Há 50 anos o Brasil se despedia de Donga, pioneiro do samba

Com a gravação pioneira de “Pelo telefone”, o cantor e compositor carioca produziu o primeiro registro do estilo musical que se tornaria um dos sinônimos de brasilidade. Mas sua condição de autor da canção suscitou discussões entre músicos e estudiosos.

Compositor e violonista, Ernesto Joaquim Maria dos Santos, que entraria para a história da música brasileira pelo nome de Donga, nasceu em 5 de abril de 1890, no Rio de Janeiro. Era um dos nove filhos de Pedro Joaquim Maria e Amélia Silvana de Araújo. O pai era um pedreiro que tocava bombardino nas horas vagas. A mãe, conhecida como Tia Amélia, integrava um grupo das baianas da região da Cidade Nova e gostava de cantar modinhas e de promover muitas festas e encontros, sempre tendo como referência a cultura afrobrasileira.

Donga cresceu nesse ambiente rico em arte e em cultura, e tinha no candomblé seu espaço de sociabilidade. Aprendeu a tocar instrumentos e participava das rodas de música que ocorriam em casas de terreiro bastante conhecidas à época. Uma delas era a casa da Tia Ciata, frequentada por outros nomes que se associaram à gênese do samba, como João da Baiana e Hilário Jovino Ferreira. Admirava especialmente o instrumentista Mário Cavaquinho, e com apenas 14 anos começou a tocar cavaquinho sem ter estudado. Posteriormente aprendeu a tocar violão, estudando com o grande Quincas Laranjeiras.

Em 27 de novembro de 1916, aos 26 anos, gravou Pelo Telefone, canção de sua autoria que ficou registrada sob o número 3.295 do Departamento de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro. Pelo Telefone foi por muito tempo considerada como o primeiro samba gravado na história. Posteriormente, pesquisas que devassaram registros históricos concluíram que é provável que outros sambas tenham sido gravados até antes, mas Pelo telefone preservou o mérito de ter sido um samba imensamente popular, servindo como referência para o gênero.

Quem compôs?

Segundo o pesquisador e musicólogo Alberto Tsuyoshi Ikeda, que é professor aposentado pelo Instituto de Artes da Unesp, a gravação de Pelo Telefone consistiu em um gesto “de esperteza” por parte do compositor carioca, à época uma liderança das rodas de samba que brotavam nos morros do Rio de Janeiro.

“Durante as décadas de 1920, 1930 e 1940, o Donga foi uma grande liderança da música popular. Naquela época, era muito apreciado nas rodas o canto improvisado, que buscava abordar os acontecimentos da vida cotidiana. Hoje, é comum se falar que fulano é um bom partideiro. Isso se refere ao cantor que tem a grande capacidade de improvisar. Se canta um refrão fixo e depois cada cantor improvisa versos. Atualmente, a gente chama esse estilo de partido alto, para distinguir de outras formas de samba”, diz Ikeda.

Ele explica Pelo Telefone era um tipo de partido alto, cantada de improviso. No entanto, muitos de seus versos já estavam quase fixados, embora tenham nascido em diferentes momentos, concebidos por compositores diversos que frequentavam o mesmo circuito que incluía eventos religiosos e casas festivas.

“Por exemplo, outros músicos da época, como Sinhô e Hilário Jovino, s também diziam que essa canção era deles. Ou que, pelo menos, a canção continha elementos que foram elaborados por eles.  Estudos mais recentes sugerem que a própria Tia Ciata participava desses encontros não apenas como Ialorixá, mas tocando violão e improvisando como partideira. É possível, então, que ela também tenha tido alguma participação na música”, diz Ikeda. “Mas, certamente, o Donga não foi o único autor”, conclui o pesquisador, que atua também como consultor da cátedra Kaapora da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“Vale lembrar que, até então, a palavra samba tinha o significado de reunião, de festa. Não identificava um gênero musical. Tem um samba gravado por volta de 1911, 1912, chamado Em Casa de Baiana, cuja letra diz ‘um samba de partido alto/em casa de baiana’. E também a música A Viola Está Magoada, gravada pelo cantor Baiano, diz em sua letra ‘vocês que estão sambando’. Ambas foram registradas antes de Pelo Telefone, que foi gravada no final de 1916 e fez sucesso no carnaval de 1917″, diz o docente.

Mais tarde, Donga acrescentou o nome do jornalista e compositor Mauro de Almeida (1882-1956) como parceiro. Segundo relatos, quando provocado sobre o assunto, Donga costumava esquivar e argumentar que “música é como passarinho: é de quem pegar primeiro”. Dentre suas canções mais conhecidas constam também: Passarinho Bateu Asas, Macumba de Oxóssi, Macumba de Iansã e Patrão Prenda seu gado, dentre outras.

Um contexto multicultural

Em 1919, ao lado de Pixinguinha e outros seis músicos, Donga integrou, como violonista, o grupo Oito Batutas, que excursionou pela Europa em 1922. Também com Pixinguinha, organizou a Orquestra Típica Donga-Pixinguinha. Em 1926 integrou a banda Carlito Jazz. Já em 1940 Donga gravou nove composições (entre sambas, toadas, macumbas e lundus) do disco Native Brazilian Music, organizado por dois maestros: o norte-americano Leopold Stokowski e o brasileiro Villa-Lobos, lançado nos Estados Unidos pela Columbia.

Segundo Ikeda, não existem estudos específicos sobre Donga, mas sim referências históricas. “Geralmente, além da gravação de Pelo Telefone, a figura de Donga é lembrada pelo grupo “Oito Batutas”, mas antes já havia outros grupos importantes. O Donga é sete anos mais velho que o Pixinguinha (1897 – 1973). Então, possivelmente, já estava envolvido com outros músicos como o João Pernambuco, por exemplo, que veio para o Rio de Janeiro por volta de 1902 e, em 1914, formou o Grupo do Caxangá”, diz.

“É preciso estudar mais esse período fugindo um pouquinho da presença magnânima do Pixinguinha, que foi um músico incomparável, para que se conheça melhor aquela realidade. Precisamos pensar em estudos sobre  Donga, que viveu muito à sombra do próprio Pixinguinha. Naquele contexto, podemos falar em multiculturalidade. Ali não havia só negros ou baianos, mas também nordestinos e negros de diferentes regiões do país, que se interessavam pelo baião, por ranchos e por outros gêneros. Trata-se de uma complexidade muito maior do que a gente imagina”, diz.

No final dos anos 1950 Donga voltou a se apresentar com o grupo Velha Guarda, em shows organizados por Almirante. Ficou viúvo em 1951, casou-se novamente em 1953 e foi morar no bairro de Aldeia Campista, para onde se retirara como oficial de justiça aposentado. Doente e quase cego, viveu seus últimos dias no Retiro dos Artistas, falecendo em 1974. Está sepultado no Cemitério São João Batista.

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.

Imagem acima: wikimedia commons.