Cantor, compositor e musicista com mais de 40 anos de estrada e nove álbuns gravados em sua carreira solo, o paulista Edvaldo Santana lançou em agosto seu mais novo petardo, Menino do Bongô – mas não só; junto com o álbum, está saindo também seu primeiro livro, intitulado “Sou da Quebrada Mas Eu Sou das Antigas – São Miguel de Ururaí”.
Menino do Bongô, que já está disponível nas plataformas digitais, combina elementos de blues e rock com influências de música nordestina e abre espaço para sonoridades latinas. Sua estrutura articula fragmentos estéticos concebidos durante e após a pandemia de Covid-19. O período afetou o compositor de forma peculiar: o recolhimento abriu espaço para que ele pudesse explorar novas formas de observação e de atuação artística, além de um aguçamento da percepção e uma maior valorização da simplicidade.
O trabalho traz dez músicas que contam a história da Terra, a partir da aldeia Brasil. O compositor explica que, entre os muitos elementos que desfilam pelas canções, “tem o Sol que traz preguiça e o peixe que voa no mar, tem o tocador de bongô que acalma o papagaio, tem o jazz namorando com o samba”.
“Eu criei muitas canções durante a pandemia, o período de recolhimento me aguçou a sensibilidade. Toda aquela incerteza, aquela tensão que vivemos, mexeu muito comigo. Inicialmente, lancei alguns singles e fui deixando rolar. Após a pandemia segui compondo, fazendo canções e cheguei num total de vinte músicas. Daí, percebi que já havia um material para ser gravado. Pois um álbum exige estética, ligação poética e outros elementos que se interliguem para gerar uma concepção de trabalho relevante. Fiz uma triagem das canções e assim cheguei ao décimo álbum. O camisa dez do time”, conta Edvaldo.
Posteriormente, o artista procurou os mesmos músicos que o acompanham há tempos para produzir os arranjos e realizar as gravações e produções. Menino do Bongô foi registrado em um sistema de cooperação online, que envolveu gravações feitas em diversos estúdios espalhados pela capital e pelo interior de São Paulo. Esse formato, porém, não comprometeu a essência orgânica do trabalho: a impressão é que os músicos estão tocando ao mesmo tempo e no mesmo lugar, tamanha a precisão das levadas e a sincronia dos arranjos.
“Sempre cito meus parceiros de longa data, como Luiz Waack, Daniel Szafran, Reinaldo Chulapa e Ricardo Garcia. São músicos que formam a base de sustentação desse disco, cultivam a amizade e conhecem bem os caminhos onde meu trabalho pode chegar. Dessa forma, gravei as baterias em Matão, os teclados, baixos, metais e coros em São Paulo, as guitarras em Piracaia e os violinos e a minha voz em Rio Preto. Depois, juntamos tudo com um belo trabalho de mixagem e masterização”, diz.
Com mais de 40 anos de carreira artística, Edvaldo diz que continuar compondo canções de qualidade a esta altura é um grande desafio. “Após tantos anos de estrada, é um desafio você não se repetir, escolher temas interessantes, colocar sua opinião própria, agradar seu público e atender a própria autocobrança por canções de qualidade”, diz. “É preciso destacar que o grande mérito desse álbum foi a “brodagem”, ou seja, a amizade que eu tenho com esses músicos excelentes. A gente se ajudou muito”, diz.
Memórias da quebrada
Edvaldo nasceu em 17 de agosto de 1955, e foi criado em São Miguel Paulista, um bairro “nos fundões” da cidade, em suas próprias palavras. Foi o primeiro de oito filhos do piauiense Félix e da pernambucana Judite, nordestinos que vieram tentar a sorte na cidade grande. Em seu primeiro livro, o recém-lançado “Sou da Quebrada Mas Eu Sou das Antigas – São Miguel de Ururaí”, ele aborda suas origens, relata vivências pessoais e profissionais e também discorre sobre a criação de suas músicas.
“Não é uma autobiografia, mas há tempos penso em publicar uma obra assim. Registrar memórias da periferia, do lugar onde vivi, e que mudou muito. Aquela alegria romântica foi substituída por condições violentas. As conversas noite adentro nas esquinas com os amigos acabaram, os campinhos de futebol não existem mais”, diz. Ele também relata memórias dos movimentos culturais que marcaram a região no passado, que envolvem nomes famosos, como o cantor Antônio Marcos e o “bruxo” e gênio musical Hermeto Pascoal, dentre outros. “Também faço as minhas críticas e apresento opiniões sobre política, sociedade, arte. Isso incomoda, mas é preciso se posicionar sobre determinados assuntos”, diz.
Um ponto alto é seu relato sobre o Movimento Popular de Arte (MPA), que teve um importante papel para impulsionar a cultura em São Miguel. Foi uma iniciativa de cunho cultural, social e política, produzida por jovens artistas da periferia paulistana nos últimos anos da Ditadura, a fim de denunciar as condições de vida da população trabalhadora de São Paulo.
“Naquela época, 1978, muitas coisas estavam pipocando pelo país: greves no ABC, movimentos pró-democracia etc. Mas, não havia nada cultural no nosso bairro, na nossa região. A gente precisava fazer acontecer. Então uma geração de vários artistas, eu inclusive, começamos a pensar e criar atividades espontâneas, fora do mainstream. Dois antropólogos foram muito importantes naquele momento, Antônio Augusto Arantes e Tadeu Gilglio. Eles tinham o projeto de revitalizar monumentos históricos, e São Miguel possui uma capela histórica tombada. A partir daí, começaram a fazer um mapeamento dos artistas que havia no bairro. Começamos a nos encontrar e as coisas começaram a acontecer: teatro, música, artes plásticas, literatura etc. O MPA tomou proporções enormes. Ali recebemos grandes nomes da música como Tom Zé, Belchior, Walter Franco e Antônio Marcos, dentre muitos outros. Foi bem emblemático. Creio que o MPA tenha sido o primeiro grande movimento estético da periferia de São Paulo.”
Ouça abaixo a íntegra da entrevista.