia Saudita e a China firmaram acordo para compra de cerca de  US$ 3,5 bi para serem feitos em yuan. É um passo no sentido da diversificação dessas moedas.

Há um amadurecimento maior dos países do Brics em se criar um sistema de pagamentos, não de uma moeda, para potencializar o comércio entre esses países. A empresa Eldorado Brasil realizou as primeiras transações em yuan na exportação de celulose para a China. Grande parte do que está viabilizando a resistência russa às sanções internacionais do ponto de vista econômico tem sido a porta que a Rússia abriu com China e Índia para trabalhar com essas outras moedas.

Sempre que se aproxima uma Cúpula dos Brics toca-se no ponto de ser um bloco heterogêneo, mas também aberto a autocracias e regimes pouco democráticos. Como o senhor avalia essas observações?

Marcos Cordeiro: Acho que é uma falsa acusação dizer que é um clube de governos autoritários. O país mais populoso do mundo, a Índia, em tese, apesar de ser uma sociedade de castas, se diz democrático e realiza eleições. A África do Sul tem o mesmo sistema que chamamos de liberal democrático que o Brasil. O Egito é como a Rússia: realiza eleições mas não são tão competitivas. E você tem ainda dois reinados, Emirados Árabes e Arábia Saudita.

Mas creio que a grande questão não esteja aí. Esse discurso de “clube de autoritários” é muito mais por parte de detratores que querem manter o Brasil alinhado às potências ocidentais. E, do ponto de vista do Brasil, não é interessante se posicionar de forma a estar 100% alinhado contra as potências ocidentais, nem se colocar 100% contrário às potências ocidentais. O Brasil é um país grande, que precisa ter relacionamento com todos os outros grandes países.

Esse discurso de que o Brics é um “clube de autoritários” é muito mais por parte de detratores que querem manter o Brasil alinhado às potências ocidentais.

Quem fala em “clube de autocracias” são aquelas pessoas que consideram que existe autocracia boa ou ruim. Diversos países com os quais os EUA mantêm uma relação muito próxima também são autocráticos. Se você for observar dentro da perspectiva dos valores da civilização ocidental, um dos países que mais reprime o direito feminino é a Arábia Saudita, importante parceira dos EUA.

A obrigação de um país é buscar parceiros que sejam adequados a seus próprios interesses. Veja, no mesmo momento em que este tipo de crítica está sendo disparado, a embaixada dos EUA anunciou que, durante a Cúpula do G20, vai firmar uma parceria estratégica no Brasil em relação a minerais críticos justamente para diminuir a dependência da China. O Brasil vai deixar de fazer parceria porque faz parte dos Brics? Isso não faz sentido. Devemos ser pragmáticos e escolher nossos parceiros de acordo com nossos interesses. E compreendendo que nem todo mundo é igual a gente.

Existe algum outro ponto a ser destacado por ocasião desta reunião dos Brics?

Marcos Cordeiro: Os Brics deixaram de ser considerados como uma piada, principalmente pelos EUA, e passaram a ser vistos como uma ameaça. Muito disso diz respeito a uma ameaça imaginária, já que a Arabia Saudita é aliada dos EUA e o local que mais recebe investimento militar deles, depois de Israel. O Egito também recebe muito recurso dos EUA para garantir a estabilidade para Israel. A Índia está atuando no Oceano Índico, ao lado dos EUA, Japão e Austrália, em uma plataforma chamada Quad, contra os chineses. Ou seja, um país não pode ficar alinhado, então você tem muitas interações entre os países.

Mas, no caso dos Brics, vale ver o que o Trump falou sobre a possibilidade de o bloco deixar de usar o dólar. Ele disse que ia taxar em 100% os produtos e danificar a economia dos países que deixassem o dólar. O Trump está verbalizando isso porque essa pressão política já é feita. Na perspectiva dele, se os EUA perderem seu privilégio em relação ao dólar, é como se perdessem uma guerra revolucionária.

Imagem acima: fotos das bandeiras dos países integrantes do Brics durante reunião no Ceará, Brasil, em 2014. Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil.